Faço dessa crônica minha macumba textual. Que a literatura não seja mais terra de macho. E que estes abandonem o que tanto os amedronta nas escritoras
Por Maria Bitarello
“A mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela
se pretende mesmo escrever ficção.”
Virginia Woolf, em Um teto todo seu
Em português, existem as palavras embaixadora e embaixatriz. São distintas. Embaixadora é o feminino de embaixador, ou seja, uma mulher que representa seu país em outro país, uma diplomata do escalão mais alto. Embaixatriz é o nome dado à mulher do embaixador. A primeira-dama, digamos assim. Aliás, bem assim mesmo. Tanto embaixatriz quanto primeira-dama são termos sem equivalente referência masculina. Que eu saiba, não existe um nome pro marido da embaixadora nem pro da presidenta. Chama-se essa pessoa por seu nome próprio. Afinal, não se trata de um título de nobreza transferível via casamento.
Me pus a pensar nisso motivada por escritoras que foram também casadas com escritores. Exemplos: esperava-se da poeta e contista Sylvia Plath ser, primeiramente, mulher do também poeta Ted Hughes; Martha Gellhorn, uma das correspondentes de guerra mais importantes do século 20, foi célebre por ser esposa de Ernest Hemingway. E a lista segue. Mas quantos homens são conhecidos, publicamente, por serem maridos de uma escritora? Não me lembrei de nenhum.
Literatura é terra de macho. Em 1971, em uma fala que ficou conhecida, a escritora americana Susan Sontag enquadra o escritor e machão à moda antiga, Norman Mailer, quando ele se refere a outra autora como lady writer. Em inglês, existe até o termo chick lit – literatura feita por e pra garotas –, pra sugerir que se trata de uma literatura inferior. No vídeo acessível pelo link acima, Sontag indaga Mailer por que é preciso fazer a distinção da “mulher escritora” se a mesma distinção não é feita para os homens. Por que a palavra writer, sem gênero, remete necessariamente a um homem, foi sua dúvida. Por que a literatura com L maiúsculo é território masculino. E, subliminarmente, o que tanto os amedronta nas escritoras. Penso eu que o medo seja da exposição de toda a farsa e da consequente perda de privilégios. Só um chute.
Pra evitar tal exposição, é preciso que as moças entendam seus lugares ou então que caiam fora. E o esquema a ser compreendido é o seguinte: você é bem vinda no meio literário como groupie (fanzoca) ou como musa, ambos papéis inofensivos e sexualizados. Assim, você permanece maravilhosa, desejada, uma mulher inteligente, letrada, que ama bons livros, mas não compete. O que de melhor pode haver nesse mundo?
Homens, segundo pesquisas, leem escritores homens que criam protagonistas masculinos que, por sua vez, são frequentemente escritores também. Respire fundo e clique pra ler as estatísticas de 2013 sobre a literatura nacional. São assustadoras: 72% dos autores publicados são homens. O ambiente é não só masculino, mas branco, heterossexual, ocidental, urbano e de classe média. Aqueles e aquelas que fogem do perfil estão condenados a ocupar as prateleiras menos nobres da livraria e, esse ano, surpreendentemente, muitas das mesas da FLIP, a Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece esse mês. É verdade. Pela primeira vez, desde a inauguração do evento em 2003, há mais mulheres na programação do que homens: 24 a 22.
Não estou dizendo que não haja motivos pra se comemorar, mas trata-se de uma diferença mais importante em níveis simbólicos que absolutos. Afinal, até hoje, no mundo todo, dos 111 premiados com o Nobel, apenas 13 são mulheres. No Brasil, dos 40 membros da Academia Brasileira de Letras, apenas 5 são mulheres. Rachel de Queiroz foi a primeira, em 1994, quando a instituição comemorou seu primeiro centenário. Cem anos se passaram sem que nenhuma mulher ingressasse. E só agora, também nesse mês de julho, uma mulher foi contemplada, pela primeira vez, com o Prêmio de Literatura do Estado de Minas Gerais pelo Conjunto da Obra. A mulher: Adélia Prado.
São conquistas importantes, mas a caminhada ainda é longa e cheia de obstáculos fálicos. Dentro do tabu da mulher que escreve, por exemplo, ainda existe o tabu dos tabus, que é o romance. Mulheres podem ser jornalistas, poetas, às vezes letristas de música, até contistas, mas não romancistas. Romance, dizem, é coisa de homem.
Faço dessa crônica minha macumba textual. Que injustiças como essa se reparem com mais eficiência. Que a história não demore mais uma vida inteira pra reconhecer a grandeza de escritoras tornadas invisíveis, como Hilda Hilst – que ainda por cima escrevia literatura erótica, que audácia. Que a geração atual de autoras de ficção não seja reconhecida apenas postumamente. E que os escritores e escritoras sejam tão diversos quanto as histórias que contam e os leitores que as leem. As estantes, com certeza, serão muito mais coloridas.
Outras Palavras
Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário