sábado, 3 de novembro de 2018

VIOLÊNCIA NO NAMORO: O RISCO DE ACABAR EM FEMINICÍDIO

PUBLICADO EM 26/08/2018
VANESSA CORTEZ
Especial para o JC

PORTO (PORTUGAL) – Foi em um café à beira-mar na cidade do Porto, em Portugal, que a estudante universitária Inês* trocou olhares pela primeira vez com José*. Cruzaram-se algumas vezes naquele lugar até que ele tomou a iniciativa de se conhecerem melhor. “Rapidamente me encantei e me deixei levar”, lembra Inês. Mas o que parecia o início de uma história de amor daquelas de filme durou apenas três semanas. O tom cortês e os carinhos de José que tanto encantaram a jovem deram lugar a um comportamento intimidatório e agressivo. “Era ir à varanda e ele estava do outro lado, me observando. Era sair de casa e o carro dele passava várias vezes por mim. A cada movimento que eu fazia, recebia mensagem perguntando onde estava. Um controle desenfreado. Perdi cinco quilos”, conta a estudante, vítima de um fenômeno que tem chamado cada vez mais a atenção de pesquisadores, porém ainda banalizado: a violência no namoro entre adolescentes e jovens.

No Recife, em pesquisa realizada em 2016 com 196 universitários, entre 15 e 24 anos de idade, 26,5% afirmaram já ter praticado violência contra a(o) parceira(o) e 31,6% disseram ter sofrido violência em algum momento da relação. A psicológica é a mais comum entre os jovens casais. “A cada dia eu ficava mais assustada, o comportamento dele escalava de carinhoso a obsessivo, tentando controlar sempre tudo o que eu fazia”, recorda Inês. Foi esse o tipo que atingiu com mais frequência os estudantes recifenses (25,5%). Ainda de acordo com o levantamento, 38,8% das meninas afirmaram ter sofrido algum tipo de violência durante o relacionamento, enquanto o número de meninos que passaram pelo problema foi bastante inferior: 11,2%.

“Nesse estudo foi possível perceber que eles conseguem identificar o que é violência nos relacionamentos, porém apresentam dificuldades em se perceber como agressores”, explica Jéssica Lins, educadora física e mestra em hebiatria, especialidade que cuida da saúde dos adolescentes. Ela é autora do estudo "Adolescentes e jovens universitários frente à violência nos relacionamentos afetivos-sexuais", apresentado em 2017 e que ainda será publicado.

Estudiosos concordam que a definição do que é violência para os jovens cai no senso comum: se resume à agressão física e sexual, quando, na verdade, há um conjunto de atitudes violentas como ameaça, empurrões, puxões de cabelo, críticas à roupa que a parceira está vestindo, perseguição, entre outras ações não reconhecidas como tal. “Os jovens confundem muito a violência na relação com gestos que, para eles, representam carinho e cuidado. E isso, quando não combatido, torna-se escalada para outros tipos de violência mais graves”, reforça a assistente social e mestra em hebiatria Janaina Machado, responsável pela dissertação "Sentimentos e atitudes de adolescentes frente à violência no namoro", defendida no ano passado.

Ilustração:

A publicação é baseada em uma pesquisa também feita no Recife, em 2014, só que com estudantes mais novos (entre 12 e 18 anos). Os números mostram que um em cada três (33,4%) admitiu praticar e/ou sofrer violência no namoro. Entre os dados obtidos, um deles chama a atenção: o de jovens que nada fizeram em relação à violência, sendo 35,3% entre as vítimas e 67,9% entre os agressores. “Representa um dado bastante preocupante, uma vez que esse sentimento de normalidade acaba reverberando em atitudes, contribuindo para a naturalização deste tipo de violência e, portanto, sua invisibilidade”, diz a pesquisadora.

"Acreditamos que a maior forma de prevenção da violência no namoro é a educação. E esta educação tem que vir desde cedo, porque acontece cada vez mais cedo. Mesmo que não consigamos mudar todas as mentalidades, há sempre alguém que fica com a semente. Nós plantamos a semente”
Mafalda Ferreira, coordenadora-executiva do projeto UNI+

Atos agressivos vistos com normalidade pelos jovens, na maioria das vezes, têm origem dentro de casa e nos locais em que eles convivem. “Adolescentes que vivenciam violência na comunidade/família apresentaram quase quatro vezes mais chances de perpetrar violência no namoro”, explica a professora doutora Alice Kelly Barreira, com base em uma pesquisa da qual participou e que foi coordenada pelo Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), da Fiocruz, em dez capitais do Brasil com 3,2 mil adolescentes.

