Brasil tem 358 grupos em instituições de ensino que discutem gênero na área de Humanas e Ciências Sociais Aplicadas e são certificados pelo CNPq; especialistas lamentam enfrentamento ao termo, que dificulta progresso na área
Quando um grupo de alunos da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) se dispôs a discutir gênero e sexualidade em uma escola pública a uma semana das eleições gerais de 2018, nenhum dos integrantes pensou que seria tão difícil. Com apoio de uma professora da instituição e com o aval da diretora do colégio estadual selecionado, foram até a unidade distribuir folhetos para explicar conceitos básicos sobre gênero, sexualidade e apresentar a metodologia. Em uma época de ânimos acirrados e radicalização de opiniões políticas, acreditavam no potencial da discussão, mas tiveram de recuar: alunos, professores e pais pressionaram a direção escolar, que decidiu abolir o projeto.
O episódio acima foi relatado pela estudante Dalai Torres, do curso de Ciências Sociais da UFRJ, à Gênero e Número. A desistência teve um motivo crucial: “nossa segurança”, ela conta. O temor de Torres também é sentido pelo professor Donizete Batista, da UFV (Universidade Federal de Viçosa), em Minas Gerais. Um dos coordenadores do grupo “NÃO RECOMENDADXS – Grupo de Pesquisa em Sexualidade, gênero e interseccionalidades”, ele afirma que no último ano já sente um aumento da repressão e cerceamento da discussão sobre gênero.
O episódio acima foi relatado pela estudante Dalai Torres, do curso de Ciências Sociais da UFRJ, à Gênero e Número. A desistência teve um motivo crucial: “nossa segurança”, ela conta. O temor de Torres também é sentido pelo professor Donizete Batista, da UFV (Universidade Federal de Viçosa), em Minas Gerais. Um dos coordenadores do grupo “NÃO RECOMENDADXS – Grupo de Pesquisa em Sexualidade, gênero e interseccionalidades”, ele afirma que no último ano já sente um aumento da repressão e cerceamento da discussão sobre gênero.
“Um termômetro do início desse processo foi a agressão que a Judith Butler sofreu ao visitar o Brasil. Acredito que a partir de 2019 vai haver maior perseguição a essas pesquisas. A gente teme muita coisa: o [corte no] direcionamento de verbas para os grupos, a participação em congressos e eventos sobre o tema. É um momento bastante conturbado nesse sentido”, revela.
Criado em 2018, o grupo coordenado por Batista é um dos mais recentes certificados pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Localizado no campus de Rio Parnaíba, cidade com cerca de 12 mil habitantes, o professor reconhece a importância da discussão, apesar de ressaltar que serão tempos difíceis: “Ano passado, uma professora de escola pública nos procurou para irmos até lá falar sobre gênero e foi muito interessante. Um avanço. Mas hoje eu acho que isto seria praticamente inviável, porque há uma caça às bruxas”, diz.
O Não Recomendadx é um dos 122 grupos de pesquisa com no máximo quatro anos de existência que levam “gênero” no nome, são certificados pelo CNPq e que estão nas áreas de Ciências Humanas ou Ciências Sociais Aplicadas. No total, com estas características, são 358 grupos. Na análise feita pela Gênero e Número, foram desconsideradas as áreas de Biológicas, Saúde e Linguística, pois a ideia era visibilizar as áreas mais relacionadas aos Estudos de Gênero propriamente ditos.
Os grupos dentro do recorte analisado que têm mais de 15 anos de existência são 58, mas a quantidade de grupos que discorrem sobre o tema aumenta mais que o dobro quando analisados os que têm de cinco a nove anos de existência: são 126.
A Gênero e Número apurou que as únicas instituições que têm mais de 10 grupos de discussão de gênero são a UFRJ, a UFF (Universidade Federal Fluminense) e a UFPA (Universidade Federal do Pará). A UFF, aliás, chama a atenção por cerca de 60% dos seus grupos terem no máximo quatro anos de existência, indicando que houve uma ampliação do interesse pelas linhas de pesquisa nesse tema A UFRJ também encabeça, juto com a UFG (Universidade Federal de Goiás), a lista das universidades que criaram mais grupos de gênero entre 2010 e 2014: foram seis. A única instituição que não tem ensino superior e consta na lista é o Colégio Pedro II, onde o grupo existe há pelo menos um ano.
Ser um colégio em meio a essa lista é um dos motivos que levou o presidente Jair Bolsonaro, ainda quando era deputado federal, a afirmar que a instituição era um “balão de ensaio tomado por marginais do MST”. Em outras ocasiões, o hoje presidente acusou a instituição de propagar “ideologia de gênero”.
Gênero na sociedade
A coordenadora do NEPEM/UFMG (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher da Universidade Federal de Minas Gerais), Marlise Matos, lamenta que o atual governo tenha travado uma batalha contra a chamada “ideologia de gênero” e insistido no fato de que há uma doutrinação cultural em curso, o que dificulta o ambiente da pesquisa dos estudos de gênero.
A pesquisadora acredita que os grupos interferem de maneira direta ou indireta nos avanços da sociedade em relação à compreensão do que são os estudos de gênero, e por isso devem lutar por sua manutenção.
A base de dados do CNPq mostra que são 16 grupos discutindo gênero e violência, 22 discutindo gênero e raça, 25 discutindo gênero e trabalho e muitos outros que discutem a conexão com religião, políticas públicas, narrativas de mídia e família, entre outros.
O objetivo dos grupos é investigar sob as lentes da pesquisa como os temas estão sendo vividos pela sociedade em geral e encontrar formas de incidir positivamente sobre eles. A ameaça que alguns pesquisadores sentem, se concretizadas, podem representar prejuízos na evolução e amadurecimento dos estudos de gênero. É o que acredita a professora e doutora em Ciências Sociais Lays Mazoti, da UFV.
“O conjunto de pesquisas que surgiram nestes dez anos busca, justamente a partir da instalação de um processo educativo, possibilitar essa mudança de mentalidade. É uma correlação de forças que se influenciam mutuamente: a sociedade muda e passa a levantar novas perguntas que movimentam novas pesquisas nas universidades que impulsionam, por sua vez, outras mudanças”, analisa.
O caso Débora Diniz
No último ano, a pesquisadora Débora Diniz, da UnB (Universidade de Brasília), protagonizou uma perseguição do conservadorismo contra os estudos relacionados a gênero. Em julho de 2018, Diniz tornou públicas as ameaças de mortes que vinha recebendo, via email, telefone e em grupos da internet, por sua atuação a favor da descriminalização do aborto. A campanha de ataque à reputação de Diniz, que também é escritora e documentarista, ganhou volume e veio à tona no momento em que o STF se preparava discutir a ação sobre a descriminalização do aborto no Brasil até a 12ª semana.
Em dezembro, Débora Diniz contou ao jornal El País que entrou no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do governo federal e saiu do Brasil. Ainda que não esteja presente no território nacional, a pesquisadora continua a desenvolver pesquisas sobre o tema, mas em segurança: “Assim como outros defensores dos direitos humanos, não posso me permitir cruzar limites sob o risco de virar mártir”, disse.
*Lola Ferreira é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.
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