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sábado, 8 de abril de 2017

“Não existe educação, nem acolhimento da mulher que aborta. Só preconceito”


Para a ginecologista Carolina Ambrogini, a proibição do aborto no Brasil é uma hipocrisia. O tema foi debatido durante o evento Elas por Elas
Evento Elas por Elas (Foto: Fabio Cordeiro)
A mediadora Cristiane Segatto, repórter especial de ÉPOCA, e as debatedoras Carla Simone Castro, Carolina Ambrogini e Ilka Teodoro durante o evento Elas por Elas (Foto: Fabio Cordeiro)

CRISTIANE SEGATTO

07/04/2017

A professora universitária Carla Simone Castro sofreu uma trombose cerebral sete meses depois de começar a tomar uma pílula anticoncepcional, história contada por ÉPOCA em uma reportagem de capa em 2015. Ainda na cama do hospital, com um tampão sobre o olho direito, ela gravou um vídeo que viralizou na internet. Foi o estopim da criação da página Vítimas de Anticoncepcionais – Unidas a Favor da Vida nas redes sociais e de um movimento de alerta sobre os riscos dos hormônios.
De lá para cá muita coisa aconteceu. A consciência crescente sobre os graves efeitos adversos leva as mulheres a preferir contraceptivos mais naturais e até a adotar aplicativos de celular para controlar o período fértil. Uma tendência já capturada pela indústria farmacêutica, segundo a ginecologista e sexóloga Carolina Ambrogini, da Universidade Federal de São Paulo. Precisamos de anticoncepcionais seguros, mas isso não basta. A advogada Ilka Teodoro, diretora da Artemis Aceleradora Social, defende a importância do debate sobre a legalização do aborto.
O encontro dessas mulheres ocorreu no evento Elas por Elas, realizado nos dias 31 de março e 1° de abril, no Rio. Representantes do jornal O Globo e das revistas ÉPOCA, Crescer, Glamour, Pequenas Empresas & Grandes Negócios, Galileu, Marie Claire Vogue se reuniram em um ciclo de palestras e debates sobre o empoderamento feminino. A seguir, os melhores momentos da discussão sobre saúde da mulher:     
Evento Elas por Elas Carla Simone Castro 2 (Foto: Fabio Cordeiro)
“A pílula é receitada como se fosse o maior dos benefícios para o empoderamento feminino, mas não se diz que ela também pode provocar efeitos danosos”, diz Carla Simone Castro  (Foto: Fabio Cordeiro)
Carla Simone Castro, professora do Instituto Federal de Brasília, criadora da página Vítimas de Anticoncepcionais – Unidas a Favor da Vida

“Há muita desinformação a respeito dos riscos do uso de hormônios pelas mulheres. A pílula anticoncepcional permitiu uma revolução no comportamento sexual feminino desde os anos 1960. Naquela época, ela continha dez vezes mais hormônios do que existe nas atuais.
Graças à pílula, a mulher pôde fazer um planejamento familiar e profissional. Foi um grande avanço, mas isso nos foi imputado como se a obrigatoriedade da contracepção fosse algo que coubesse somente à mulher. Soa como algo assim: ‘Você quer ter um comportamento sexual livre? Então assuma os riscos dos efeitos colaterais danosos’.
Quando falamos de efeitos colaterais, não estamos falando de uma dor de barriga, de uma gripe. Mas sim em acidente vascular cerebral (AVC), embolia pulmonar, trombose. Isso é muito grave. Isso mata.

Percebi que não se falava sobre os efeitos colaterais danosos da pílula anticoncepcional quando tive o AVC. Eu usava um DIU e fui à médica por causa de um mioma. Ela receitou uma pílula convencional para diminuir as cólicas e o sangramento. Em momento algum ela me alertou que aquilo poderia acontecer. E não era uma médica do SUS. Era a ginecologista mais cara de Goiânia. Que não aceitava plano de saúde, que cobrava R$ 1 mil a consulta. Quando tive o problema, ela me disse: “Nossa, você é um caso raro”.

