Tem-se ouvido falar muito, nos últimos dias, sobre “sextorsão” e “estupro virtual”, graças, particularmente, a uma recente decisão proferida pelo juiz de Direito da central de inquéritos de Teresina, Luiz Moura, que decretou a prisão temporária de um indivíduo, imputado da prática de crime de estupro (CP, art. 213), após trabalho de investigação levado a efeito pela Polícia Civil e pelo Ministério Público locais. Esse caso tem sido propalado em meio às redes sociais de todo o país como sendo o primeiro episódio de estupro ocorrido por meio virtual; uma decisão judicial inédita, entretanto, absolutamente equivocada sob o ponto de vista jurídico, conforme se pretende demonstrar no decorrer do presente artigo jurídico.
O caso retratado é o seguinte: uma estudante universitária de 30 anos resolveu denunciar seu ex-namorado porque ele prometeu divulgar fotos e vídeos íntimos da vítima, obtidos sem o seu consentimento, caso ela não praticasse atos libidinosos em si mesma, consubstanciados na introdução de objetos em sua vagina e na automasturbação. Por tal prática, o indivíduo foi preso e está sendo “acusado” de ter cometido estupro.
Referido magistrado, em entrevista jornalística divulgada em canal do Youtube, refere-se ao presente caso como se tratando de uma “sextorsão” e de um “estupro virtual”, fazendo-o, aliás, com contundente efusão, aguardando — é o que parece — receber as congratulações e homenagens pelo feito, na expectativa de que sua decisão reverbere pelo Brasil e sirva de exemplo e incentivo a outras que poderão vir — e virão; certamente (e infelizmente), virão.
Mas, qual o verdadeiro sentido da expressão “sextorsão”? Tentemos explicá-lo.
Originária da língua inglesa, sextorsion decorre da aglutinação de duas expressões, sex e corruption, significando uma forma de exploração sexual na qual uma pessoa é chantageada com uma imagem ou vídeo de si mesma desnuda ou realizando atos sexuais que geralmente foram previamente compartilhados mediante sexting,[1] fruto das expressões sex e texting, que implica a troca de mensagens ou fotografias de cunho sexual, difundida no meio legal e jurídico mundial — inicialmente nos Estados Unidos da América — no contexto de cyberstalking, como uma das modalidades de cyberbulling.[2] Com a sextorsion, a vítima é coagida para ter relações sexuais com alguém, entregar-lhe mais imagens eróticas ou pornográficas, dinheiro ou alguma outra contrapartida, sempre sob a ameaça de difusão das imagens originais caso ela não aquiesça às exigências do chantagista.
Porém, uma vez já adaptada em Terra Brasilis, a expressão “sextorsão” sugere a reunião de “sexo” e “extorsão” — este, considerado crime em nosso ordenamento jurídico-penal (CP, art. 158) —, denotando uma situação em que uma relação de poder é utilizada como instrumento para a obtenção de vantagem de natureza sexual.
Quanto à expressão “estupro virtual”, trata-se, na verdade, de cometimento do crime de estupro, utilizando-se a internet como meio para se alcançar o fim descrito no tipo em questão. A internet opera como meio de constrangimento (grave ameaça) para que o agente tenha contato com a vítima, possibilitando, assim, a prática de ato libidinoso dissentido entre eles. Portanto, não há crime de “estupro virtual”; não se trata aqui de tipo penal autônomo previsto no Código Penal, nem mesmo indicado na Reforma do Estatuto Repressivo (PL 236/12).
Feitas essas singelas explanações, voltemos as nossas atenções à decisão judicial em tela e às explicações jurídicas do magistrado integrante da Justiça piauiense.
Diante dos fatos praticados pelo ex-namorado da vítima, o juiz Luiz Moura mandou a Polícia prendê-lo pelo suposto cometimento de estupro. Em entrevista jornalística disponível no Youtube,[3] Sua Excelência afirmou que o estupro virtual é um tipo do crime de “sextorsão” e que não se trata de um crime físico. Disse ainda, que o caso investigado se enquadra perfeitamente no delito de estupro porque houve um constrangimento, uma ameaça por parte daquele indivíduo, conduta que é suficiente para a tipificação do estupro, sendo prescindível o contato físico de colorido sexual. Então, como em razão do constrangimento levado a cabo pelo agente, a vítima praticou, em si própria, os já referidos atos libidinosos (a introdução de objetos na vagina e a automasturbação), restou, em tese, configurado o crime de estupro.
Ao afirmar que o estupro virtual é um tipo do crime de “sextorsão”, o juiz Moura dá a entender que existe um tipo penal dotado dessa nomenclatura no ordenamento jurídico pátrio, quando isso não é verdade, assim como não é correto se falar em estupro virtual. O estupro só pode ser real, nunca virtual; este pode ser, no máximo, um instrumento para se alcançá-lo.
