sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

O medo de ser nós

Muitos romances terminam precocemente quando alguém reage em pânico à possibilidade de ser engolido ou controlado pelo outro

IVAN MARTINS
03/01/2018

Neste ano que passou, redescobri o prazer de usar a palavra nós. Ao mesmo tempo, fui lembrado de como é difícil deixar de ser eu – e me ocorreu, numa noite de angústia, que talvez nisso resida uma das dificuldades secretas dos relacionamentos.


No começo, quando a gente conhece alguém, é delicioso se confundir com ele ou com ela – nas opiniões, no corpo, nas emoções que parecem nascer idênticas. Infelizmente, esse momento passa rápido.

Assim que o convívio se prolonga e os sentimentos se aprofundam, é possível perceber, dentro de nós, sinais de contrariedade. Nossa personalidade – livre na solidão, senhora de si na ausência do outro – começa a se inquietar com a influência externa poderosa, que se mistura àquilo que somos e que de alguma forma nos ameaça.

Muitos romances terminam aí, precocemente, quando alguém reage em pânico à possibilidade de ser engolido ou controlado pelo outro.

Existe algo em nós que se exaspera ao perceber que a outra pessoa, de alguma forma, vai se tornando parte do que somos: ela habita nossos sonhos, povoa nossas preocupações e preenche as horas de nossos dias. Viver sem ela parece impossível. Viver com ela nos inquieta.

A indústria do amor nos faz crer que todo mundo está louco para ter uma experiência como essa, mas não é verdade. Muita gente não está preparada para ter alguém tão perto de si. Muitos se sentem profundamente incomodados em abrir sua intimidade ou penetrar a intimidade dos outros.

Parte do sucesso dos aplicativos de relacionamento se explica pelo fato de que eles permitem obter sexo com o mínimo de contato emocional. Há milhões de pessoas que gostam de transar, mas não toleram as emoções que surgem do convívio erótico e afetivo com outros seres humanos.

Se você não faz parte desse grupo, parabéns, mas não significa que está livre de problemas. Aceitar o convívio íntimo com o outro, concordar em partilhar o tempo e o corpo com ele não encerra o embate interior em que essa convivência nos lança.

Como eu disse no início, é difícil deixar de ser eu para ser nós. Alguém dirá, com razão, que essa mudança não é sequer desejável, e estará certo. Ninguém deveria deixar de ser o que é para se tornar parte de uma entidade híbrida de duas pessoas. Ou, ainda pior, para subjugar-se voluntariamente à personalidade do outro.

Entretanto, a intensidade conjugal depende de que algo dessa natureza escandalosa aconteça no interior do relacionamento. Se uma das partes do casal não abdicar de um pedaço importante de si, se os dois não entregarem algo valioso em sacrifício, a união não acontece. É preciso haver uma fusão parcial de almas, atada no mais profundo inconsciente, para que duas pessoas se constituam verdadeiramente como casal. Do contrário, dividirão a mesma casa e a mesma cama, poderão até estar casadas e ter filhos, mas serão apenas indivíduos que vivem juntos. Faltará a esse arranjo o alicerce emocional que torna as relações imprescindíveis.

Dá para entender o que eu estou dizendo?

No início de um relacionamento, e mesmo depois que ele avança, é comum que a gente olhe para a parceira ou o parceiro e tenha – do nada, subitamente – uma dolorosa sensação de estranheza. Quem é essa pessoa? O que ela está fazendo aqui? O que eu estou fazendo aqui? Esses segundos de perplexidade, que nunca são inteiramente superados, e que sempre nos assustam, revelam um pedaço de nós que insiste em permanecer singular, e que não reconhece ou não admite a existência do outro, embora anseie secretamente por fundir-se com ele.

Essa resistência interior tem de ser quebrada para que a gente forme uma unidade conjugal, para que seja superado o medo da aniquilação amorosa.

Se existe um jeito fácil de superar essa barreira, eu desconheço. O que acho possível é tentar permanecer aberto aos sentimentos que o outro nos provoca, permitindo que eles cresçam e se aprofundem mesmo quando nos apavoram. Num tempo de gente tão prática, de relações humanas superficiais e utilitárias, acho bonita a ideia de se perder no outro e ser um com ele ou com ela. Ou, posto de outra forma, a gente precisa perder o medo de ser nós para entender, verdadeiramente, o que significa ser eu.

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