Achei que tinha algo errado com essa afirmação. Meu neurologista disse que, provavelmente, o que aconteceu comigo foi causado pela pílula. Eu estava sem enxergar direito, mas ainda na UTI pedi meu celular para minha família e comecei a entrar nos portais acadêmicos.
Na primeira busca, encontrei 217 artigos correlacionando o uso de anticoncepcional à ocorrência de acidente vascular cerebral (AVC). Se isso é um efeito colateral conhecido há tanto tempo, por que minha médica não me falou?
O anticoncepcional é receitado como se fosse o maior dos benefícios para o empoderamento feminino, mas não se diz que ele também representa um risco iminente e grave. Se eu tivesse sido alertada, na primeira dor de cabeça que senti eu teria procurado ajuda. Fiquei seis meses sentindo dor de cabeça e tomando remédio. A médica me dizia que poderia ser uma sinusite. Procurei um otorrinolaringologista e ele disse que era sinusite. Tomei antibiótico e não era uma sinusite.
Os dois hemisférios do meu cérebro foram comprometidos por coágulos sanguíneos. Eu perdi cinco veias no cérebro. Passei um ano e meio entrando e saindo de hospitais. Perdi visão, movimentos e fala. Passei por duas cirurgias no cérebro. Foram dois anos e meio de fonoaudiologia e fisioterapia para conseguir me recuperar. Sou um caso que deu muita sorte. Conheci milhares de casos que não tiveram a mesma sorte que eu.

Não pretendemos demonizar a pílula. Ela tem algumas indicações, por exemplo, para quem tem endometriose. Na maioria dos casos, o uso é seguro. Mas se existe um risco mínimo, a mulher precisa ser comunicada sobre ele. Se ela vai escolher correr o risco, é uma questão pessoal.

É importante dizer: se o hormônio presente na pílula causa trombose, a gravidez é 15 vezes mais trombogênica. Até o terceiro mês de gravidez, o organismo da mulher se prepara para alterar os mecanismos de coagulação. Gravidez pode levar a uma situação tão grave quanto essa que eu vivi. É importante as mulheres saberem que elas precisam se proteger em relação a isso. O DIU pode ser uma alternativa ou o diafragma ou os métodos de ovulação.

Existem mulheres que têm uma predisposição genética a desenvolver coágulos sanguíneos. Isso se chama trombofilia. É o meu caso. Não sabia, nunca tive nenhum caso na família. Só depois de tudo descobri que tenho uma mutação no gene da protrombina.
Uma cartilha da Organização Mundial da Saúde (OMS) informa que mulheres portadoras de trombofilia não podem usar hormônio. Só é possível detectar isso através de um exame de sangue. Uma medida de prevenção seria oferecer às mulheres a possibilidade de fazer o exame. Isso não quer dizer que aquelas que não têm trombofilia não desenvolvam a doença pelo uso do medicamento. Só o anticoncepcional já altera os fatores de coagulação.
O que eu percebo depois desse movimento todo é que as mulheres começaram a modificar uma contingência cultural. Até então, nós íamos ao ginecologista e ele receitava a pílula como a primeira opção. Não se questionava muita coisa. Hoje, a internet nos deu poder. Nos conectamos por meio da internet. Quando aconteceu comigo, a informação que recebi foi a de que eu era um caso raro.

Acabei fazendo um vídeo no hospital para informar a meus alunos que não daria aula porque estava doente. O vídeo viralizou e comecei a receber depoimentos de mulheres do Brasil inteiro que tinham tido a mesma coisa. Começamos a ver que as histórias não eram tão raras assim. Juntei 11 mil casos no Brasil.

Depois elas começaram a abrir outros grupos de discussão nas redes sociais. Hoje, as mulheres chegam para os seus médicos e pedem outras opções. Muitas me dizem que estão conversando com o marido para que ele faça uma vasectomia. A contracepção não é uma obrigação feminina. Isso tem de ser uma obrigação do casal.”
Evento Elas por Elas Carolina Ambrogini  (Foto: Fabio Cordeiro)
“As mulheres não querem mais tomar pílula e os homens não querem usar camisinha. Ainda falta empoderamento delas para dizer que, sem preservativo, elas não vão transar”, afirma a ginecologista Carolina Ambrogini (Foto: Fabio Cordeiro)
Carolina Ambrogini, ginecologista, obstetra e sexóloga. Coordenadora do Projeto Afrodite da Universidade Federal de São Paulo

“A mulher e o médico devem ser protagonistas da escolha do método contraceptivo. O médico precisa explicar os riscos e benefícios. No caso da pílula, há mulheres que têm fatores de risco que vão se somando: mulheres fumantes, obesas, histórico familiar, enxaqueca com aura. E existem mulheres que não tinham esses fatores e têm uma trombofilia, como é o caso da Carla. 
Não existe método perfeito. Digo para minhas pacientes que o método perfeito é a vasectomia porque não mexe com o nosso corpo.

Às vezes, as pacientes chegam esperando a indicação de alguma coisa perfeita. Não querem sentir nada, não querem engordar, não querem isso e aquilo. Os contraceptivos trazem riscos. Há alguns benefícios também, além da função contraceptiva. Algumas mulheres procuram os hormônios para melhorar a pele e o cabelo, mas será que isso vale a pena?

