sábado, 7 de janeiro de 2017

Vamos falar sobre o crime de Campinas?

Os comentários na internet mostram que parte da sociedade brasileira se identifica com as ideias e os sentimentos de um doido varrido

IVAN MARTINS
04/01/2017
Não é o caso de perguntar quando foi a última vez que uma mulher saltou um muro, invadiu uma festa de Réveillon, matou a tiros o próprio filho e mais 11 pessoas e depois se suicidou.
Isso, evidentemente, é coisa de homens.
Não é o caso, tampouco, de perguntar que ideologia é essa que junta vadias, feministas, Dilma, Lei Maria da Penha e defensores de direitos humanos numa mesma carta, para justificar uma chacina.
Nós sabemos de que parte do espectro ideológico vem esse lixo.
Para falar do crime de Campinas – porque é inevitável falar do crime de Campinas, porque é imperioso falar do crime de Campinas – proponho que nos concentremos nas suas repercussões. Mais exatamente nos comentários que os leitores da internet fizeram sobre a notícia.
Ontem, durante uma hora, li e coletei os comentários mais recentes sobre o assassino e sobre a carta que ele deixou, justificando seu gesto. Não foi preciso um processo intenso de busca ou seleção para chegar ao conteúdo exibido abaixo. Ele é abundante. Está ao alcance de qualquer um que se disponha a ler.
De cada quatro ou cinco comentários na internet, ao menos um revela alguma espécie de “compreensão” das causas do crime. Outros vão mais longe e elogiam sem reservas o criminoso. Juntos, expõem a simpatia de um grande número de pessoas pelos sentimentos e as razões de um louco varrido.
É assustador.
Antes de ler os comentários e o pouco que tenho a dizer sobre eles, acho importante que se leia ao menos um trecho da carta deixada por Sidnei de Araújo para o filho e para a namorada.
Foi com esse documento que o assassino garantiu seu lugar macabro na história e no coração dos que acham que o mundo se tornou um lugar de sofrimento e injustiça para os homens:
“Morto tbm já estou, pq não posso ficar contigo, ver vc crescer, desfrutar a vida contigo por causa de um sistema feminista e umas loucas. Filho tenha certeza que não será só nos dois quem vamos nos foder, vou levar o máximo de pessoas daquela família comigo, pra isso não acontecer mais com outro trabalhador honesto. Agora vão me chamar de louco, más quem é louco? Eu quem quero justiça ou ela que queria o filho só pra ela? Que ela fizesse inseminação artificial ou fosse trepar com um bandido que não gosta de filho. (...) A vadia foi ardilosa e inspirou outras vadias a fazer o mesmo com os filhos, agora os pais quem irão se inspirar e acabar com as famílias das vadias”.

Os comentários pró-Araújo, como vocês verão, variam de tom, mas têm em comum uma certa lógica: ele parecia ser boa pessoa, mas foi levado a matar seu filho, sua ex-mulher e uma família quase inteira pelas circunstâncias. Ao redor dele havia uma sociedade injusta e um sistema de justiça falho. Isso explica e subjetivamente justifica o ato de Araújo.
Vejam os comentários:
. Homem de caráter íntegro e boa índole. Descanse em paz, guerreiro, que seu sacrifício abra os olhos de muitas pessoas. #SomosTodosSidnei.
. Os ingredientes emocionais podem ser questionados, mas o conteúdo geral da carta não é tão absurdo assim.
. É pura verdade que as mulheres hoje tem mais “direitos” dos que os homens, e estes, ficam à deriva quando o "poder feminino" é colocado em prática.
. Não fosse as consequências bárbaras, a carta tem um conteúdo que quase todos concordam, mas não assumem para não serem “do contra”, e não serem crucificados pelos corretinhos.
. Muitas mulheres transferem a frustração pessoal com o casamento para os filhos. O pensamento é mais ou menos assim: Ele não serviu pra mim, não servirá para o “meu” filho. A fala é sempre de uma reprodutora independente, o papel do homem na relação é figurativa.
. Que o ocorrido foi triste foi sem duvidas! mais que no texto dele tem muitas verdades contra o Sistema isso ninguém pode negar, lamentável.
. Realmente, a conclusão é que ele foi provocado por todos ao extremo. Acabou fazendo justiça.
. Surtou. Nada justifica o que ele fez, mas as pessoas quando encostam um indivíduo na parede sem lhe deixar saida, precisam contar com a insanidade delas.

