Sete estados contam com leis que determinam debate nas escolas, mas conceitos de gênero e diversidade sexual ainda são tabu
Enquanto defensores do “Escola sem Partido” tentam reduzir, e até eliminar, a discussão sobre gênero das salas de aula, a inclusão do combate à violência contra a mulher no currículo escolar enfrenta menos barreiras e acontece, mais discretamente, em alguns estados do Brasil desde 2015. Atualmente, sete unidades federativas têm em vigor leis que determinam o debate sobre violência de gênero nas escolas públicas e privadas, de acordo com levantamento da Gênero e Número.
A iniciativa cumpre o inciso V do artigo 8º da Lei Maria da Penha, que determina “a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres”. Na tentativa de cumprir esse objetivo em todo o território nacional, o projeto de lei 598/2019 está em tramitação no Senado Federal.
No texto proposto por Plínio Valério (PSDB/AM), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional(LDB) seria alterada para incluir conteúdo sobre a prevenção da violência contra a mulher nos currículos da educação básica. Atualmente, a LDB versa sobre “conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a criança e o adolescente”. O projeto de lei não especifica como seria feita a introdução do conteúdo sobre violência contra a mulher, diferentemente do que já tem sido feito em alguns estados nos últimos anos.
De acordo com levantamento da Gênero e Número, o Paraná foi o primeiro estado a sancionar um projeto para para instituir a “Semana Maria da Penha” nas escolas. A lei 18447/2015 tem como principal objetivo instruir os alunos sobre a legislação. No mesmo ano, foi implantada a campanha “Escola Livre de Violência Contra a Mulher”, capitaneada pela Coordenação de Educação das Relações de Gênero e Diversidade Sexual da Secretaria de Educação. O material está disponível online, e conta com uma cartilha própria e conteúdos interativos sobre o tema. Em nota, a Coordenação explicou que as escolas se organizam “conforme suas realidades e durante o ano letivo, respeitando, assim, a autonomia da instituição escolar”, por isso não há uma periodicidade definida para aplicação dos materiais.
Em setembro de 2018, o Ministério da Educação (MEC) anunciou o desenvolvimento de uma plataforma voltada à educação básica com materiais sobre direitos humanos, inclusive igualdade de gênero. O conteúdo seria com linguagem acessível à comunidade escolar e tinha previsão de lançamento para dezembro. Com a mudança de governo, o MEC informou à Gênero e Número que “a iniciativa encontra-se sob avaliação”.
Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte também têm legislação que determina o ensino do tema nas escolas estaduais. Em 2018, foram atendidas pelo programa do Amazonas 82 escolas na capital e região metropolitana, o que abrange 5.878 alunos da rede estadual. O planejamento é chegar a 100 escolas em 2019. Até o fechamento desta matéria, os demais estados não responderam sobre a abrangência da aplicação da lei.
Os estados que possuem legislação para discussão do combate à violência contra a mulher na escola registraram, em geral, aumento no número de homicídios de mulheres nos últimos anos. De acordo com o Atlas da Violência 2018, com dados de 2016, o Mato Grosso do Sul foi o estado com maior alta percentual entre 2015 e 2016: 37,9%. No mesmo período, Amazonas, Pará, Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte também registraram aumento do crime. Somente Mato Grosso teve queda, com 11,9%.
O tema também tem sido discutido sem a necessidade específica de legislação. É o que acontece no Distrito Federal desde 2014. O projeto “Maria da Penha vai às Escolas” é aplicado em unidades de ensino por iniciativa do Núcleo Judiciário da Mulher, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (NJM/TJDFT), com o apoio de outros órgãos governamentais. O coordenador do NJM, juiz Ben-Hur Viza, acredita que o projeto ter sido criado pelo Judiciário foi “uma boa estratégia”.