De outra banda, quando o magistrado afirma que não se trata de um crime físico e que basta o constrangimento para a configuração do crime de estupro — conectando a este o fictício “delito de sextorsão” —, insinua que esse tipo penal abarca também as situações nas quais a vítima pratica atos libidinosos consigo mesma, o que não pode ser aceito pelo simples fato de afrontar ao princípio da legalidade. Além disso, com sua afirmação ele atende perigosamente aos anseios de outros colegas juízes, defensores da tese de que o contato físico é desnecessário no contexto do estupro, alegação que deve igualmente ser preterida pelo mesmo primado constitucional.
Sem prejuízo da análise jurídica que se poderia levar a cabo, nesta oportunidade, acerca da afrontosa abertura do tipo penal de estupro, com a presença do elemento normativo “outro ato libidinoso” e quanto à desproporcionalidade patente em relação à inaceitável previsão abstrata da mesma pena privativa de liberdade para fatos diversos que podem surgir no caso concreto, os quais, apesar de direcionados à mesma tipicidade formal, substancialmente, apresentam valoração jurídica e reprovação social diametralmente opostas,[4] devemos afastar o perigoso pensamento, extraído da decisão judicial em comento, de que a vítima, constrangida pelo agente, que pratica ato libidinoso em si mesma conduz à responsabilidade penal daquele pelo crime de estupro.
O delito de estupro, previsto no artigo 213 do Código Penal, é composto pelos seguintes elementos objetivos: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Percebe-se, que a redação típica demanda a compreensão de que o ato tem que ser praticado pela, com ou sobre a vítima. Em outras palavras, só há crime de estupro com a intervenção material do sujeito ativo, pois se o constrangimento vem para que a vítima permita que com ele se pratique ato libidinoso, também vem para que ela pratique com ele ato libidinoso, o qual, em ambas as situações, pode ou não consistir em uma conjunção carnal. Logo, sua participação é indispensável.
Partindo-se desse raciocínio, a conduta em questão (introdução de objetos na vagina e automasturbação), como foram praticados pela própria vítima em si mesma, não podem conduzir à tipificação do estupro, em respeito ao princípio da legalidade, configurando-se, ao máximo, o delito de constrangimento ilegal, previsto no artigo 146 do Código Penal.
Outro perigoso entendimento que deriva do mencionado decisum é o que compreende irrelevante, para a configuração do delito de estupro, que haja um contato físico entre ofensor e ofendido, tese que ganhou expressão nacional em julgado da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 2/8/2016, embora em um caso que tratou de estupro de vulnerável (CP, art. 217-A).
Ao que parece, levando-se em consideração a linha decisória do magistrado do Piauí, a conduta de contemplar lascivamente, sem contato físico, tendo como pressuposto a existência do constrangimento, deve mesmo conduzir à tipificação do delito de estupro. Na verdade, essa tese desconsidera por completo o princípio da legalidade, gerando mais insegurança jurídica em um cenário social já bastante sofrido com a presença inflacionada de leis penais construídas a partir de uma irracionalidade legislativa que parece não ter fim.
E, para complicar tudo isso, não podemos esquecer que o delito de estupro é considerado crime hediondo (art. 1º, V, Lei 8.072/90) e inafiançável, cuja pena privativa de liberdade, na hipótese de condenação penal, varia entre seis e dez anos de reclusão, além de outros consectários processuais penais especialmente gravosos.
Portanto, data maxima vênia da decisão do juiz Luiz Moura, a qual, em conformidade com o nosso posicionamento, foi juridicamente equivocada, sentimos a necessidade de trazer à lume os perigos que a mesma transcende para todos aqueles que militam no direito penal, criando um palco perfeito para a atuação daqueles que pregam um direito penal do inimigo no Brasil, mas que, de outro lado, incentivam aqueles que constante e incansavelmente, defendem e lutam por um direito penal garantista, em sintonia com o nosso Estado Social e Democrático de Direito.
[1] ‘Sextortion’ charges to come up next week. Los Angeles Times, 5 de abril de 1950. Disponível em: https://pqasb.pqarchiver.com/latimes. Acesso em 06/08/2017.
[2] SYDOW, Spencer Toth; CASTRO, Ana Lara Camargo de. Sextorsão. Revista Liberdades, São Paulo, n. 21, jan.-abr. 2016, p. 12.
[3] Disponível em: https://www.youtube.com./watch?v=WtdfJH1UV8c. Acesso em 08/08/2017.
[4] Sobre essas e outras questões, consultar: MARTINS, José Renato. O delito de estupro após o advento da Lei nº 12.015/09: questões controvertidas em face das garantias constitucionais. Anais do X Simpósio de Direito Constitucional da ABDConst. Curitiba: ABDConst, 2013.
José Renato Martins é advogado e professor universitário.
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