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segunda-feira, 10 de junho de 2019

Meninas leem e escrevem poesia empoderada para lidar com questões sociais

De sexualidade a viagens de 5 horas no 'busão', jovens buscam poesia de 'autoajuda', como a de Rupi Kaur. Livros do gênero são os mais vendidos de ficção no Brasil em 2019.

Por Thaís Matos, G1
10/06/2019
Inspiradas pela poesia livre e empoderada, como a da indiana Rupi Kaur, jovens brasileiras escrevem, participam de saraus e publicam poemas em que desabafam sobre traumas e dialogam com o mundo.
G1 conversou com fãs que fazem poesia sem métrica com frases de aparente simplicidade. Mas os versos carregam reflexões sobre corpo, sexualidade, preconceitos e marcas que se acumulam silenciosas nas pessoas. Veja vídeo acima.
É este novo jeito de fazer poesia que atrai milhares de meninas no Brasil. Em busca da voz para dar vazão a esses fantasmas e de conforto e aceitação nas linhas receptivas de outros autores, elas leem, escrevem e se ajudam no processo.
Não por acaso, o livro de ficção mais vendido no Brasil é de poesia. Além disso, outros dois títulos fazem do gênero o campeão do top 5 mais vendidos do país em 2019:
  • O livro mais vendido no Brasil até agora é “Poesia que transforma”de Bráulio Bessa, com poemas sobre autocuidado, compreensão, confiança e outros temas de deixar o coração e o ego quentinhos;
  • Em terceiro lugar, está “Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente”, poesia jovem de autoajuda sobre relacionamentos, términos, traumas e amor próprio;
  • Em quinto, “Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente: onde dorme o amor”, continuação e redenção do primeiro, com mensagens de amor, perdão e cura.

As novinhas leem muito

Apesar de mulheres entre 18 e 24 anos de idade representarem 85% do público dos TCDs (textos cruéis demais), os livros são escritos majoritariamente por homens: o estudante Igor Pires da Silva escreveu sozinho o primeiro, e com duas amigas o segundo. E Bráulio Bessa é autor solo do seu livro.
É popular, mas não é suficiente. A poesia que as leitoras buscam precisa refletir suas angústias e sentimentos muito além do amor desajustado do TCD ou do "up" motivacional de Bessa.
A poeta Rupi Kaur, uma das influências do autor de 'Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente' — Foto: DivulgaçãoA poeta Rupi Kaur, uma das influências do autor de 'Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente' — Foto: DivulgaçãoA poeta Rupi Kaur, uma das influências do autor de 'Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente' — Foto: Divulgação
A poeta e best-seller canadense de origem indiana Rupi Kaur costuma ser o primeiro porto onde as novas leitoras vão se abrigar. Com textos extremamente simples, em linguagem direta, ela fala de insegurança, machismo, violência, estupro e abandono.
Seu primeiro livro, “Outros jeitos de usar a boca”, ficou entre os cinco mais vendidos no Brasil em 2017 e 2018, com mais de 75 mil edições vendidas em cada ano.

O que é a tal da poesia jovem

Poesia jovem, poesia livre... há muitas denominações para um movimento que ainda não tem nome específico, nem uma forma definida. Mas se tem algo comum a todos os poetas desse estilo é a linguagem simples e a proximidade com os leitores.
De acordo com leitores e produtores editoriais, é poesia livro o que “tocar o leitor de um jeito diferente”.
Ela não precisa ter métrica, estrofes ou rimas. Mas há, quase sempre, a quebra de frases em versos. Não há uma obrigatoriedade de temas, mas costuma falar de sentimentos e percepções do mundo.
E de forma alguma pode ser chata. “Com a Rupi, as pessoas perceberam que poesia não precisa ser engessada e entediante”, diz Veronica Gonzalez, editora da Globo Alt.
“É para ler e sentir prazer lendo. E uma linguagem mais comum, aproxima o leitor e não afasta."
Segundo a editora, livros de poesia enfrentavam resistência nas editoras, mas os recentes sucessos abriram as portas para novos autores. “Conseguimos perceber o aumento da procura dos autores por editoras para publicar seus trabalhos. E também de editoras ‘caçando’ jovens poetas”, conta.

Estética

Imagem de divulgação mostra trecho do livro 'Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente' — Foto: DivulgaçãoImagem de divulgação mostra trecho do livro 'Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente' — Foto: DivulgaçãoImagem de divulgação mostra trecho do livro 'Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente' — Foto: Divulgação
Feeds de Instagram alinhados. Quadros com molduras brancas simetricamente distribuídos pela parede. Tatuagens originais e coloridinhas: os millenials têm um apreço grande pela estética.
Nos livros de poesia, a ilustração é quase tão importante quanto o texto. Para Veronica Gonzalez, ela funciona como complemento ao texto, também passando uma mensagem.
As artes fazem tanto sucesso que viraram tatuagem na pele de muitos fãs, segundo ela.
O apelo estético ajuda a divulgação nas redes sociais. O Instagram é uma das melhores formas de divulgar o trabalho, com feeds que mesclam trechos e ilustrações.
Instagram da escritora Rupi Kaur — Foto: Reprodução/InstagramInstagram da escritora Rupi Kaur — Foto: Reprodução/InstagramInstagram da escritora Rupi Kaur — Foto: Reprodução/Instagram
O Facebook costuma ser o caminho mais óbvio: cabe o texto inteiro, dá para compartilhar. E por fim o Tumblr, protegido dos usuários das grandes redes, abriga uma pequena, mas resistente comunidade. Por isso, é um bom espaço para disseminar poesia mais intimista.
A "aesthetic" não é só estética, é uma forma de atrair os jovens para o livro físico. “Principalmente com layout e projeto físico, dá muito mais vontade de comprar e ter. Tem muito conteúdo disponível online, mas não proporciona a mesma sensação”.
“Muitas das jovens compram porque é um objeto de desejo, quase uma coisa vintage, deixa na estante, cuida, elas escrevem nas páginas, estão sempre com post-its nos eventos, gostam de pegar autógrafos, é toda uma experiência”, explica a editora.

