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sábado, 6 de maio de 2017

Aplicação da Constituição proíbe que transexuais tenham "meia dignidade"

Antes de iniciar a abordagem deste tema, admito polêmico, é preciso um exercício de afastamento de nossas convicções pessoais sobre moralidade e religião, fincando nossa análise em uma direção estritamente jurídica, sob as luzes, principalmente, da Constituição Federal.
Nessa quadra, inegavelmente, estamos vivenciando uma revolução, não de armas, mas de conceitos.
Proposições antigas cedem espaço a uma nova realidade, agora alicerçada no direito fundamental à diferença.
Peço licença para citar um trecho de voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Aliomar Baleeiro, proferido no ano de 1968: "Mas o conceito de "obsceno", "imoral", "contrário aos bons costumes" é condicionado ao local e à época. Inúmeras atitudes aceitas no passado são repudiadas hoje, do mesmo modo que aceitamos sem pestanejar procedimentos repugnantes às gerações anteriores. A polícia do rio há 30 ou 40 anos não permitia que um rapaz se apresentasse de busto nu nas praias e parece que só mudou de critério quando o ex-rei Eduardo VIII, então príncipe de Gales, assim se exibiu com o irmão em Copacabana. O chamado bikini (ou duas peças) seria inconcebível em qualquer praia do mundo ocidental há 30 anos. Negro de braço dado com branca em público ou propósito de casamento entre ambos, constítuia crime e atentado aos bons costumes em vários estados norte-americanos do sul, até tempo bem próximo do atual.”[1]
De se anotar que nesta fase de transição entre realidades diferentes, não se consegue identificar o exato momento da ruptura, as alterações são contínuas, de modo que haverá um tempo em que ambas conviverão, fazendo aflorar, em maior escala no início da transição e em menor escala no seu final, momentos de conflito entre ambas.
Avançando, pois, na análise jurídica do tema, afasto de início a ideia de que haveria uma lacuna no sistema capaz de não reconhecer os direitos perseguidos legitimamente pelos transexuais.
A Constituição Federal fornece, com sobras, o suporte necessário para amparar a tese.
No seu preâmbulo, há afirmação expressa de que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, tendo como um valor supremo a sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Ainda, a dignidade da pessoa humana é fundamento da República, conforme artigo 1º, da Constituição Federal.[2]
Mais à frente, em seu artigo 3º, inciso IV, a Constituição Federal estabelece como objetivo fundamental da República promover o bem de todos, sem preconceitos, dentre outros, de sexo, terminando com a cláusula aberta “quaisquer outras formas de discriminação”.[3]
De se lembrar, também, que a Constituição Federal é, na sua essência, um diploma normativo inclusivo, donde não se deve admitir qualquer interpretação do seu texto capaz de reconhecer e admitir alguma forma de discriminação, protegendo o cidadão de sofrimentos evitáveis na sua esfera social de relacionamentos cotidianos.
Importante perceber que, o princípio da dignidade da pessoa humana, erigido, como vimos, em pilar do eixo central de garantias da Constituição Federal, comporta uma dimensão existencial capaz de permitir que os cidadãos busquem a própria felicidade, fazendo livremente as escolhas que lhe pareçam mais acertadas.
Aliás, a evolução da doutrina dos direitos humanos caminha para reconhecer sujeitos específicos de direitos, dando ao indivíduo uma visão particularizada, o que importa, como consequência, na hipótese de ocorrência de alguma violação dos seus direitos, em uma resposta individual, própria para uma determinada categoria tida como vulnerável no meio social, as chamadas minorias.
Então, cabe indagar: Quem é o transexual? Quem é essa pessoa que está a merecer essa especial proteção do Estado enquanto integrante de uma minoria, exigindo uma visão particularizada no meio social em que vive?
O transexual é o individuo que nasceu homem ou mulher, segundo os critérios então vigentes para a definição do sexo, porém cresceu e se desenvolveu no seu íntimo como um indivíduo do sexo oposto, com hábitos, reações e aspecto físico diverso do seu sexo morfológico.
Há, no individuo transexual, e isso se revela extremamente importante, um repudio ao sexo morfológico. Inclusive, o transexual não se enxerga como uma pessoa homossexual.  
