quinta-feira, 27 de julho de 2017

Entenda a polêmica da alienação parental

25.07.2017 - POR MARIA LAURA NEVES

Uma mãe diz que encontrou sêmen na roupa da filha; outra garante que o pai colocou o dedo no bumbum de seus meninos; a terceira, que o ex-marido negligencia os remédios que a criança precisa para evitar um transplante. Em comum, depois de denunciar os homens à Justiça, todas foram acusadas de manipular os filhos. A retaliação? A possibilidade de nunca mais vê-los. Criada para proteger os menores das brigas de ex-casais, a lei nº 12.318 pode ter se tornado um instrumento eficaz para calar as mulheres

Foi ao ver o movimento de uma cobra serpenteando em um desenho na televisão que Julia*, então com 5 anos, descreveu à mãe o que o pai fazia com ela, durante a noite, na cama. A suspeita de que ele abusava da menina já tinha alguns meses, mas aquela era a primeira vez que a criança verbalizava o assunto. “Quem desconfiou foi a avó, que viu sêmen no pijaminha dela quando foi lavá-lo. Só acreditei quando ouvi da minha filha”, diz a mãe, a advogada paulistana Paula*, de 45 anos, que não pode revelar a identidade pois o processo corre em segredo de Justiça. “A escola também a alertou de que algo não ia bem. Me disseram que Julia andava muito sonolenta, sob a justificativa de que ‘o pai não a deixara dormir à noite’.” Paula conta que o marido trabalhava durante a madrugada, com comércio exterior. Como a maioria das transações eram com a China, ficava até tarde no computador. Depois, deitava-se na cama da menina, onde passava a noite. “Nosso casamento ia mal. Pensava que ele dormia com ela por saudade”, conta. Depois do comentário sobre a cobra, Paula partiu para a Justiça e denunciou o ex-marido por abuso. Por falta de provas, no entanto, ele foi inocentado. E, com o veredito em mãos, partiu para o ataque. “Para livrar a própria barra, me acusou de alienação parental”, diz a advogada. “Ou seja, diz que estou inventando essa história para manipular minha filha contra ele.” 

A briga continua na Justiça. A menina segue com a mãe, enquanto advogados disputam uma sentença que determine se as suspeitas de Paula podem, ou não, ser consideradas uma tentativa de atacar o ex-marido por meio da menina. “Ele nunca ligou para saber de Julia. Tudo o que quer com essa ação é limpar seu nome. Está me processando para me calar e desqualificar a denúncia de abuso sexual”, afirma a mãe. Ela diz que Julia, hoje com 12 anos, ficou com sequelas emocionais por causa da suposta agressão. “Até os 9 anos, fazia cocô na calcinha, inclusive na escola, o que a tornou vítima de bullying.” Em seu escritório na Zona Leste de São Paulo, a advogada diz que reúne dezenas de casos semelhantes ao seu. São mulheres que, depois de denunciar a suspeita de abuso sexual cometido pelo pai dos filhos, foram acusadas por eles de alienação parental. Silenciadas por seus ex, elas seguem impotentes diante das suspeitas. É por isso que Marie Claire decidiu fazer esta matéria.

Promulgada em 2010, a lei que pune a alienação parental visa proteger crianças de pais, mães ou cuidadores que as usam como instrumento de vingança para atingir o exparceiro ao maldizê-lo ou proibi-lo de conviver. Pune pais alienadores porque crianças que vivem essa situação costumam ter sérias complicações psicológicas, como depressão e até suicídio. As penas variam. Começam com uma advertência ao alienador e vão até o impedimento do convívio. No meio desse imbróglio, as mães que suspeitam dos abusos, por insistirem na denúncia, chegam, muitas vezes, ao ponto de não verem mais os próprios filhos. “Instruídos por advogados antiéticos, alguns pais podem usar a lei como estratégia de defesa e de intimidação da ex-mulher”, afirma a promotora pública Silvia Chakian, de São Paulo. “É uma violência muito pesada para as mães”, completa. A presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB, Katia Boulos, reforça o argumento. “O problema não é a lei, que é excelente e muito bem elaborada. Mas algumas pessoas a usam de forma equivocada.” Ainda existe o agravante de que, se a mãe suspeita de abuso e não faz a denúncia à polícia, pode ser acusada de cúmplice do crime.

Para evitar que as suspeitas se virem contra as mães que acusam de abuso sexual, a Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Cepevid), formada por promotores de Justiça do Brasil todo, homologou, em fevereiro, um enunciado em que sugere que, mesmo que o assédio não seja comprovado, a mãe não pode ser processada por alienação parental se denuncia um crime sexual contra seus filhos. “Os abusos são difíceis de provar. Em geral, acontecem dentro de casa e não deixam vestígios”, diz a promotora de Justiça de São Paulo, Valéria Scarance, por trás da iniciativa do Cepevid. “É verdade que há uma avalanche de falsas denúncias, mas é injusto que uma mãe seja considerada alienadora diante de uma dúvida da Justiça. É um mau uso da alienação parental”, completa.

