domingo, 5 de janeiro de 2020

‘Aconselharam meus pais que me trocassem por um bebê menino’


Nargis Taraki no dia de sua formatura na universidadeDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionNargis Taraki no dia de sua formatura na universidade; como ela era a quinta filha mulher de seus pais, alguns parentes sugeriram que ela fosse trocada por outro bebê da aldeia

BBC NEWS
05/01/2020
Quando a afegã Nargis Taraki nasceu, familiares tentaram convencer seus pais a trocar a menina — caçula de outras quatro irmãs — por um bebê do sexo masculino.
Com 22 anos, Nargis tem como missão de vida provar aos pais (e ao mundo) que eles tomaram a decisão correta em ficar com ela.

A jovem hoje é ativista pela educação e empoderamento femininos em seu país e foi incluída pela BBC na edição de 2018 da lista 100 Women, que mostra a trajetória de mulheres influentes e inspiradoras.
A seguir, ela conta sua história:

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"Em 1997, cheguei ao mundo como a quinta filha dos meus pais.
Minha tia e outros parentes imediatamente começaram a pressionar a minha mãe a aceitar que meu pai pegasse uma segunda esposa, algo que é comum no Afeganistão — acredita-se que uma nova esposa se traduz em uma nova chance de ter um filho homem.
Quando minha mãe recusou, veio a sugestão de que meu pai me trocasse por um bebê menino. Chegaram até a encontrar uma família na aldeia que estava disposta a abrir mão de seu menino e ficar comigo.
Trocar crianças não é algo que seja parte da nossa cultura, e eu nunca ouvi falar de nada parecido, mas meninos são mais valorizados na sociedade afegã como tradicionais provedores da família.

Nargis Taraki com seu paiDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionNargis diz que o apoio do pai foi fundamental para que ela se tornasse a pessoa que é hoje

As pessoas diziam deliberadamente coisas para chatear a minha mãe e fazê-la sentir-se inferior por não ter um filho homem.
Apesar da recusa dela em abrir mão de mim, alguns anciãos locais ainda abordavam o meu pai com essa sugestão. Mas ele tinha uma mentalidade completamente diferente, dizia a todos que me amava e que um dia provaria que uma filha é capaz de conquistar tudo o que um filho é capaz.
Não foi uma época fácil para o meu pai. Ele havia servido ao Exército durante o regime apoiado pelos soviéticos, e meu distrito natal era então controlado por grupos fundamentalistas religiosos.
Por isso, algumas pessoas na aldeia detestavam o meu pai e não socializavam conosco.
Meu pai, porém, acreditava no que dizia e mantinha sua palavra. E foi o homem que teve o impacto mais positivo na formação do meu caráter.

Fugir de casa

As coisas pioraram para nós depois que os militantes do Talebã tomaram o controle do nosso distrito. Em 1998, meu pai teve de fugir para o Paquistão, e pouco depois fomos ao seu encontro.
A vida por lá não era fácil, mas ele conseguiu um emprego como gerente de uma fábrica de sapatos. Talvez a melhor coisa que tenha acontecido aos meus pais enquanto estavam no Paquistão é que finalmente tiveram um filho homem, e depois mais uma menina.

Nargis (à esq) com uma de suas irmãs e seu irmão mais novoDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionNargis (à esq) com uma de suas irmãs e seu irmão mais novo; província natal da família ainda é alvo de atentados e disputas

Em 2001, nossa família mudou-se para Cabul, de volta ao Afeganistão, depois que o regime do Talebã foi derrubado. Não tínhamos casa própria e fomos morar com meus tios. Minhas irmãs e eu conseguimos continuar a frequentar a escola, apesar do conservadorismo na nossa cultura.
Depois, cursei Políticas Públicas e Administração na Universidade de Cabul e me formei há três anos, com as notas mais altas da classe naquele ano. Durante todo esse período, meu pai nunca deixou de me apoiar.
Alguns anos atrás, fui assistir a uma partida de críquete em Cabul com a minha irmã. Não havia muitas mulheres no estádio, e fotos e vídeos nossos passaram a circular nas redes sociais.
As pessoas nos criticavam e deixavam comentários negativos (nos vídeos), dizendo que éramos sem-vergonha por estar em um estádio entre homens. Outros disseram que estávamos tentando disseminar o adultério ou que estávamos sendo pagas pelos americanos.
Quando meu pai viu alguns desses comentários no Facebook, olhou para mim e disse: 'Minha querida, você fez a coisa certa. Fico feliz que tenha irritado alguns desses idiotas. A vida é curta. Aproveite-a o quanto puder'.
Meu pai morreu de câncer no início deste ano. Perdi o apoio constante que fez de mim a pessoa que sou hoje, [mas] sei que ele sempre estará comigo.

Nargis durante palestra no AfeganistãoDireito de imagemPROMOTE-WIE
Image captionNargis durante palestra no Afeganistão; ela hoje se dedica a promover o empoderamento feminino

Três anos atrás, tentei abrir uma escola para garotas na minha aldeia natal, em Ghazni. Falei com meu pai a respeito e ele achou que seria quase impossível, por causa das barreiras culturais.
Até mesmo meninos têm dificuldade (em estudar) por causa da situação de segurança (confrontos e atentados do Talebã ainda são constantes nessa província). Ele sugeriu dar à escola o nome de uma madrassa (escola religiosa), o que talvez facilitasse o processo.
No fim das contas, não pude viajar à minha aldeia porque era simplesmente perigoso demais. Eu e uma de minhas irmãs ainda esperamos conquistar esse objetivo algum dia.
Por enquanto, sou voluntária há vários anos de ONGs que defendem a educação, a saúde e o empoderamento feminino.
Também faço palestras sobre o direito das meninas de frequentar escolas e universidades e de trabalhar.
Sempre sonhei em estudar na Universidade de Oxford. Quando vejo rankings internacionais de universidades, Oxford está sempre em primeiro ou em segundo, e quando comparo-a com a Universidade de Cabul, me dá um pouco de tristeza — o que não significa que não seja grata de ter podido estudar lá.

Nargis Taraki durante um TEDTalkDireito de imagemPROMOTE-WIE
Image captionNargis Taraki durante um TEDTalk: 'Acredito no que eu quero alcançar na vida, e não vou abrir mão disso'

Amo ler no meu tempo livre — uma média de dois a três livros por semana —, e Paulo Coelho é o meu autor favorito.
Quanto à possibilidade de me casar, quero escolher alguém que tenha as mesmas qualidades que o meu pai. Gostaria de passar o resto da minha vida com alguém que tenha uma atitude similar à dele — que apoie a mim e a minhas escolhas.
Família também é importante. Às vezes você se casa com o melhor homem do mundo, mas não se adapta à família dele. Essa família terá de me apoiar no que eu quiser fazer da vida. Se eles resistirem, vou tentar mudar a mentalidade deles. Acredito no que eu quero alcançar na vida, e não vou abrir mão disso."

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