Ele estranha o próprio corpo que a natureza lhe deu ao nascer, gerando uma perigosa frustação, um desconforto que conduz à automutilação e ao autoextermínio.
A ambiguidade sexual decorrente do fenômeno da transexualidade é meramente biológica, porque no sentido psicossocial, o transexual tem a convicção de pertencer ao sexo oposto, com sentimentos, percepções, índole e conduta assim condizentes, em contraposição à sua genitália que avilta o seu espírito.
Avançando na ideia de reconhecimento de direitos ao transexual, em que pese tratar-se de formalidade administrativa que não interfere no direito constitucional de escolha do seu projeto de vida, o registro público torna-se importante ante a sua natureza jurídica.
A Lei de Registros Públicos (Lei 6015/1973), cuja finalidade é conferir autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos da vida civil, adotou como critério distintivo dos sexos a conformação da genitália, ou seja, pênis para o sexo masculino e vagina para o sexo feminino.
Ocorre, porém, que, nos dias atuais, o critério do sexo aparente estabelecido pela Lei de Registro Públicos não é suficiente para a definição do gênero, impondo-se a consideração das condições psicológicas e sociais do indivíduo, definidoras da sua real sexualidade.
O transtorno de identidade sexual é doença catalogada na 10ª Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde (CID 10), vindo a cirurgia de redesignação de sexo como solução terapêutica para esses casos.
Aqui, cabe abrir um parêntese para afirmar que, em que pese a catalogação da OMS servir como fundamento para a superação do óbice previsto no Artigo 13, do Código Civil, que somente autoriza a disposição de parte do próprio corpo por exigência médica, ouso dizer que, um, não estamos diante de hipótese patológica, dois, o procedimento médico não é ato essencial para a definição do gênero.
A identidade sexual integra, ao meu sentir, os direitos da personalidade.
Vale, aqui, lembrar que o Brasil é signatário da Carta de Princípios de Yogyakarta (2006), documento universal que estabelece o claro afastamento de qualquer preconceito de gênero ou orientação sexual.
Afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da sua real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto.
Neste diapasão, é absolutamente irrelevante para a definição do direito de alterar o gênero e o prenome que constam do registro civil a realização do procedimento cirúrgico de redesignação sexual.
O transexual já sente, em seu íntimo, pertencer ao sexo oposto, de modo que a realização ou não do procedimento de redesignação sexual se mostra irrelevante para a definição do gênero e, por consequência, do direito de alteração do prenome.
O Poder Judiciário avançou bastante no tema, mesmo que o caminho ainda seja longo para a integral concretude dos direitos dos transexuais.
Importante lembrar que, para os casos de indivíduos transexuais que realizaram a cirurgia de redesignação, a jurisprudência aceita com certa tranquilidade, quiçá de forma pacífica, a alteração do gênero e do prenome, inclusive com dois precedentes no Superior Tribunal de Justiça.[4]
Em ambos os casos, o fundamento usado para permitir as alterações do registro civil, na essência, foi a desconformidade entre o sexo biológico imposto ao nascer (critério legal) e o psicológico que vive no íntimo do indivíduo.
Não há, adotando-se o fundamento utilizado pelo Superior Tribunal de Justiça, razão jurídica diversa que possa obstar o mesmo direito para os indivíduos transexuais não operados, pois estes também se sentem no seu íntimo como pertencentes ao sexo oposto.
A cirurgia de redesignação, na minha visão, é mera etapa complementar de todo um procedimento que inclui também, por exemplo, outras espécies de procedimentos cirúrgicos e a terapia hormonal.
Não é demais lembrar vários casos de pessoas que não podem se submeter ao ato cirúrgico ou que são temerosas em relação a qualquer espécie de intervenção médica.
Além disso, some-se que a redesignação do sexo feminino para o masculino constitui procedimento não comum e sujeito a maiores riscos do que a redesignação do sexo masculino para o feminino, além do que a eficácia do membro construído ainda é duvidosa no primeiro caso.
Lembro, por oportuno, que no caso da redesignação do sexo feminino para o masculino até mesmo o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS aceita a realização do procedimento.