Nos dê nossa voz

Ana Carolina, Raquel Souza, Julia Leite e Gleiciene Medeiros escrevem poesias para enfrentar racismo, homofobia e desigualdade — Foto: Celso Tavares/G1Ana Carolina, Raquel Souza, Julia Leite e Gleiciene Medeiros escrevem poesias para enfrentar racismo, homofobia e desigualdade — Foto: Celso Tavares/G1Ana Carolina, Raquel Souza, Julia Leite e Gleiciene Medeiros escrevem poesias para enfrentar racismo, homofobia e desigualdade — Foto: Celso Tavares/G1
Raquel Souza, estudante de farmácia de 19 anos, enfrentava mais de cinco horas por dia no transporte público para ir e voltar da faculdade. Às vezes, não tinha dinheiro para nem para comer. E sofria com o atraso em relação aos outros alunos do curso.
“A poesia me ajudou muito a lidar com desigualdade social. Eu comecei a reparar isso no cursinho, quando você vê que não aprendeu tudo que deveria no ensino médio. E ao ingressar na universidade, você tem esse comparativo o tempo todo em relação à sua vivência e à vivência alheia. A poesia me ajudou a desabafar em relação a tudo isso.”
Escrever, para ela, é conseguir carregar fardos pesados demais. Da periferia de Guarulhos, Raquel sonha em “colocar todas as poesias em um livro”.
“Ao terminar o primeiro semestre da universidade, eu escrevi uma poesia no ônibus mesmo e comecei a chorar. Foi um texto muito difícil de escrever. Ao colocar nas redes sociais, percebi que muita gente passou pelo mesmo e isso me ajudou a continuar", diz a estudante.
Ana Carolina Meira também encontrou na poesia um atalho para a cura. “Eu faço terapia, mas a poesia é parte importante desse processo. Ela me ajuda a lidar com questões que me afligem, como o racismo. Muitas vezes as pessoas não notam que afligem nosso psicológico”, conta.
A força vem são só do desabafo no papel, mas da rede de apoio que nasce da literatura. “Conhecer outras pessoas que passam pelo mesmo tem sido muito importante pra mim, saber que quem escreve é gente como eu e não aquele autor super distante e abstrato.”
Julia Leite encontrou na poesia a segurança para lidar com a sexualidade, os dilemas da vida adulta e como ser mulher no mundo.
“Quando eu levava cantada na rua, eu ia lá e escrevia sobre isso. Ou quando eu começava/terminava o relacionamento com uma menina e não sabia para quem contar, eu escrevia”, disse Julia Leite.
“A poesia é uma das formas mais sinceras de acessar uma ferida para ajudar a cicatrizar. E pra mim, ela sempre acessou meus traumas e ajudou a transformá-los em algo além disso. Algo despoluído”, diz.
Gleiciane Medeiros, estudante de biologia, escreve sobre problemas sociais, principalmente das mulheres, para ajudar outras meninas.
“Utilizo a escrita como válvula de escape. Escrever e falar sobre a sociedade me auxilia a lidar comigo mesma e também a transformar outras pessoas. Se essa mudança tem um impacto no pensamento de alguém, na forma de ver o mundo além de si mesmo, então eu terei atingido meu objetivo.”

Pode curar?

É vista como autoajuda, mas tem poder de tratamento? Para a psicóloga Luciana Dadico, professora da Universidade de São Paulo (USP), é preciso cuidado ao recorrer aos textos com essa finalidade.
“A literatura tem o poder de proporcionar uma fuga temporária da realidade, para depois devolver-nos a ela transformados. A mim parece que a literatura é útil exatamente porque não serve para nada, não se presta a esse utilitarismo que nos consome”, diz a psicóloga e professora.
A professora de psicologia da USP Débora Moraes reconhece o efeito terapêutico da literatura, mas diz que ela não deve ser vista como tratamento. “Há uma impossibilidade de ler uma obra literária sem ao mesmo tempo ler-se. O processo criativo envolvido na escrita e na leitura literária pode ter efeito terapêutico, mas isso não quer dizer que deva ou possa ser prescrito como terapia.”
“Não há nenhuma garantia dos efeitos terapêuticos da criação literária. Basta lembrar que existem poetas que se suicidaram no auge da produção literária. E que o lançamento da novela ‘Os sofrimentos do jovem Werther’ de Goethe, supostamente desencadeou uma onda de suicídios na Europa”, alerta Moraes.
“Há outros casos, ao contrário, em que justamente ao ler textos considerados 'pesados', leitores conseguem organizar suas ideias e elaborar seus sentimentos, lidando melhor com os fatos de seu próprio contexto. Quer dizer: tudo depende do que e do modo como se lê em certos contextos pessoais e culturais”, explica Dadico.

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