segunda-feira, 6 de março de 2017

A cantora yazidi que lidera tropas no Iraque

por Emma Graham-Harrison — publicado 01/03/2017

Khatoon Khider largou a música para combater o Estado Islâmico
Muito antes de Khatoon Khider pegar em uma arma, ela ficou famosa por cantar sobre outra mulher combatente, uma heroína trágica que, disfarçada, seguiu seu namorado para a guerra. E então, anos antes da criação do Estado Islâmico e quase uma década antes de seu país natal ser arrasado, ela se perguntava se um dia também teria de ir para a batalha.
Khider, cujo rosto é marcado pelas pequenas tatuagens azul-escuras típicas da região, integra a minoria yazidi do Iraque. Seu pequeno número e sua religião antiga e incomum, com um anjo-pavão e o tabu em relação à cor azul, causaram séculos de perseguição, por isso a tradição musical por ela herdada é cheia de histórias de guerra, massacres e perda. Sua própria vida também foi marcada pelo conflito, próximo e distante.
“Passamos toda a nossa vida em guerras, sem nenhum motivo”, diz, sentada no quartel ao norte do Monte Sinjar, onde vive hoje, depois de um exercício de madrugada com suas combatentes. Seu pai foi recrutado para lutar na Guerra Irã-Iraque meses depois de ela nascer, e logo caiu prisioneiro. Ela não o viu durante uma década, e acredita que sua ausência influenciou a cantora que ela se tornou.
“Quando eu era criança, meu avô e minha mãe sempre choravam porque meu pai estava preso no Irã, e alguma coisa me levou a expressar essa tristeza”, lembra-se. “Eu nunca vivi uma fase boa. Foi isso que me fez ser cantora.” A família de Khider era de pastores e músicos. Ela nasceu nos pastos elevados de verão no Monte Sinjar, onde os familiares acampavam durante meses todos os anos, engordando os rebanhos, e cresceu cercada de canções, intoxicada por sua herança musical.
Teve de abandonar a escola depois da sexta série, para trabalhar como ajudante nas fazendas locais. As sanções ao governo de Saddam Hussein tinham feito subir o preço dos alimentos, e a família precisava de mais dinheiro. De qualquer modo, não havia escola em sua aldeia.
Com as canções da infância em sua cabeça enquanto trabalhava, Khider pediu que seu cunhado lhe conseguisse um tanbour, instrumento parecido com um violão, e lhe ensinasse a tocar. Seus parentes logo se reuniam ao seu redor para ouvi-la cantar versões de suas baladas preferidas. Como mulher em uma sociedade conservadora, ela nunca esperou ser ouvida por alguém além da família.
“Eu cantava em casa, mas meu pai nunca percebeu”, recorda. “Eu não queria me apresentar em público, por causa de nossa cultura, que tradicionalmente não tem espaço para mulheres músicas.” Foi um primo que lançou a carreira de Khider, quando viu no talento dela uma oportunidade comercial para si mesmo. Ela nem sequer entendia como funcionava uma câmera quando ele a convidou para cantar para a família e secretamente gravou um vídeo da sessão.
O CD improvisado vendeu quase 4 mil cópias, um número extraordinário para uma sociedade pobre, de baixo desenvolvimento tecnológico. A fama repentina incomodou Khider, que temia a vergonha, até que seu pai lhe ofereceu apoio. O xeque Ali Shamsi era virtualmente um estranho para sua filha quando foi libertado do cativeiro, no fim dos anos 1980. “Fui encontrá-lo em um posto de controle quando foi solto, e havia dois homens com ele, colegas de prisão que haviam se tornado amigos. Eles tinham visto fotos minhas e me reconheceram antes que eu reconhecesse meu pai.”
No verão de 2014, o Estado Islâmico invadiu sua terra e a casa de sua família, assassinando, torturando e escravizando seu povo, amigos e parentes. Em alguns meses ela estava de uniforme, conduzida por um desejo furioso de vingança.
Khider é um soldado improvável, sob muitos aspectos: sorriso fácil, um pouco sonhadora e talvez não tão magra quanto a maioria dos comandantes. “Não tomei café da manhã, quero emagrecer um pouco”, conta com um sorriso, logo depois de supervisionar um exercício de madrugada.
Mas está totalmente comprometida. Jurou não cantar de novo enquanto seu povo não estiver livre, mesmo se isso significar que nunca mais cante. “Depois do que aconteceu com as mulheres e meninas yazidi, decidi parar de cantar até que me vingue”, afirma. “Talvez eu volte à música, mas acho que esse trabalho como soldado vai demorar muito.”
Hoje são quase 200 mulheres na unidade, algumas sobreviventes dos mercados de escravas do EI, outras levadas a se inscrever pelo destino de suas irmãs ou amigas, primas e tias. Inspiradas pelas mulheres curdas da Síria que travaram muitas batalhas contra o EI do outro lado da fronteira, elas viram que a própria existência da unidade é um golpe no inimigo.
“Todos os dias me vingo. É uma coisa vergonhosa para o EI que haja mulheres lutando contra eles. Eles acreditam que não irão para o céu se forem mortos por mulheres”, afirma Khider. “Eles não são tão corajosos. Fazem lavagem cerebral nos recrutados e os mandam à guerra.” 

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