Podemos fazer uma analogia com o título deste evento. De onde viemos? Viemos de uma época de muito machismo, de muita dominação masculina. Quando a pílula surgiu, foi como uma revolução. A mulher pôde exercer sua sexualidade, planejar sua vida, sair para o trabalho. Nesse aspecto, ela foi maravilhosa.
Como estamos? Estamos numa fase na qual a mulher usa pílula por 20 anos. Começa aos 15 anos e só vai parar aos 35. É muito tempo. Hoje vivemos esse questionamento. Temos de usar pílula por tanto tempo? É bom para o nosso organismo?
Mulheres como a Carla sofreram efeitos colaterais graves, mas há outros mais comuns. Perda de libido, por exemplo, é um efeito muito comum quando o uso da pílula é prolongado.

E para onde vamos? A indústria farmacêutica está percebendo esse movimento das pacientes, esse questionamento. Ela não está mais investindo em pílula. Está investindo em métodos mais seguros, que não tenham estrogênio. Está investindo em medicações que não provoquem o risco de trombose (que é gravíssimo) e que possam trazer um mínimo de efeitos colaterais. Os fabricantes investem em métodos de longa duração para que as mulheres não se preocupem em tomar todos os dias.

Há várias pesquisas de contraceptivos para os homens. Acho que não foram lançados até hoje porque talvez a indústria acredite que não haja muito mercado. Estamos nesse pé.

Ainda não percebo no consultório as mulheres exigindo dos homens que também se preocupem com a contracepção. Acho que ainda falta empoderamento para que elas digam que não vão transar se o parceiro não usar camisinha. Os homens não querem mais usar camisinha. Elas devem exigir isso até para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DST’s). Não só para evitar a gravidez, mas para preservar a saúde delas.

Temos visto um crescimento alarmante de sífilis, uma doença que já estava controlada. Por que isso acontece? Os homens não usam camisinha e as mulheres não exigem que eles usem camisinha.

Ao mesmo tempo, elas não querem mais usar pílula. O uso de DIU de cobre tem crescido. A Sociedade Americana de Pediatria já indica o DIU para adolescentes, mesmo que elas ainda não tenham iniciado sua vida sexual. No Brasil, pensar em adotar um método vaginal em uma menina virgem é algo que ainda causa espanto. Infelizmente, existe um culto muito forte ao hímen neste país. Mas é importante ressaltar que mulheres que ainda não tiveram filhos podem usar tanto o DIU de cobre quanto o DIU hormonal.

Muitas mulheres estão usando um aplicativo chamado Natural Cycles. Ele controla as datas do período fértil e tem um índice de eficácia semelhante ao da pílula. Funciona pela temperatura corporal. Todo dia, antes de levantar, a mulher tem de medir sua temperatura e registrar no aplicativo. Porém, ele exige disciplina da mulher e muito conhecimento de seu próprio corpo. Elas têm escolhido opções mais naturais. Enquanto isso, os homens ainda têm muita resistência à ideia de fazer vasectomia.” 
Evento Elas por Elas Ilka Teodoro (Foto: Fabio Cordeiro)
“A cada cinco mulheres na faixa dos 40 anos, uma já fez aborto em algum momento da vida”, diz a advogada Ilka Teodoro (Foto: Fabio Cordeiro)
Ilka Teodoro, advogada, diretora da Artemis Aceleradora Social e ex-presidente da Comissão da Mulher da OAB-DF

O aborto é um tema extremamente espinhoso. Ainda é um tema tabu na nossa sociedade. O tabu é aquela sujeirinha que a gente esconde debaixo do tapete. Ela fica ali coberta com o manto do autoengano. A gente finge que ela não está lá. Os outros fingem também e ninguém fala sobre isso.
O aborto hoje é considerado crime tanto para a pessoa que provoca o aborto quanto para a gestante. É punido com pena de detenção. A grande questão é que isso faz parte do Código Penal de 1940, uma época em que a mulher era considerada cidadão de segunda categoria. Fazia pouco tempo que ela havia conquistado o direito de votar. Pouquíssimas mulheres exerciam cargos eletivos naquela época.

