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quarta-feira, 3 de maio de 2017

Sobre o Crime de aborto

Pediram-me que comentasse o crime de aborto, do ponto de vista jurídico-filosófico. É o que farei, observando que estamos na véspera de muitas discussões sobre o tema que ocorrerão no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal.

Vejamos, em primeiro lugar, o que diz a lei, a começar pela Constituição Federal brasileira, da qual deve derivar todo o conjunto de prescrições legais infraconstitucionais.

Logo no “caput” de seu art. 5º, lemos:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)

Temos, assim, assegurada pela Carta Magna a inviolabilidade de cinco direitos fundamentais: à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. São, todos eles, direitos fundamentais e invioláveis, mas, sob o prisma filosófico, apenas o primeiro deles é absoluto, todos os demais são relativos.

Por exemplo, todos os cidadãos têm direito à liberdade, mas se um cidadão comete um crime e vem a ser condenado, ele pode ser privado da liberdade.

Todos têm direito à segurança, mas policiais militares, por força de sua função, podem ser expostos a situações de risco muito mais do que os cidadãos comuns.

Todos têm direito à propriedade, mas nem todos têm direito à mesma propriedade, havendo meios lícitos de a adquirir desigualmente, seja por trabalho, herança ou sorte (caso de loterias).

Quanto à igualdade, talvez seja o mais relativo dos cinco direitos elencados, já que, se todos são iguais perante a lei, e no exercício dos direitos políticos, não o são; nem poderiam ser social e economicamente, sem que a liberdade – outro direito fundamental – fosse tolhida.

Não há contradição alguma no fato de alguns direitos fundamentais serem invioláveis e ao mesmo tempo deverem ser entendidos de modo não absoluto, mas até certo ponto relativo. Na verdade, e atendo-me sempre a considerações de ordem filosófica, vemos que, dos cinco direitos fundamentais e invioláveis, ao primeiro deles, que é sempre absoluto, se ordenam os demais. A vida é condição absolutamente necessária para o exercício de quaisquer outros direitos; sem a vida, nenhum dos outros se sustenta nem sequer se explica. E como a vida constitui bem supremo, é a serviço dela que devemos, em lógica, entender os demais: por exemplo, por mais justo, razoável e inviolável que seja o meu direito de propriedade, o direito à vida de alguém que esteja prestes a morrer de fome passa acima do meu direito, e a pessoa, em determinadas circunstâncias muito especiais pode se apropriar legitimamente do meu bem, na medida necessária para preservar sua vida, um bem maior. Essa é a fundamentação da licitude do furto famélico, que, assim, não configura ilícito penal e não é também pecado, sob o aspecto da moral religiosa.

A vida, como bem supremo e como direito absoluto, é garantida de modo muito categórico em numerosas disposições da Constituição Federal e também o é na legislação menor, que deixa claríssimo que todos, sem exceção, são titulares desse direito, e o são desde a concepção até à morte.

O Código Civil, por exemplo, estabelece em seu art. 2º. que“a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. A distinção é bem clara: antes do nascimento com vida, não existe personalidade civil, mas o nascituro já é titular de direitos e, portanto, é um ser vivo. A lei lhe garante, entre outros, os direitos patrimoniais – inclusive para eventuais heranças futuras.

No mesmo sentido, temos o Código de Processo Civil em vigor (Lei n. 13.105/2015), quando legisla sobre o processo de partilhas:

Art. 650. Se um dos interessados for nascituro, o quinhão que lhe caberá será reservado em poder do inventariante até o seu nascimento.

Se o direito à vida, que é por definição conditio sine qua non e pré-requisito para todos os demais direitos individuais, não for reconhecido e garantido ao nascituro, será letra-morta a determinação legal que protege seu patrimônio. Em outras palavras, se o nascituro tem protegido pelo Estado e pela legislação seus eventuais direitos patrimoniais, a fortiori deve ter igualmente protegido seu direito maior e mais fundamental, que é o direito à vida.

Mais ainda, se o Estado e a legislação protegem de modo especial segmentos da população naturalmente mais desprotegidos ou fragilizados pelas circunstâncias concretas de idade – no caso das crianças, adolescentes e idosos – a fortiori deve assegurar proteção especial à mais desprotegida e vulnerável das condições humanas, que é a do nascituro. Nesse sentido, creio que seria lógico e urgente que se institua, paralelamente ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990) e ao Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003), um Estatuto do Nascituro – que já foi proposto e se arrasta há vários anos nos mecanismos do Legislativo.

Se a lei brasileira reconhece e protege os direitos fundamentais do nascituro, é razoável que a lei penal puna a agressão contra esses direitos. E de fato o fez. O Código Penal (Decreto-Lei n. 2.848, de 7/12/1940), tipifica e pune o aborto nos arts 124 e seguintes.

