sábado, 7 de dezembro de 2019

Funmilayo Afrobeat: a banda só de mulheres negras que vai virar o jogo

Hypeness
por: Kauê Vieira
Fotos: foto 1: José de Holanda/Divulgação/foto 2: Reprodução
Pouco ritmos musicais traduzem a cultura de um povo como o afrobeat representa a Nigéria. O estilo consagrado por Fela Kuti foi fundamental para a luta contra a ditadura sanguinária que tomou conta do país africano na década de 1970 e mudou os rumos da música produzida na faixa ocidental do continente. 
Porém, nem mesmo um cara com a genialidade de Fela Kuti conseguiu se livrar do machismo. Na verdade, a prática sistêmica de excluir mulheres ou não reconhecer sua contribuição fundamental para o sucesso do afrobeat se arrastou por décadas. 
Funmilayo Afrobeat Orquestra
São muitos os efeitos, como o apagamento histórico da biografia de Funmilayo Kuti. Esta professora e ativista dos direitos da mulheres nascida em Abeokuta, como o sobrenome já diz, é mãe de Fela. Mais do que isso, ‘Mãe África’, apelido dado pela luta feminista na Nigériaé indispensável para o sucesso do afrobeat. 
“Quando pensamos em afrobeat, logo nos vem à cabeça a obra de Fela Kuti, músico nigeriano conhecido por suas duras críticas aos governos africanos no período pós independências. A Nigéria, como outros países, passou por diversos governos civis e militares autoritários e corruptos e muitos artistas, sendo Fela Kuti o mais conhecido deles, se posicionaram diante deste cenário. Antes de Fela, Funmilayo Kuti já estava lutando pelos direitos das mulheres e pela independência nigeriana, servindo como uma das principais referências políticas para o filho”.
A fala acima é de um grupo que chega na esteira de um tempo de revisões históricas puxadas por quem não aguenta mais ser coadjuvante da própria trajetória. A banda surge em São Paulo como o primeiro conjunto de afrobeat formado apenas por mulheres. Com nome inspirado na luta feminista de uma mulher negra nigeriana, a Funmilayo Afrobeat Orquestra já faz sucesso com o lançamento do primeiro single, ‘Negração’, gravado em parceria com o Spotify. 

“Esse fato [de ser uma banda formada apenas por mulheres] é extremamente significativo. A constatação soa absurda se considerarmos que o afrobeat se consolidou na década de 1970 e que existem diversas musicistas talentosíssimas que conhecem e apreciam esse estilo musical”, dizem as integrantes do grupo em conversa com o Hypeness.  
As coisas aconteceram rápido desde o encontro destas 11 mulheres negras com histórias distintas, mas determinadas em se apossar da arte como instrumento de mudança social, sobretudo na luta antirracista e contra o machismo
Desconhecíamos uma banda de afrobeat totalmente feminina até a formação da Funmilayo Afrobeat Orquestra – o que não quer dizer que não exista, ou não tenha existido, mas que não chegou ao conhecimento de todes. Queremos mostrar, com essa formação, que é possível trabalhar entre mulheres, que conseguimos criar redes de apoio e construir coisas juntas, compor, fazer arranjos, produzir, cantar, tocar numa lógica de trabalho que respeite nossas demandas, nossos processos e limitações. Isso é fundamental: encontrar uma lógica feminina de trabalho. Isso é muito novo pra todas nós, mas tem sido incrível. 

‘Vai ecoar: Marielle Presente’

A formação da banda se deu a partir do encontro entre a cantora e saxofonista Stela Nesrine e da trompetista Larissa Oliveira, ambas incomodadas com a ausência de espaço para mulheres no universo do afrobeat. 
“Queremos forçar nossa entrada em espaços que até então eram entendidos como prioritariamente masculinos. Às mulheres, principalmente no Afrobeat, sempre foi reservado o espaço de backing vocals e dançarinas, somente. Nós queremos mais, porque podemos fazer mais”, afirmam as integrantes da Funmilayo. 
A coisa ganhou corpo e forma e outras artistas se uniram ao grupo. O movimento de formação da Funmilayo Afrobeat reafirma o espírito de coletividade tão presente no alicerce de sociedades e nos provérbios que equilibram a cultura de diferentes países de África. 




