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quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Resgatando o retrato do Brasil que somos

Por Bila Sorj e Lena Lavinas*
20/12/2017 
O sociólogo Robert Merton cunhou a expressão “a profecia que se autorrealiza” para descrever uma situação imaginária que é proclamada como acontecendo ou prestes a acontecer, e que acaba por se transformar em realidade na medida em que as pessoas passam a nela acreditar. Este conceito ilustra bem o processo político que vivemos hoje no país. Forças conservadoras, com uma agenda regressiva sobre direitos reprodutivos, têm se mobilizado no Congresso para aprovar a PEC 181, ameaçando conquistas que asseguram às mulheres o aborto em casos já previstos em lei, inclusive o aborto decorrente de estupro, em vigor desde 1940. Cabe recordar que o registro diário de estupros no Brasil atinge a cifra alarmante de 135.

A mobilização do movimento feminista tem impedido com sucesso até agora mudanças no texto constitucional que penalizem as mulheres, criminalizando ainda mais a prática do aborto que, sabemos, é uma realidade incontornável. São realizados cerca de 500 mil abortos clandestinos por ano e morrem mais de 500 mulheres em decorrência de complicações de procedimentos feitos sem protocolo seguro.
Esta agenda regressiva reflete normas patriarcais de gênero e reforça estereótipos sexuais anacrônicos. Porém, não representa todo o campo religioso neopetencostal e católico e, muito menos, a pluralidade de posições de seus fieis. Católicas pelo Direito de Decidir e a Frente Evangélica pela Legalização do Aborto são duas importantes organizações feministas, que professam a fé cristã mas nem por isso curvam-se a dogmas religiosos que contestam o livre arbítrio das mulheres e sua liberdade de escolha, consciente e responsável.
Na realidade, o Brasil vive um momento extremamente perigoso. Lideranças e grupos políticos, em busca de protagonismo, exploram a crise econômica e o mal-estar da população com o sistema político para veicular, com alarde e intimidação, um discurso baseado em sentimentos de medo e ansiedade, acenando com bandeiras retrógradas, que alimentam a intolerância, a discriminação e a segregação.
Mas será esse o Brasil em carne e osso, cuja imagem tanto nos surpreende e causa estranheza? Ora, pesquisas de opinião recentes revelam que o discurso conservador não representa o “povo”, senão interesses de minorias bem articuladas que tentam fazer regredir os valores baseados nas noções de direitos, igualdade, liberdade, autonomia das mulheres, valores esses que, desde a Constituição de 1988, e pelo ímpeto do movimento feminista, vêm construindo um Brasil mais justo e mais humano para todos.
É o caso da pesquisa nacional divulgada pelo Instituto Ideia Big Data, de orientação liberal. Entre outras informações relevantes, como o apoio majoritário dos brasileiros a políticas de cotas raciais nas universidades (57,2%), a casamentos homoafetivos (65%), ou a preferência por melhores e mais amplos serviços públicos (79,4%) ainda que ao preço de um aumento dos impostos, mostra-se expressiva a parcela da população – 60% – que rejeita a ideia de punição criminal para mulheres que praticam abortamento, qualquer que seja a circunstância.  
Este é o Brasil real, o Brasil majoritário, que devemos defender dos falsos profetas que querem nos fazer crer que o país carrega nas suas entranhas autoritarismo, prepotência e malquerença.  Não se pode permitir que se cristalize entre nós uma visão de que a maioria da nação está orientada por valores conservadores, influenciando inclusive a postura de políticos que sempre professaram valores liberais. Ou recuperamos e reafirmamos a narrativa de um país que, apesar dos percalços, muito avançou nas últimas décadas no campo dos valores e das aspirações democráticas ou seremos prisioneiros de profecias que se autorrealizam.  
As mulheres brasileiras têm demonstrado vigor e determinação em extinguir o mantra do mal.
*Bila Sorj é Professora Titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e Lena Lavinas Professora Titular do instituto de Economia da UFRJ

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