. Mães COVARDES como essa, não merecem morrer! Merecem sofrer, e muito, na cadeia! Não, não me refiro ao pai, me refiro a mãe mesmo. Ela, assim como muitas mães covardes, tem usado os filhos para punir os pais pela separação. Impedem os pais de terem convívio com os filhos. Impedem de vê-los. Fazem a cabeça dos filhos, inventando um monte de inverdades para denegrir a imagem do pai ( e muitas vezes com a conivência da família ).
. Alienação Parental deixa qualquer um doido.
O que vocês acham disso? Eu acho abominável.
Em termos lógicos, a carta do assassino não junta lé com cré. Ela está construída em torno de um delírio de perseguição, enumera um monte de bobagens e preconceitos como “falhas da sociedade” e, ao final, conclama os homens a matar famílias inteiras para vingar-se das “vadias”. Mas as pessoas, surpreendentemente, enxergam sentido nesse samba do assassino louco. De alguma forma, o texto conversa com as emoções delas. Criou-se empatia entre o homicida e seus leitores.
Como eu disse antes, é assustador.
Parece inevitável que Sidnei Ramis de Araújo venha a ser percebido no futuro como o primeiro “mártir” do masculinismo brasileiro, o movimento dos que acreditam que a emancipação das mulheres foi longe demais e que é preciso  barrar o feminismo, defendendo os homens, sua posição na sociedade e seus valores, seja lá o que isso significa.
Os masculinistas estão em vários países e o movimento começa a se tornar internacionalmente articulado. Sua agenda básica é contra o sistema de justiça, que costuma dar guarda dos filhos às mulheres em 80% das separações, e que condena os homens “injustamente” por violência doméstica e abuso sexual contra os filhos. Sidnei de Araújo foi acusado pela ex-mulher de abusar sexualmente do filho.
Uma das queixas frequentes dos masculinistas é a “alienação parental”, crime definido no Brasil em 2010. Ele ocorre quando um dos pais tenta jogar os filhos contra o outro ou dificultar seu acesso à criança ou ao adolescente. Esse tipo de comportamento é (ou era) tristemente comum nas separações conflituosas.
Contra as evidências empíricas – milhões de casais separados criam seus filhos em harmonia –, os masculinistas alegam que a “alienação parental” é universal, e sempre contra os homens. Eles também detestam a Justiça e os serviços sociais, que se metem em temas que eles consideram de natureza privada, como a violência nas relações domésticas e os abusos sexuais contra as crianças.
Por trás de tudo isso estariam, segundo eles, as feministas – ou feminazis –, que teriam o intuito secreto de destruir os homens e a masculinidade, seja lá o que isso signifique.
Um documentarista francês se infiltrou no movimento masculinista no Canadá e escreveu no diário francês Le Monde, no ano passado, um depoimento revelador. Ele conta que nas conversas privadas os masculinistas sugerem que impor-se fisicamente às mulheres e cometer incesto seriam direitos naturais dos homens.
Não dá para conversar com gente que pensa assim no século XXI.
Mães que tentam propositalmente afastar os filhos dos pais existem, assim como existem mulheres que levantam falsas acusações de violência ou abuso sexual contra os maridos. Mas essa não é a regra.
Basta passar os olhos nas estatísticas brasileiras (e provavelmente internacionais) para verificar que a violência contra a mulher é epidêmica, assim como são frequentes os casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes. Dentro de casa.
Ao contrário da fantasia masculinista, não existe uma conspiração feminista para prejudicar os homens. Muitos deles é que fazem coisas erradas em relação à mulher, às filhas, às enteadas e às sobrinhas – e contra os meninos da casa também.
A lei contra a alienação parental existe para evitar que pais ou mães sejam impedidos de conviver com seus filhos pelo ódio ou pelo interesse da outra parte. Se ela ainda permite injustiças, é o caso de denunciar e consertá-la, não de sair matando em represália.
Ao contrário do que sugerem os comentários simpáticos ao assassino de Campinas, não parece haver nada de especial no caso dele. É um exemplo clássico e gravíssimo de feminicídio. Não existe a figura do pai amoroso, trabalhador, que acabou enlouquecido por causa de uma “vadia” e de um bando de feministas que o impediam de conviver com o filho.
Havia, sim, um homem perturbado, contra o qual foram lavrados cinco boletins de ocorrência ao longo dos anos, intoxicado pelo machismo e pela misoginia que se reproduzem tão naturalmente na sociedade brasileira. Essas ideologias não matam, mas servem de argumento para quem deseja matar.
A carta de Araújo – delirante e mórbida – termina com um apelo de vingança: “Chega!! Ela tem de pagar pelo que fez”.
É isso. As mulheres brasileiras e seus filhos pagam diariamente, na forma de violência e de morte, por tudo aquilo que fazem e não fazem. Muitos homens agem em relação às mulheres e às crianças com direitos de dono. Matam por traição, matam por abandono, matam porque estão bêbados ou frustrados. Matam, enfim, porque acham que têm direito a matar.
Quem defende esses justiceiros da honra, esses malucos da dignidade, esses sicários da masculinidade está tão doente ou tão eticamente perturbado quanto eles. Por isso é importante falar sobre Campinas – para que as simpatias nefastas não proliferem em nosso meio e em nossa sociedade.
Comecemos 2017 na direção da luz, não das trevas.

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