“A gente não depende da vontade política do governante e também não tem a rejeição dele. Não foi um partido ou outro que fez, é um projeto do Tribunal de Justiça. E de alguma forma o Executivo participa, porque os profissionais da educação fazem o curso e os alunos são formados por esses profissionais. Não temos a rejeição ou o risco [do governador] não sancionar porque é adversário político. Foi uma boa estratégia, já que foi um projeto construído da base, com os professores”, defende Viza. De acordo com o magistrado, nos últimos cinco anos de projeto foram 2.466 profissionais formados e 5.934 alunos impactados em 339 escolas.
Com o sucesso do programa capitaneado pelo Judiciário, a Câmara Legislativa apresentou um projeto que determina o ensino da Lei Maria da Penha em todas as escolas do Distrito Federal. O PL 233/2019, do deputado Fábio Félix (PSOL), foi aprovado em segundo turno no dia 26 de março e aguarda sanção do governador, com prazo previsto para a próxima terça-feira, 23 de abril.
‘Gênero’ ainda é barreira
Os profissionais e órgãos ouvidos pela Gênero e Número são unânimes ao dizer que a maioria das famílias de alunos aceitam o ensino da Lei Maria da Penha nas escolas, mas com cautela. No Piauí, o projeto “Lei Maria da Penha nas Escolas” é uma iniciativa do Ministério Público com a Secretaria de Educação, e tem autoria do promotor Francisco de Jesus e da socióloga Marcela Castro Barbosa. Mestre pela UFPI (Universidade Federal do Piauí), Barbosa aponta como “evidentes” as distorções em torno do tema, principalmente pela cruzada contra a chamada “ideologia de gênero”.
“Não vejo a violência como uma questão ideológica. O debate sobre a violência no espaço escolar é oportuno. Existe um receio ou medo em discutir a categoria ‘gênero’ na escola, para uns por falta de informação, para outros por entender que o assunto está relacionado apenas à sexualidade e que os educadores vão impor uma orientação sexual aos alunos. Na verdade, as relações de gênero são amplas e estão presentes no trabalho, na vida política, nas questões econômicas e em diversos tipos de violências”, analisa a pesquisadora.
Para evitar distorções, o juiz Ben-Hur Viza admite que escolhe muito bem as palavras quando está aplicando a formação sobre o tema nas escolas do Distrito Federal, para atingir o objetivo de formação e conscientização.
“Se eu for falar sobre machismo, não preciso falar a palavra gênero, posso falar simplesmente ‘machismo’, e em uma linguagem que a pessoa consegue compreender. Se eu falar ‘gênero’, eu posso bater de frente com as religiões ou falar algo que as pessoas podem não saber o que é. Embora eu tenha uma formação técnica, não adianta falar juridiquês. Isso não ajuda a reduzir os índices de violência doméstica. Se eu falo ‘gênero’ é uma coisa. Se eu falo ‘machismo’ é outra”, explica o magistrado.
O município do Rio de Janeiro sancionou recentemente uma lei que prevê o ensino da Lei Maria da Penha nas escolas municipais. O Comitê de Gênero na Educação, coordenado por Waléria de Carvalho, até o momento não encontrou resistência em relação ao trabalho nas unidades de ensino. Ela explicou à Gênero e Número que no futuro pretende abordar temas como diversidade, introduzindo a discussão aos poucos em sala de aula. Por enquanto, ela não abre mão de discutir o tema da violência nas escolas municipais.
“A minha vontade é começar o debate desde o maternal, porque eu acho que a escola é o ponto mais importante para discutir a violência. É na escola que podem ensinar sobre respeito, sobre a valorização da mulher e sobre a valorização do ser humano. Temos que começar a olhar para as escolas como ponto fundamental para essas políticas, senão daqui a pouco não tem mais saída”, opina Carvalho.
Marcela Castro Barbosa aponta que a discussão da violência é urgente e corrobora a ideia da escola como fator fundamental para diminuição dos índices de violência: “A temática precisa estar integrada e articulada [com todos os atores]. Caso ela não esteja, o desafio será enorme e infelizmente poderá ser mal compreendida”.
*Lola Ferreira é jornalista e Flávia Bozza Martins é analista de dados da Gênero e Número.
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