A pluralidade das realidades destas mulheres negras potencializa ainda mais a sonoridade do conjunto, como elas mesmas reconhecem. 
“A vivência se traduz de diversas formas, tanto nas letras das músicas autorais que estamos compondo, como ‘Negração’ que, entre outras coisas, fala do incômodo de ser mulher negra no Brasil e não se ver representada, ou ‘Vazante de Verão’ que fala do prazer feminino como a delicadeza e violência das águas de um rio”, pontuam. 
A formação conta ainda com Sthe Araújo e AfroJu, que dividem a percussão. Ana Goes no sax tenor, Suka Figueiredo no sax barítono, Priscila Hilário na bateria, Bruna duarte no baixo, Jasper na guitarra, Rosa Couto nos vocais e bloco sonoro e Tamiris Silveira nos teclados. 
Somos uma banda diversa, uma é mãe, a outra está na faculdade, a outra faz pesquisa e a outra está desvendando um instrumento novo, uma outra se arriscando a cantar, uma vem da música erudita, outra tem vivência na cultura popular e etc, tudo isso é partilhado, atravessa o som, tudo isso é material poético, sonoro e cada uma coloca um pouco de tempero no resultado final. No mais, não queremos reproduzir dentro da banda a lógica de opressão que vivemos fora, numa sociedade que  nos exclui dos espaços de poder e decisão, que nos hiperssexualiza e isola. Temos nos esforçado em ter uma postura de acolhimento e de liberdade para a criação.  
A escolha de reverenciar a memória de Marielle Franco – assassinada a tiros no centro do Rio de Janeiro em um crime impune há mais de um ano – não é à toa. Aliás, a lembrança de que Marielle está, sim, presente, é reflexo de como este grupo de mulheres negras enxerga a arte e as similaridades nos caminhos percorridos pela quinta vereadora mais votada do Rio e Funmilayo Kuti. 
Sandra Iszadore e Fela Kuti

“Marielle Franco e Funmilayo Kuti foram duas mulheres fortes e ativas politicamente e que foram interrompidas violentamente. As duas são homenageadas por nós, a primeira citamos no single ‘Negração’, e da segunda pegamos de empréstimo o nome para a banda pois acreditamos que as lutas que cada uma delas travou estão totalmente conectadas. As duas lidaram com estruturas coloniais, racistas e machistas. Essas estruturas permanecem ainda intactas, exercendo pressão sobre nossos corpos. É da fonte de força e inspiração que elas beberam que nós também queremos beber, ou seja, da cultura africana e afro-brasileira, da solidariedade feminina e da luta por mais igualdade social”, destacam. 
A presença de mulheres em espaços de destaque que proporciona esse tipo de reflexão. Historicamente, artistas do sexo feminino tiveram atuação limitada no afrobeat. A maioria das mulheres atuava como backing vocal. Ou seja, dando suporte ao homem no palco. Mas não se engane, as mulheres negras são o alicerce para a existência e sucesso do ritmo até os dias de hoje. Nessa linha, as membras da Funmilayo Afrobeat criticam os obstáculos enfrentados pelas mulheres no mercado fonográfico e artístico como um todo. A praga da discriminação racial torna o desafio ainda maior para quem nasce com a pele preta. 
As mulheres no geral e, especificamente, as mulheres negras, sempre encontraram dificuldades de inserção e permanência no mercado de trabalho. Na música esse fato se confirma, ainda mais se considerarmos atividades como compositoras, arranjadoras ou instrumentistas, onde a hiperssexualização dessa figura feminina é mais difícil, se compararmos com o papel de intérpretes, backing vocals ou dançarinas, onde a imagem e o corpo estão mais expostos, ficando mais fácil o processo de objetificação. Sem a existência das mulheres o Afrobeat não teria o força que alcançou, afinal  de contas, Sandra Iszadore e Funmilayo Kuti fizeram o letramento político e racial de Fela Kuti. As dançarinas e backing vocals, como Naijite e Alake, vivenciaram no corpo as violentas consequências por terem escolhido a vida artística e por assumirem a posição política que assumiram. Além dessas, existiram muitas outras e mal sabemos seus nomes. Isso nos entristece profundamente.  