A boa notícia é que, em março, a Câmara dos Deputados aprovou o texto da deputada Maria do Rosário (PT-RS) que torna lei a proteção de crianças em depoimentos de abuso. A nova regra deve ajudar no esclarecimento de casos espinhosos. A determinação é que a Justiça só pode colher o depoimento da criança uma vez – o que evita que ela reviva a violência cada vez que a verbaliza, como acontece nos tribunais atualmente. Também obriga que as vítimas sejam ouvidas de forma protegida e lúdica, por profissionais especializados. A quebra de sigilo dos depoimentos que seguem em segredo de Justiça também se tornará crime, com até quatro anos de prisão. “Onde essa forma de depoimento foi aplicada, o índice de detenção dos culpados foi de 80%. Com ela, chega-se à verdade mais facilmente”, diz Maria do Rosário. Para não expor as crianças nessa situação, Marie Claire optou por deixar fictícios todos os nomes desta reportagem.

Outras dores 
Mulheres que denunciam os pais por outros motivos além do abuso sexual, como maus-tratos e negligência, também se dizem vítimas de falsas acusações de alienação parental. É nessa situação que se encontra a bióloga Clara*, 43 anos, mãe de Luisa*, 6. A história de amor com o pai da menina começou em 2000, no Pantanal, onde trabalhava como guia turística. Lá, o conheceu por meio de amigos. Namoraram por seis meses e decidiram morar na Europa, onde ele tinha parentes. Mudaram-se para a França e ficaram seis anos juntos. “Ao longo dos anos, Raul* se mostrou muito nervoso. Era ciumento. Começou a jogar objetos contra a parede nos momentos de fúria e me acertou propositalmente.” Em meio a idas e vindas, tiveram uma filha que, aos 7 meses, foi diagnosticada com uma doença pulmonar. Segundo a mãe, se não tratada, pode levar a um transplante. “Confio mais nos médicos brasileiros e decidi procurar tratamento aqui.” Ela viajou com a menina para São Paulo em 2015. O marido ficou. “Essa foi também uma maneira de sair de um relacionamento abusivo”, diz a mãe. Foi quando começaram as brigas e a disputa pela menina. A versão de Clara é a de que o pai questiona a a doença da filha e, por isso, ela o impediu de vê-la. “Ela voltava pior das visitas. Temi pela vida dela.” Denunciou, então, o pai por maus-tratos. Ele acusou-a de alienação.

Procurado por Marie Claire, preferiu não dar entrevista. Sua advogada, no entanto, disse que é o caso de alienação parental mais triste que pegou na vida. “Ele mudou de país para ficar perto da filha e é mentira que ele não reconhece sua doença. Ele a trata. Faz meses que não vê a menina e, na última vez que se encontraram, quando abriu os braços para abraçá-la, ela correu para a mãe, que manipulou sua cabecinha”, afirma a advogada. “Meu cliente é impulsivo, é verdade, e não consegue se resolver com a ex­­­­­‑mulher, mas isso é diferente de ser um pai ruim. Isso ele não é”, completa. “Não damos entrevistas para evitar mais conflitos.” A briga, no entanto, continua.

O termo síndrome de alienação parental foi cunhado nos anos 1970 pelo psiquiatra americano Richard Gardner, que identificou um padrão entre casais ressentidos após o divórcio. Ele se baseou em estudos que mostram que os pais são capazes de manipular os filhos para que reproduzam acusações, mesmo que elas sejam fantasiosas. A advogada de família Maria Berenice Dias argumenta que a lei brasileira é também uma conquista do movimento feminista. “Quando os pais começaram a dividir as tarefas com as mulheres, aproximaram-se dos filhos. A lei garante o direito de convívio quando uma das partes tenta obstruí-lo”, diz.

“Instruídos por advogados antiéticos, alguns pais podem usar a lei como estratégia de defesa e intimidação da ex-mulher”
Silvia Chakian, promotora de Justiça

Infelizmente, independentemente de as acusações de abuso ou maus-tratos feitas por essas mães serem verdadeiras, o fato é que as crianças alvos de disputas vivem um terror singular. “Os filhos acabam massacrados pelo sentimento de traição. Para onde vão, sentem que estão traindo o outro. Carregam o trauma pelo resto da vida. E os advogados não estão nem aí”, afirma a psicanalista carioca Eva Bruckner, que atua também como perita em casos de litígio.

É o que acontece com Manuel*, 10, e Bruno*, 8, filhos da também advogada paulistana Solange*. Depois de se separar de Carlos*, com quem viveu por dez anos, começou a suspeitar do comportamento dele ao ouvir os relatos dos meninos quando voltavam dos fins de semana. “Eles disseram que o pai mexia com o pipi deles, que colocou o dedo no bumbum”, diz. “Eles tinham 6 e 4 anos quando tudo começou.” Solange denunciou o ex­marido. Após uma longa disputa jurídica, ele foi considerado inocente. Depois de insistir na suspeita e ser advertida e multada, ela perdeu a guarda. “Eles não queriam de jeito nenhum mudar para a casa do pai”, conta. “Estou há seis meses sem vê-los.” A decisão do juiz foi a de que a convivência com a mãe é altamente prejudicial para as crianças. Solange conta que, na última vez que as viu, em uma festa de aniversário, o mais velho não quis conversar. O mais novo, ao vê-la, colocou as mãos nos ouvidos e disse: “Não quero mais briga, não quero mais briga”. Diante da situação, ela garante: “Vou brigar até o fim pelos meus filhos. A Justiça pode não acreditar neles, mas eu acredito”. E você, em quem acredita?


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