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quarta-feira, 14 de novembro de 2018

AMOR NOS TEMPOS DE ZIKA


Nossa viagem começa em pleno dia das mães, em um casarão no bairro do Barro, no Recife. Cerca de 50 mães estão na sede da UMA – a União de Mães de Anjos, associação que reúne mais de 400 mães de crianças afetadas pelo Zika durante a gestação. Para muitas integrantes, o grupo é uma segunda (quando não uma primeira) família.

Neste dia, a atenção é dedicada integralmente a elas, destoando de uma rotina que gira em torno das necessidades de suas crianças. Um mutirão de estudantes de medicina, odontologia e estética mede a pressão das mães, examina seus dentes, fala de cuidados ginecológicos e dermatológicos.

As mulheres conversam, fazem fila para a maquiagem, exibem as sobrancelhas feitas. Para poderem desfrutar desse tempo para elas, um mutirão de voluntárias, também mulheres, cuida de seus filhos no segundo andar.

Quando entrei na sala das crianças, minha primeira impressão foi que era hora do descanso matinal. Elas esticavam os corpos sobre colchões espalhados pela sala, algumas sorridentes, outras chorando, algumas interagindo com os vizinhos. Depois a ficha caiu. Estavam deitadas porque a maioria não consegue andar, nem sentar, algumas nem sustentar a cabeça erguida.
Em setembro de 2015, quando soou o alarme do aumento de casos, a microcefalia virou sinônimo do surto. Logo ficou claro que o contato com o vírus Zika na barriga da mãe gerava uma gama muito mais ampla de problemas, agrupados sob o nome de síndrome congênita do Zika (SCZ).

O vírus invade a placenta da mãe e ataca as células que dariam origem aos neurônios, impedindo que o cérebro se desenvolva normalmente. Danos cognitivos e motores se combinam em graus e formas variadas em cada criança.

"Os problemas conhecidos no início eram neurológicos, oftalmológicos e de audição", lembra a obstetra Adriana Melo, especialista em medicina fetal, uma das pioneiras em estabelecer a relação daquelas sequelas com o Zika em 2015.

"Hoje, sabemos que vai muito além. Essas crianças apresentam alterações ortopédicas, luxação do quadril, dificuldade de deglutição, refluxo, alterações do ritmo intestinal... Algumas estão evoluindo com hidrocefalia (acúmulo de líquido no cérebro), outros precisam de GTT (gastrostomia, a instalação de uma sonda estomacal para alimentação) ou de traqueostomia para melhorar a qualidade respiratória. É uma doença extremamente complexa."
Muitos desses sintomas eram visíveis nas crianças reunidas na UMA. As deficiências na visão, nas que usavam pequenos óculos coloridos; a rigidez nas articulações, evidente em mãozinhas contraídas ou perninhas semi-dobradas; a hipotonia ou falta de tônus muscular, nas que pendiam a cabeça para a frente por falta de força para sustentá-la com o pescoço; a disfagia ou dificuldade de engolir, que fazia com que diversas tivessem sondas no nariz ou válvulas na barriga (GTT) para enviar o alimento direto para o estômago.

Quando as primeiras crianças nasceram, a gravidade de seus quadros fez muitos médicos preverem pouco tempo de vida. O prognóstico vai sendo superado a cada aniversário da primeira geração da zika, prestes a completar três anos.

À medida que as crianças crescem, entretanto, alguns distúrbios da síndrome se tornam mais evidentes, impedindo que alcancem os marcos de desenvolvimento comuns para cada idade. Perguntas básicas sobre seu futuro continuam a se impor: elas conseguirão andar, ir para a escola, falar?

“Ela tem o controle dos braços, das pernas, então tem toda condição física de andar futuramente”, diz Ana Paula Torres, mãe de Ana Katriele, de 2 anos e 4 meses. “Mas vai depender do comando do cérebro dela. Tem que ser no tempo dela. Ela é uma caixinha de surpresas.”

Ana Katriele tem um sorriso largo e derramado e é a quinta filha desta mãe de 29 anos, jovem como muitas outras ali, moradora de Jataúba, perto de Caruaru. O trabalho de cuidar de crianças ela conhecia bem, mas hoje mal para em casa, sempre levando a filha para médicos e terapias. “Com ela eu aprendi a viver nesse mundo novo”, diz Ana Paula. "Já passamos maus bocados. Mas estamos contando vitória.”

As histórias que ouvi na UMA eram de mães e avós à frente do cuidado das crianças – e até de uma vizinha que adotou um recém-nascido rejeitado pela mãe. São mulheres que aprenderam a ser cuidadoras, enfermeiras, terapeutas.

“A gente tem que fazer tudo que você possa imaginar. É fisioterapia, é terapia ocupacional, é fonoaudiologia, é tudo, minha filha. Se a gente esperar só quando tem médico, não resulta muita coisa, não”, diz Rosana Vieira, de 28 anos.

Sua filha, Luana, tinha acabado de arrancar pela enésima vez a sonda nasoenteral pela qual é alimentada. Debruçada sobre a filha, sorrindo e cantarolando, Rosana inseriu um novo tubo esterilizado por seu nariz. A operação parece delicada e incômoda, mas Luana parece hipnotizada pelo carinho da mãe, sorrindo de volta.
Rosana Vieira aprendeu a instalar a sonda nasoenteral em sua filha Luana
Rosana Vieira aprendeu a instalar a sonda nasoenteral em sua filha Luana

“É costume já... Eu peguei a prática. Depois de tanto chorar vendo as médicas botando nela, e ela saindo com o nariz sangrando, eu falei, agora quem vai aprender sou eu. Aí meti a cara e fiz. Deu certo!”, diz Rosana.

De acordo com o Ministério da Saúde, 63,4% das crianças confirmadas para síndrome congênita do Zika têm acesso a atendimento especializado, ou seja, recebem acompanhamento ao longo dos anos no âmbito do SUS.

Além de não cobrir a totalidade dos casos, o atendimento pode variar muito de uma cidade para outra, de centros urbanos para o interior, da qualidade do atendimento oferecido por cada unidade – e de quem chegou primeiro.

Instituições de referência sempre têm longas filas de espera, como a Fundação Altino Ventura, no Recife, que diagnosticou 285 crianças, mas só tem vagas de reabilitação para 161.
A epidemia de zika espelha a desigualdade brasileira. Um estudo sobre a distribuição das crianças com a síndrome no Recife expôs a seletividade social da doença, evidenciando o quanto populações mais pobres são mais afetadas, em áreas de maior densidade demográfica e saneamento precário.

"A prevalência no estrato mais pobre é aproximadamente seis vezes maior que no estrato com melhores condições de vida. É uma disparidade muito alta", diz o estatístico Wayner Vieira de Souza, da Fiocruz de Pernambuco, principal autor do estudo, publicado na BMC Public Health no ano passado.

O perfil das mães na UMA reflete essa realidade. A maioria das mulheres depende do Benefício de Prestação Continuada, o BPC, que paga um salário mínimo mensal a famílias que tenham uma pessoa deficiente, desde que a renda seja menor que um quarto de salário-mínimo por membro da família.
"O sistema condena a viver na pobreza da pobreza", lamenta Helen de Souza, de 33 anos, que ganhava R$ 3.800 como professora municipal de educação física em Manaus e teve que abandonar o trabalho para cuidar de Maria Fernanda. A filha nasceu com microcefalia, paralisia cerebral, encefalocele (quando a formação do crânio não se completa) e cega.
Maria Fernanda, filha de Helen de Souza, que se mudou de Manaus para Recife em busca de melhor tratamento 
Maria Fernanda, filha de Helen de Souza, que se mudou de Manaus para Recife em busca de melhor tratamento 

Helen estima que gaste pelo menos R$ 1.200 por mês para cuidar da filha – só para mantê-la hidratada, por exemplo, diz que são R$ 80 a cada quatro dias, preço do espessante que precisa ser adicionado a líquidos para que Maria Fernanda consiga engolir. O produto é usado pela maioria das crianças com SCZ por causa da disfagia, o distúrbio na deglutição.

Helen acabou de se mudar de Manaus, onde vivia, para Recife. Entendeu que ali a filha teria mais acesso a atendimento.

Pernambuco foi o epicentro da epidemia entre 2015 e 2016, e tem 456 crianças com SCZ, segundo o Ministério da Saúde.

"Sei que aqui as mães ainda têm muitas dificuldades, mas como são muitas crianças, espero que os processos sejam mais ágeis. Em Manaus somos cerca de 44 mães e não conseguimos a atenção das autoridades", diz Helen. "Eu tinha uma associação de mães na cidade, mas não conseguia fazer as coisas acontecerem", conta. Assim como ela, três outras mães de já se mudaram de Manaus para Recife.
A UMA foi fundada em dezembro de 2015 por Germana Soares e Gleysy Kelly, e sobrevive de doações. Inicialmente, era um grupo de WhatsApp de oito mães de crianças com microcefalia. Em dois meses, já eram 200 mães. Hoje são 409 famílias, e a associação tem nove filiais em Pernambuco.