Havendo, assim, e dessa exigência não há como se afastar, laudo técnico que ateste a condição de transexual (convicção íntima de pertencer ao sexo oposto), tal prova já é suficiente para permitir a alteração do gênero e do prenome, independentemente do ato cirúrgico.
Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, em sede de decisão monocrática, amparada na jurisprudência dominante da Corte, homologou sentença estrangeira que havia reconhecido o direito à alteração de gênero e prenome de pessoa transexual.[5][6]
No Tribunal de Justiça de São Paulo, na Apelação de Relatoria do Desembargador Vito Guglielmi e na Apelação da Relatoria do Desembargador Beretta da Silveira, o Tribunal admitiu, além do prenome, a alteração do gênero.[7]
Consta da primeira Apelação a observação no sentido de que a alteração deverá ser averbada no registro civil, informando que se deu por decisão judicial. Na visão da Sexta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, de um lado assegura-se o direito de terceiros, pois não há rompimento com a vida civil anterior e, de outro, preserva-se a dignidade e a privacidade do interessado, pois a informação não constará dos documentos de uso diário, constando, segundo a decisão, apenas da certidão de nascimento.
Sobre esse ponto, penso que melhor se revela o decidido pela Terceira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, no sentido de que a informação seja anotada no livro registral, ao exclusivo conhecimento do interessado ou constando apenas das certidões de inteiro teor, somente expedidas com autorização judicial, nos moldes do que já acontece com os casos de adoção.
A vingar a tese de que se pode admitir nas certidões do registro público qualquer referência, ainda que genérica, sobre a alteração do gênero e do prenome, estar-se-ia perpetuando o constrangimento, em clara afronta ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Nessa mesma linha, em sede Recurso Especial, com origem em Acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, da Relatoria do Ministro Marco Buzzi se decidiu nesse sentido.[8]
Vale lembrar, ainda, que a matéria está na pauta do Supremo Tribunal Federal, no objeto da ADI 4275, ajuizada pela Procuradoria Geral da República.
Por fim, cabe dizer que, sobre esse tema, estamos atrasados, ao menos no aspecto legislativo.
É que, enquanto em países como a Alemanha há legislação que permite aos pais, quando do nascimento do filho, adotar o sexo como indefinido e a Argentina que editou a Lei de Identidade de Gênero, no Brasil não há qualquer perspectiva nesse sentido.
O Brasil ainda sedimenta seu caminho, em passos lentos, com o reconhecimento por órgãos estatais do direito ao uso do Nome Social, ou seja, aquele pelo qual o transexual pretende ver-se chamado no meio social em que vive, sem alteração no assento de nascimento.
Algumas entidades de caráter privado, caso de escolas e universidades, avançam ao criar banheiros sem identificação de gênero ou extinguindo comemorações ligadas ao gênero, substituindo, por exemplo, o dia das mães e dos pais pela festa da família.
Não há mais espaço para meia dignidade. Ou aplicamos a Constituição Federal em sua inteireza ou rasgamos o seu Texto. Não se pode admitir mais que o cidadão transexual seja colocado à margem da sociedade.
O Poder Judiciário, atento à evolução do fato social, tem cumprido o seu papel. Cabe agora ao legislador, representante dessa sociedade plural, fazê-lo.
 

[1] Supremo Tribunal Federal, Relator Ministro Aliomar Baleeiro, Recurso em Mandado de Segurança 18.534, 2ª TURMA, JULGADO EM 01 DE OUTUBRO DE 1968.
[2] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.
[3] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
[4] Superior Tribunal de Justiça, Recursos Especiais 1.008.398/SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi, e 737.993/MG, Relator Ministro João Otávio de Noronha.
[5] SENTENÇA ESTRANGEIRA Nº 13.233 - ES (2015/0020486-7)
[6] SENTENÇA ESTRANGEIRA Nº 11.942 - IT (2014/0116950-3)
[7] Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível 0008359-56.2004.8.26.0505, 6ª Câmara de Direito de Privado, Relator Vito Guglielmi. Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível 0028083-77.2009.8.26.0562, 3ª Câmara de Direito Privado, Relator Beretta da Silveira.
[8] RECURSO ESPECIAL Nº 1.043.004 - RS (2008/0064846-9).
 é juiz de Direito, titular da 4ª Vara Cível da Comarca de Santos.

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