No art. 128, entretanto, prevê duas causas em que o aborto é lícito:


Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário 
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro (ou atentado violento ao pudor)
II - se a gravidez resulta de estupro ou atentado violento ao pudor e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Note-se que o Código Penal apenas exclui da ilicitude e exime de punição o aborto praticado nessas condições, mas não o recomenda nem o considera obrigatório aos profissionais da saúde. Embora já há quase 80 anos em vigor e sendo amplamente praticado no Brasil nessas condições, devo dizer que, do ponto de vista estritamente jurídico-filosófico, não vejo como não considerar um tanto contraditório o art. 128, II, com os quatro artigos que o precedem e, mais ainda, com o princípio constitucional básico do direito fundamental à vida. De fato, em estrita lógica, se o feto é um ser vivo, ainda que produzido por estupro ou atentado violento ao pudor, tem o direito de ser protegido. Caberia ao Estado garantir condições para que a infeliz vítima do estupro tenha condições médicas, de assistência psicológica e econômicas, para levar ao termo a gestação que não quis, do modo menos traumático possível e, depois do nascimento, igualmente proporcionar ao rebento condições dignas de criação, educação e sustento em alguma família que o deseje adotar, caso sua mãe prefira não o fazer. É um engano imaginar que, com o aborto, a situação psicológica terrível da pobre mãe automaticamente se resolve. Ela, infelizmente, carregará a vida inteira o trauma da violência pela qual passou, acrescida, talvez das terríveis sequelas que lhe causou o sempre traumático aborto ou atentado sexual.

Nos últimos tempos, especialmente em consequência da atuação de poderosos lobbies pró-aborto e de grupos radicais feministas, tem havido uma pressão muito forte não somente para a descriminalização do aborto, mas também para o reconhecimento formal do aborto como um direito da mulher, entendido como extensão do direito da mulher ao próprio corpo.

Alguns membros do egrégio STF parecem concordar com essa orientação e já têm tomado decisões polêmicas. Por exemplo, aquela adotada pela Primeira Turma do Pretório Excelso no dia 29 de novembro de 2016, quando suspendeu explicitamente contra legem a punibilidade por abortos até o terceiro mês da gestação. Data maxima venia, foi uma atitude polêmica que, a meu ver, ultrapassou de muito as atribuições próprias do Excelso Pretório, que não são legislativas, mas tão somente interpretativas da lei em caso de obscuridade.

Os movimentos pró-aborto parecem apostar no Judiciário para modificar gradualmente, passo a passo, uma legislação que os deputados e senadores não se dispõem a alterar, porque são eleitos pelo voto popular e sabem que a população brasileira, na sua maioria, tem formação religiosa e rejeita o aborto.

Não sou favorável à realização de um plebiscito a respeito, porque não posso admitir em princípio que a vida humana, garantida pelo Direito Natural e por cláusula pétrea da nossa Carta Magna, seja sequer posta em discussão. Mas tenho certeza de que, se realizado um plebiscito desses, a esmagadora maioria do povo brasileiro votaria pela vida.

Nas próximas semanas, mais uma decisão importante deverá ser tomada no âmbito do STF, ainda como desdobramento da polêmica decisão parcial anteriormente tomada. Noticia o “Estado de S. Paulo” de 2/4/2017:

“Instado pelo STF a se manifestar sobre a legalização do aborto até o terceiro mês de gestação, o governo Temer elaborou um documento para a AGU, no qual defende que “a vida do nascituro deve prevalecer sobre os desejos das gestantes”. Para o Planalto, a legislação atual, que proíbe a prática com poucas exceções, é adequada. O documento vai embasar a resposta da Advocacia da União à ministra Rosa Weber, relatora no STF de uma ação que trata da legalização do aborto, de autoria do PSOL e do Instituto Anis. O governo afirma na nota técnica que cabe ao Congresso alterar a atual lei sobre o aborto, mas destaca que “os representantes políticos da sociedade brasileira têm optado pela proteção dos interesses dos nascituros”.

Dois dias depois, lê-se em “O Globo”:

“Uma nota técnica enviada pela Presidência da República à AGU defende que uma eventual descriminalização do aborto deve ser discutida no Legislativo. O documento vai subsidiar a AGU na elaboração de um parecer com a posição do governo perante o STF, no julgamento de uma ação que pede a descriminalização do aborto até o terceiro mês de gravidez. A ação, que tem a ministra Rosa Weber como relatora, foi ajuizada pelo PSOL e pelo Instituto Anis. A expectativa é de que a ministra da AGU, Grace Mendonça, envie ainda no início desta semana o documento à Corte. O parecer vai retratar a posição do governo, mas com embasamento jurídico aprofundado. Além de defender o Congresso como palco para alterações na legislação penal, a nota argumenta que o direito do nascituro deve ser garantido. Por isso, as mulheres não devem poder dispor da vida do feto.”

       A julgar por essas duas notícias, parece estar havendo uma “queda de braço” entre os Poderes da República, a propósito da polêmica questão do aborto. Parece a Presidência da República empenhada em garantir as prerrogativas do Legislativo contra... o garantismo excessivo do STF.

Contra o movimento pró-aborto erguem-se, como é explicável, grupos religiosos que por razões de consciência não concordam com essa posição.

Nestes comentários, estou me cingindo, como proposto, aos aspectos jurídicos e filosóficos da questão, abstraindo de aspectos religiosos. É claro que eu tenho minha posição individual consentânea com a minha religião, mas não é isso o que vem ao caso no momento. Do ponto de vista filosófico, não me parece que se possa dizer que a mulher seja dona, no sentido próprio, do feto que leva em seu ventre. Em primeiro lugar, porque também a outra parte, ou seja, o pai, participou de sua formação e, pelo menos em parte também tem direito àquele fruto do seu sêmen. Em segundo lugar, porque, se a lei prevê, até por motivos de Direito Civil, que o feto tem protegidos seus direitos patrimoniais, como negar a ele o primeiro de todos os direitos, que é o da vida?

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