Atual presidente da UMA, Germana é festejada pelas associadas. É recebida com gritinhos quando se junta para uma selfie. A foto logo vira uma roda de empoderamento, com as mulheres entoando que, unidas, jamais serão vencidas.

São as mães que acabam ficando com a missão de cuidar das crianças, diz Germana – e em muitos casos se tornam mães solteiras. Um levantamento da UMA estima que 76% das associadas se separaram após saber da síndrome na gestação, ou após o nascimento dos filhos.

"Alguns pais não aceitam a patologia, ou se separam pelo desgaste no casamento", diz Germana. "Infelizmente, muitas vezes o homem deixa de ser um companheiro para ser mais um a cobrar atenção da mulher", afirma. Ela própria se separou pouco tempo depois do nascimento de seu filho.

O filho de Germana, Guilherme, faz três anos em novembro, e tem respondido de forma surpreendente à reabilitação.
Na sessão que acompanhamos na Apae de Recife, ele pula para cima e para baixo preso aos elásticos do pediasuit, uma terapia para fortalecer e aprimorar a postura, e faz um até um high five com a fisioterapeuta. Guilherme não consegue andar – ainda – mas ri, interage, bate forte em um tambor na roda de violão na terapia, e já fala algumas palavras – incluindo "não".

"Ele tem personalidade forte", ri Germana. "Ele sabe muito bem o que quer. Quando é não, é não", diverte-se, orgulhosa.

A genética pode ter um papel aí, já que a mãe vive brigando com o governo por melhor atendimento e se tornou uma personalidade em Recife por sua militância. No último ano, contou sua história no TEDx da cidade e foi retratada em um especial sobre brasileiros inspiradores em programa de TV.

Germana diz que a assistência e o número de vagas são insuficientes, e que nem sempre o atendimento tem a qualidade e frequência necessários para trazer resultados.

"Quando vou atrás de serviço para o meu filho, me atendem achando que vou calar a boca. Mas se podem dar para o meu filho, é porque podem dar para todos", considera.
Germana Soares e seu filho Guilherme, que faz três anos em novembro
Germana Soares e seu filho Guilherme, que faz três anos em novembro

Quando Guilherme nasceu, o primeiro instinto de Germana foi esconder sua doença. Até que começou a conhecer outras mães na mesma situação que ela. Foi um divisor de águas.

"Você se sente mais forte e encorajado para ir à luta e mudar aquela realidade", afirma. A UMA virou sua missão de vida. E ela vive grudada no celular, angariando apoios e doações, apagando incêndios e aconselhando outras mães.

"Quando eu bato na porta de uma autoridade, vou não só como Germana, mãe de Guilherme. Vou como representante de mais de 400 outras mães", afirma.

Germana diz que 92% das mães da UMA que antes trabalhavam tiveram que largar seus empregos depois de ter as crianças com SCZ. "A maioria foi empurrada para uma situação de miséria", diz ela, referindo-se às condições para receber o BPC. Além de ser voltado para famílias de baixa renda, o benefício avalia condições de moradia.

"Tivemos casos em que o benefício foi negado porque a casa tinha piso de cerâmica ou um micro-ondas, considerado um eletrodoméstico de luxo", conta. "A lei aprisiona. A família não consegue viver em condições dignas, nem a criança tem a assistência que deveria."


A UMA é uma dentre nove associações regionais que se uniram no ano passado para formar a Frente Nacional Por Direitos da Pessoa com Síndrome Congênita do Zika Vírus.

Uma das principais metas da frente hoje é aprovação do projeto de lei 452, do senador Lindbergh Farias (PT-RJ). Prevê uma pensão vitalícia para crianças com a síndrome, em famílias com renda de até quatro salários mínimos.

"É uma pensão indenizatória. Seria uma declaração oficial de que o governo teve responsabilidade pela epidemia", considera Germana, que tem ido a Brasília cobrar apoio ao projeto e ajudar a adequá-lo às necessidades das famílias.

Neste ano, Germana teve uma grande realização: conseguiu que Guilherme fosse aceito na creche. Acabou abrindo as portas para outras 30 crianças agora matriculadas em escolinhas em Recife e no interior. "Nossa luta é para dar a melhor qualidade de vida possível para essas crianças", diz.

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