Coluna Cláusula Pétrea / às quartas no Justificando
Por Mariana Bezerra Salamé, juíza de direito
23 de outubro de 2019
Frequentemente me deparo com o seguinte questionamento: homens também não são vítimas de violências perpetradas por mulheres? Por que só se fala de violência contra a mulher? ‘
A resposta óbvia a primeira indagação é sim. É certo que mulheres podem ser sujeitos ativos da violência. Ocorre que não há uma cultura de violência das mulheres contra os homens, pelo simples fato deles serem homens.
O inverso, por sua vez, não é verdadeiro. Existe um padrão social de violência contra as mulheres, as quais são sistematicamente vítimas de abusos de toda ordem – físico, sexual, psicológico, moral, patrimonial, simbólico – praticadas por homens.
O inverso, por sua vez, não é verdadeiro. Existe um padrão social de violência contra as mulheres, as quais são sistematicamente vítimas de abusos de toda ordem – físico, sexual, psicológico, moral, patrimonial, simbólico – praticadas por homens.
É a desigualdade entre homens e mulheres que legitima e perpetua a cultura de violência de gênero, ao viabilizar a reprodução de práticas de opressão e dominação, que reforçam a dominação masculina e a subjugação feminina.
Essa desigualdade é elemento estrutural e estruturante da nossa sociedade e, em razão dela, “as mulheres são vítimas de violência porque são mulheres”. E, quando se faz um recorte de raça e classe social, as mulheres negras e pobres são quem mais sofrem as consequências nefastas da desigualdade de gênero.
O fosso da desigualdade é profundo e produz número assombroso de vítimas. Somente em 2018, aqui no Brasil, de acordo com o 13º Anuário Brasileiro da Segurança Pública[1], os homens foram autores de 96,3% dos crimes de estupro e de estupro de vulnerável, o que correspondeu a 63.597 casos. Neste índice, esmagadora maioria das vítimas eram mulheres, sendo que quatro meninas de até 13 anos foram estupradas por hora. A cada dois minutos, uma mulher foi vítima de violência doméstica, com 263.067 casos de lesão corporal dolosa.
A Lei Maria da Penha, fruto de uma luta hercúlea dos movimentos sociais feministas, depois de mais de uma década de vigência, um grande e inegável avanço na promoção dos direitos humanos das mulheres, não foi capaz de frear os casos de violência.
Nesse mesmo ano, foram vítimas do crime de feminicídio 1.206 mulheres, em sua maioria negras (61%). Desses feminicídios, 65,6% aconteceram na residência da vítima/agressor e 88,8% foram praticados por companheiro ou ex-companheiro da vítima.
E o que se descortina para este ano 2019 é um cenário nada animador. Para ilustrar, no Estado de São Paulo, no primeiro semestre deste ano, casos de feminicídio cresceram 44%, em comparação a 2018[2]; no Estado de Santa Catarina, de janeiro a setembro deste ano, igualou o total de casos registrados em 2018[3]; no Estado de Alagoas, entre janeiro e outubro deste ano, 33 mulheres foram mortas, superando os 20 casos do ano de 2018[4].
Uma pequeníssima fração desses números se traduziram em processos que por mim passaram. Como Juíza de Direito, tive a oportunidade de acompanhar mulheres, muitas ainda crianças, que sofreram as consequências perversas da desigualdade de gênero. Por serem mulheres, meninas, foi-lhes negado o direito de existir, seja com sua morte física seja com a sua morte psíquica.
Já me deparei com situações nas quais a violência está implícita, submersa num discurso de (auto)culpabilização da mulher em situação de violência. Neste ponto, compartilho a frase que costumo escutar em sala de audiência de mulheres perceptivelmente envergonhadas, com olhar cabisbaixo: “Juíza, a culpa é minha!”, trazendo ao meu conhecimento suas razões para chegar a tal conclusão. Ou mesmo: “Fui eu que provoquei”; “Ele estava num dia ruim”; “Ele só fez isso porque bebeu”, o que é reproduzido também pelas crianças vítimas de abuso sexual.
Como se contrapor a essas ilações, quando, ao lançar um olhar atento, observo que essa constatação da vítima é o senso comum, diante da naturalização dos abusos? Persiste uma crença que legitima e autoriza o homem a impor às mulheres as suas vontades, seu controle, mesmo que para isso seja necessária a imposição da força, em qualquer das suas dimensões.
A naturalização da violência é tanta que se reproduz até mesmo no Sistema de Justiça, na nossa atuação como operadores do direito. A nossa formação é incipiente quanto à questão de gênero. Não conseguimos, enquanto instituição, avançar ao ponto de superar, em todos os casos levados à apreciação judicial, o julgamento moral da vítima. É inegável que ainda subsiste no Judiciário a naturalização da violência de gênero. E, quando esta questão se atrela à raça, o despreparo dos operadores do direito é ainda maior mais danoso.
Aqui faço uma observação: quem acompanha a jurisprudência sabe que, de tempos em tempos, somos surpreendidas com julgados que reproduzem no seu discurso estereótipos e discriminação de gênero, o que, em si, é uma violência. Ora, o direito de defesa do réu é cláusula pétrea e, na ausência de provas, este deve ser absolvido. No entanto, a eventual absolvição do acusado não pode servir de pretexto para desqualificar a pretensa vítima, em razão de seu comportamento social.
A naturalização da violência e a culpabilização da vítima estão intrinsecamente relacionadas com a dificuldade de o homem agressor compreender que a sua conduta é de violência. Já ouvi muitos homens que, em suas falas, apresentam justificativas para os seus atos que são, em verdade, a reprodução da cultura de superioridade do gênero masculino. Alguns sequer conseguem entender o porquê de terem sido denunciados ou mesmo de terem sido presos, não reconhecendo que a sua conduta foi violenta a tal ponto que acarretou na sua segregação. O “arrependimento” que relatam, em incontáveis situações, distancia-se da conduta abusiva que teriam perpetrado. É o arrependimento pela prisão, sem conseguir fazer qualquer reflexão acerca da sua prática machista.
Como explicar que “homens de bem” são autores de crimes? Como explicar que “homens de bem” honestos, pais de família, trabalhadores, “homens de bem” sem passagens pela polícia, sem antecedentes criminais, são responsáveis pela epidemia que é a violência contra mulheres e meninas? São esses homens que estupram as suas filhas, enteadas, netas, sobrinhas, irmãs, esposas, companheiras, amantes. São eles também que as agridem das mais diversas formas. E, por fim, são também esses “homens de bem” que as matam.
Por sua vez, como explicar para as mulheres, muitas ainda crianças, que foram vítimas da violência pelo simples fato de serem do gênero feminino? Que não importa o que fizeram, nada justifica a agressão física ou sexual? Que pai, padrasto, irmão, avô ou tio não pode manter relação sexual com uma filha, neta, irmã ou sobrinha?
Tão somente numa perspectiva de que a violência de gênero é, além de uma violação aos direitos humanos das mulheres, um problema estrutural, como anteriormente assentado, é que se pode encarar às referidas indagações. Em razão da sua natureza estrutural, complexa, multifacetária, demanda um conjunto de ações e políticas públicas – para além da repressão penal – que tanto previna práticas de opressão, dominação e violência quanto promova a igualdade substancial entre homens e mulheres.
A criminalização da violência com a consequente sanção do agressor não deve ser a única resposta à violência de gênero. Não se nega que o reconhecimento dessa violência como bem jurídico protegido pelo direito penal, após incansável luta dos movimentos feministas, foi e é fundamental para trazer a esfera pública tanto a discussão do problema como o reconhecimento jurídico da inadequação/ilicitude da conduta, com a responsabilização do ofensor.
No entanto, quando a resposta a um problema estrutural vem somente pelo direito penal – situação enfrentada pelo racismo estrutural, o qual revela a sua face mais perversa no superencarceramento de pessoas negras e no descarte dos corpos negros, com a necropolítica – o que se tem é o efeito inverso, ou seja, a perpetuação da violência.
Não devemos aceitar que o Sistema de Justiça Criminal seja a única e principal resposta à violência de gênero. É indispensável ir além, desenvolver políticas públicas de enfrentamento à desigualdade de gênero, percorrer outros caminhos, em especial o da educação.
Nestes tempos de obscurantismos, retrocessos sociais e de aumento da violência em razão do gênero, não é despropositadamente ou por um acaso que a educação vem sofrendo com ataques de toda ordem e tentativas de (i) limitar o seu alcance emancipatório, (ii) silenciar as professoras e os professores, com censura e ameaças, e (iii) eobstacularizar o acesso dos estudantes ao conhecimento e à autonomia.
Considerando o que vi e ouvi em sala de audiência, o que li nos processos, para que o enfrentamento à violência contra a mulher não se limite à repressão, às situações em que o fato abusivo já ocorreu ou está na iminência de acontecer, tenho convicção de que devemos defender uma política pública de educação sexual e para igualdade gênero em todas as escolas e universidades do Brasil, desde a pré-escola, para prevenir e romper o ciclo de violência e concretizar substancialmente a igualdade entre homens e mulheres preconizada pela Constituição Federal (art. 5º, inciso I).
Mariana Bezerra Salamé é juíza de direito no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e membra da Associação Juízes para Democracia.
Notas:
[1] Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf
[2] Disponível em: https://claudia.abril.com.br/noticias/casos-feminicidio-aumentam-sao-paulo/
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