É uma legislação completamente anacrônica, que não acompanhou as evoluções sociais. Existe hoje em tramitação no Congresso uma sugestão legislativa [SUG 15-2014] para mudar isso. O Senado tem um portal [o e-cidadania]. Por meio dele, qualquer cidadão com título de eleitor pode fazer sugestões para projetos de lei. Isso fica no site e as pessoas podem concordar e assinar eletronicamente. A partir de 20 mil assinaturas essa proposta tem seguimento como se fosse um projeto de lei. É um projeto de lei de iniciativa popular.
Um determinado cidadão fez uma sugestão de projeto de lei para regulamentar a interrupção da gravidez até a 12ª semana em setembro de 2014. Existe um clamor social para que esse assunto seja discutido. Além de a lei ser completamente anacrônica, ela não é mais compatível com a legislação que veio depois. Todo um sistema internacional de direitos fundamentais foi construído no pós-guerra. A nossa Constituição funciona como um sistema de garantias fundamentais e os direitos das mulheres estão ali previstos. Essa legislação de 1940 já não se compatibiliza com a nossa Constituição.

Estou me referindo a direitos das mulheres como dignidade, autonomia, direito de escolha, liberdade e autonomia sobre os nossos corpos. Isso tudo é incompatível com a legislação de 1940.
Em 2015, 503 mil mulheres abortaram no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, realizada pelo Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. O perfil da mulher que aborta, revelado pela pesquisa, quebra todo o estereótipo de que quem aborta é a mulher considerada promíscua. Quem aborta, em sua maioria, é jovem, tem filhos e declara ter algum tipo de religião majoritária (católica, evangélica ou espírita). A cada cinco mulheres na faixa dos 40 anos, uma já fez aborto em algum momento da vida. Essas mulheres precisam ou merecem estar presas? Estamos falando da mulher comum que, se for presa, vai deixar outros filhos órfãos em casa. Na maioria das vezes, elas são arrimo de família. Do total de abortos ocorridos em 2015, 67% acabaram em internação hospitalar decorrente de complicações do procedimento feito clandestinamente. O fato de o aborto ser crime não impede sua realização. Ele continua a ser praticado. A criminalização empurra as mulheres para a clandestinidade.
Podemos separar as mulheres em duas categorias: as que estão acima da lei (aquelas que a lei não vai alcançar porque elas têm condição financeira suficiente para abortar em alguma clínica discreta e com segurança) e a outra categoria de mulheres que realizam o aborto em condições totalmente precárias.

Essas mulheres, em sua maioria, são pobres, negras, indígenas. Ou sejam: são aqueles corpos para os quais convergem todo tipo de vulnerabilidade social: econômica, de raça, de gênero. Essas são as mulheres que morrem.

Quando a gente enfrenta a questão do aborto do ponto de vista de política pública, não estamos defendendo apenas a legalização do aborto. É preciso introduzir no país uma legislação que contemple todos os mecanismos necessários para que a mulher não seja colocada numa situação de necessidade de abortar.

Caso isso aconteça, que a ela seja garantido o aborto seguro. Quando falamos em política pública, estamos falando em acesso à informação, garantia de saúde integral da mulher (saúde física, psíquica, educação sexual desde a primeira infância, discussão de gênero nas escolas, representatividade política).

Se continuarmos a ter um Congresso extremamente fundamentalista, de homens brancos fazendo leis para homens brancos, vamos continuar com nossos direitos e nossas necessidades não sendo contemplados pelo Legislativo.

Precisamos de métodos contraceptivos para não engravidar. Só que os métodos não são 100% seguros. Então é preciso ter também de aborto legal para que as mulheres não morram.”
Carolina Ambrogini , ginecologista, obstetra e sexóloga. Coordenadora do Projeto Afrodite da Universidade Federal de São Paulo
“A proibição do aborto no Brasil é uma hipocrisia. A mulher, quando decide fazer o aborto, é porque está desesperada. A Ilka vivencia a questão das leis. Eu vivencio a questão prática, a questão humana. As mulheres pobres chegam em situação terrível porque a vizinha foi enfiar agulha de tricô. Sempre tem uma aborteira da comunidade. Ou elas enfiam sondas contaminadas no útero porque a infecção gera um abortamento espontâneo. Aí as pacientes chegam com sepse [infecção generalizada].   

A situação mais dramática da minha vida profissional foi o atendimento de uma mulher vítima de um aborto malfeito. Tivemos de fazer uma histerectomia [extração do útero] porque ela estava em sepse. Do contrário, ela morreria. Vivenciei o sofrimento de muitas outras mulheres. Elas chegam todos os dias.

Além disso, há as mulheres vítimas de violência sexual, que teriam direito ao serviço de aborto legal, e não têm acesso a ele. Em muitos casos, as mulheres são maltratadas até mesmo pela equipe médica. Não existe uma educação, um acolhimento, não existe nada. O que existe é um grande preconceito contra ela.”
(Cristiane Segatto é repórter especial de ÉPOCA, colunista de saúde de Época on-line e comentarista do Boletim Saúde e bem-estar da Rádio CBN)

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