por Joanna Burigo — publicado 30/08/2018
Carta Capital
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Em tempos de eleições e disputas políticas acirradas, há vantagens em conversar sobre feminismo com quem não é feminista?
O debate público sobre quaisquer temas relacionados a questões sociopolíticas – nos últimos anos e de forma acentuada neste período eleitoral de 2018 – parece feito de pólvora para a qual discordâncias servem de faísca. Mas o futuro, que é sempre incerto, parece estar desenhando um quadro tenebroso para as mulheres, o que explica e justifica nossa aflição e nervos à flor da pele.
Porém nem só de animosidade é feito o caminho entre um polo e outro de uma discussão. O diálogo continua sendo uma ferramenta possível, e seu potencial didático e democrático persiste apesar do sufocamento aparente das polarizações e pontos de vista contraditórios.
Para um diálogo suceder, a escuta ativa é item indispensável. A escuta ativa não apenas transcende a escuta fisiológica (ela mesma irrelevante para este argumento, visto que me refiro à aquisição de conhecimentos que levam à compreensão, e não à capacidade própria dos ouvidos), mas é o que nos faz suspender, ainda que temporariamente, nosso apego ao que já sabemos, para assim podermos capturar outras perspectivas.
Para Spinoza, o medo é o que cria, mantém e alimenta crenças irracionais e ilógicas, e é preciso esforço para não lamentar nem ridicularizar ações humanas, e sim compreende-las. A compreensão, para ele, é o princípio da concordância. O diálogo, quando acontece e suscita compreensão, pode ser transformador. Mas ter apreço pelo diálogo não significa pensar ingenuamente que ele seja o único ou o melhor instrumento de compreensão, nem significa acreditar que a compreensão seja sempre possível, ou que ela vá garantir concordâncias.
Há momentos em que o diálogo falha e disputas se fazem indispensáveis. Mas ainda assim, é diferente disputar a realidade, disputar a verdade, e disputar corações e mentes.
A realidade do machismo e a violência de seus efeitos não deveriam estar em disputa, e para sustentar minha asserção cito apenas alguns dos muitos dados amplamente disponíveis sobre o horror das desigualdades de gênero: a cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil (Fórum Brasileiro de Segurança Pública); o País ocupa a 5ª colocação no ranking mundial de feminicídios (Mapa da Violência); 86% das brasileiras reportam ter sofrido assédio em espaços públicos (Action Aid); e nossa posição entre os 190 países ranqueados pela União Interparlamentar no quesito representatividade política feminina é a 152ª.
Já disputar a verdade, determinando categórica e absolutamente o que um fenômeno é ou não é, tende a fomentar embates amargos que vão na direção oposta do entendimento, tanto da realidade quanto da imensa complexidade humana. Verdades não necessariamente correspondem à realidade, e a própria lógica da disputa pouco tem a ver com entendimento. Assim, não raro disputas são um exercício de poder cujo grande prêmio é a própria produção de verdades.
O diálogo como prática pedagógica é um método democrático para que o feminismorealize, usando dados da realidade, uma disputa não pela verdade, mas outra, indispensável: aquela por corações e mentes. Está posto que o diálogo requer a abertura da escuta, e que nem sempre essa existe. Mas quando ela existe é que podemos contrapor “verdades” machistas pautadas em crenças irracionais e ilógicas, demonstrando evidências da realidade concreta do machismo.
A frenologia do século XIX reivindicava ser capaz de determinar o caráter, a personalidade e as propensões das pessoas pelas formas e dimensões de suas cabeças, e era o que “comprovava cientificamente” a superioridade masculina pelo volume do crânio. Hoje há evidências de que essa métrica é falaciosa, embora mitos desta pseudociência permaneçam recebendo contornos de verdade por quem visa manter a hierarquia que tem os homens no topo.
A certeza de que a Terra era o centro do Universo não passava de um devaneio ideológico de uma era em que a humanidade se compreendia como peça principal da criação, e Galileu e Copérnico revolucionaram a ciência e a sociedade ao provarem que é a Terra que gira em torno do Sol. Se hoje achamos que o geocentrismo e a frenologia são bobagens, isso logicamente se deve ao compromisso científico com a derrubada de falácias, mas também à inserção destes conhecimentos no debate público. Na disputa por corações e mentes, é importante não perdermos de vista a eficácia das conversas sustentadas por dados da realidade no combate a verdades inventadas.
Laura Bates, escritora e fundadora do website Everyday Sexism Project, recentemente publicou um ensaio – baseado em comentários de leitores, e escrito em três partes – no website da revista inglesa The Economist.
“Como convencer céticos do valor do feminismo” (minha tradução não oficial está neste link) propõe um conjunto de estratégias de comunicação – incluso o diálogo fundamentado – para demonstrar aos incrédulos que as desigualdades de gênero estão vivas e pulsantes, e que o feminismo é a égide sob a qual denominamos e encaramos os problemas a serem resolvidos nesta frente. “Nós usamos o termo feminismo”, ela escreve, “porque são mulheres quem são desproporcionalmente prejudicadas por desigualdade de gênero, nas suas formas estruturais e sistêmicas”.
Para ela, um conceito tão simples como o feminismo – pensar que deve haver igualdade social, política, econômica e pessoal entre as pessoas independentemente do sexo ou gênero – é amiúde dramaticamente mal-entendido.
E não há dúvidas de que há pessoas que propositalmente se fazem de desentendidas sobre o que significa o feminismo, recusando-se a ouvir ou desavergonhadamente refutando quaisquer dados da realidade, pois não as interessa a disputa por mentes e corações, mas sim o próprio poder de produzir verdades. Para com estes, o diálogo de nada adianta. Porém não é delirante conceber que há quem simplesmente não conheça estes dados, esta perspectiva, e esteja pronto a ser dissuadido de verdades machistas quando são apresentadas provas que as derrubam.
Não é nossa obrigação, mas podemos ao menos tentar dialogar com estas pessoas, sobretudo no momento conturbado pelo qual estamos passando, e que calha de ser um período de eleições. Existem muitas candidaturas de mulheres genuinamente comprometidas com políticas feministas, particularmente para cargos legislativos.
A campanha eleitoral recém começou, mas os resultados desse pleito podem ser bastante decisivos para o futuro das mulheres. Vale então considerar a possibilidade de que as pessoas nos ouçam, compreendam nossos argumentos – e quem sabe passem elas mesmas a aderir ao feminismo, ainda que num primeiro momento apenas votando para eleger feministas.
E não custa lembrar: com ou sem a adesão destes céticos, não desistiremos da luta tão antiga e ainda tão atual pela plena equidade de gênero. Como assinala Bates, deveria ser suficiente para que pessoas se identificassem com o feminismo pensar que mulheres merecem igualdade e uma vida livre de violência machista. Em última análise, é isso que o feminismo visa.
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