Até hoje, o estudo abrangente é referência na área e mostrou o quanto o problema presente em todo o País é preocupante: nove em cada dez jovens já haviam sofrido e/ou praticado ato violento no namoro. No recorte da capital pernambucana, 84% dos entrevistados estiveram no papel de vítima e/ou agressor. Os resultados foram conhecidos em 2011 e, de lá pra cá, não se tem conhecimento de nenhum outro estudo em larga escala feito no País, apesar dos índices assustadores.

OS DADOS ALÉM-MAR
Enquanto estudos sobre a violência no namoro engatinham na América Latina e no Brasil – apesar da violência de gênero apresentar índices alarmantes nesses lugares – na Europa, especialmente em Portugal, o tema vem sendo amplamente estudado desde a década de 1990. Foi justamente com o intuito de combater essa invisibilidade que nasceu o projeto UNI+ Prevenção da Violência no Namoro em Contexto Universitário, no distrito do Porto, no norte português.

Financiado pela Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade, o programa UNI+ é fruto dessa discussão. Inês, a estudante mencionada no início do texto, é uma das jovens que recebem atendimento psicológico e aconselhamento no Gabinete de Apoio às Vítimas, que faz parte do programa e funciona no Instituto Universitário da Maia e também na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Além do espaço de acolhimento, há o Observatório da Violência no Namoro – plataforma online de denúncia informal – sem qualquer ligação com as autoridades policiais, criado em abril do ano passado com o objetivo de colher dados sobre o fenômeno da violência entre os jovens. Esse observatório acaba por ser um canal de encorajamento para as vítimas pedirem ajuda.

De acordo com a coordenadora-executiva do projeto UNI+, Mafalda Ferreira, a plataforma, que recebeu 151 denúncias nos primeiros 12 meses de funcionamento, foi criada com a intenção de dar visibilidade aos números da violência no namoro que ainda não aparecem nas estatísticas formais. “Falta conhecimento do que vai acontecer a partir do momento em que se faz a denúncia e há o medo da reação do agressor, que será notificado quando feita a denúncia formal. Mas a maioria dos casos é porque a vítima não se identifica como vítima”, explica.

Semelhante ao Brasil, as estatísticas coletadas pelo Observatório da Violência no Namoro em Portugal apontam que a maioria das vítimas (90,7%) é do sexo feminino, enquanto os agressores são do sexo masculino (94,7%). A violência psicológica é a mais comum (90,7%), seguida da violência física (53,6%), violência social (33,1%), perseguição (29,1%) e violência sexual (17,2%). Apenas 13,9% das vítimas apresentaram queixa às autoridades.

Inês lutou contra o medo e encarou os processos burocráticos e, por vezes, desestimulantes da denúncia. Quase desistiu. “O sistema tem muitas falácias e os profissionais não estão devidamente preparados, carecem de sensibilidade para lidar com este tipo de situação, o que por si só desmotiva as vítimas a exercerem os seus direitos, optando na maioria das vezes pela desistência da queixa. Eu tive essa vontade. Mais ainda quando passei para a fase seguinte, a do Ministério Público. O que me levou a manter a denúncia e resistir ao desânimo incutido pelo sistema jurídico foi o suporte de apoio incansável da parte do UNi+”, relata.

Além da pesquisa e apoios oferecidos pelo programa, outro braço importante são as ações de sensibilização que ocorrem nas escolas, universidades, bibliotecas e entidades privadas. “Acreditamos que a maior forma de prevenção da violência no namoro é a educação. E esta educação tem que vir desde cedo, porque acontece cada vez mais cedo. Nas formações passamos sempre um questionário de verdadeiro e falso, antes e depois, sobre crenças, papéis de gênero e a violência. No final, a percepção dos que estão ali muda. E, mesmo que não consigamos mudar todas as mentalidades, há sempre alguém que fica com a semente. Nós plantamos a semente”, orgulha-se Mafalda Ferreira.

* Os personagens têm nomes fictícios
A irmã Assucena e a avó, Maria Helena seguram foto de Edilene

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