Por falar em Sandra Iszadore, a norte-americana é decisiva para o rompimento de fronteiras do afrobeat. A ‘rainha mãe’ do ritmo africano é ativista pelo direito dos negros e foi membra dos Panteras Negras – partido político que lutou pelos direitos civis dos afro-americanos. 
Sandra é a mentora política intelectual de Fela Kuti. Os dois se conheceram em 1969 e foi Iszadore a responsável por apresentar ao cantor os ensinamentos de Malcolm X e a música de Nina Simone. Sua importância é reconhecida no livro ‘Fela – Esta Vida Puta’ – escrito pelo cubano Carlos Moore. 
“Musicalmente falando, considerando o Afrobeat, isso se traduz numa proposta musical que quebre os paradigmas impostos pelo Ocidente colonizador e letras que sirvam de crítica e alerta às pessoas. Isso para nós funciona como um espelho, pois estamos vivendo um momento de grande instabilidade política no Brasil e uma crescente onda conservadora e autoritária que acentua o genocídio da população negra (jovens negros e negras são assassinados diariamente pelas mãos do Estado), a perseguição às lutas feministas, à população LGBTQI+ entre outras minorias ‘dissidentes’ da lógica que os governos atuais querem pregar como ideais: uma sociedade branca, cristã e heteronormativa. Acreditamos não ser possível ficar em silêncio num momento como esse, por isso também pegamos o microfone”.   


A política também está presente no avanço tecnológico, que descentralizou o domínio das mãos de duas ou três gravadoras. Há, nos dias de hoje, mais liberdade artística. No entanto, ainda é complicado para um mulher negra (imagine um bonde) se sobressair sem cair nos estereótipos alimentados pelo racismo e machismo
Existe uma pressão externa que pode direcionar para nós um olhar objetificador e temos o desafio de nos preparar para responder a isso da melhor forma possível. Outro ponto é lidar com nossas demandas internas, que atravessam a vida das mulheres pretas no geral e, logicamente, as nossas. Essas demandas  vão desde inseguranças, a perrengues financeiros e sobrecarga de trabalho. É necessário entender que essa é a nossa realidade e é com ela que temos que lidar, é essa realidade que temos que transformar. Para que uma mudança, mesmo que mínima, aconteça, nós descobrimos que precisamos criar redes de escuta, de proteção, de apoio, para que possamos nos sentir mais seguras e capazes de encarar as pressões externas. Não dá pra reproduzir e continuar a viver em um ambiente masculino, agressivo e competitivo no qual jamais seremos suficientes, por sermos mulheres e negras. Então, o maior desafio é se equilibrar nessa corda banda que é viver em uma sociedade que espera que a gente caia. O desafio é não cair e não deixar que as outras caiam.      
Os tempos são outros e por mais que o fantasma da censura siga se valendo da falta de humanidade de mentes que insistem em manter o domínio baseado em práticas criminosas como o genocídio negro – que segue minando o futuro da juventude brasileira – a arte se consolida (ainda mais) como combustível para a mudança, que meu caro, é incontrolável. 
“Queremos deixar um convite à luta e à mudança, queremos reforçar que a associação entre pessoas pretas é uma coisa positiva e possível. Enfim, queremos deixar mais que uma letra de denúncia, mas também um sentimento de esperança que aqueça o coração de quem ouvir. Esperamos que toda essa entrega que temos vivido enquanto banda possa inspirar outras meninas e mulheres e que também inspire os homens, que eles possam entender que eles também têm um papel importante pra virar esse jogo de desigualdade de gênero e racial que percebemos no mercado musical. Esperamos que muitos ouçam!”    
Ouça o single ‘Negração’:

Serviço: 

Show Funmilayo Afrobeat Orquestra 
Onde: Sesc Santo Amaro | Rua Amador Bueno – 505 
Quando: Sábado, 7 de dezembro 
Horário: Às 17h 
Grátis 







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