Cinebiografia da queda de Roger Ailes do comando da Fox News flerta apenas com os pormenores das dinâmicas tóxicas de poder dentro da emissora perante as acusações de abuso sexual
por Pedro Strazza
16.jan.2020
Em meio a tantas imagens vendidas por “O Escândalo” como “reveladoras” da cultura de trabalho tóxica da Fox News, é um tanto irônico perceber que a mais verdadeira quanto ao procedimento do filme seja no fim os letreiros exibidos no começo da projeção, os quais dão conta de escancarar ao espectador a veracidade dos eventos mostrados. São as imagens mais verdadeiras não por aquilo que buscam afirmar mas pelo que passam nas entrelinhas, no tratamento submisso das palavras escritas para descrever um simples “baseado em fatos”: é quase um pedido de desculpas às figuras retratadas, algo que feito logo no início de um projeto sobre assédio sexual tende a ser contraditório por essência.
Contradição, aliás, é um termo que resume muito bem o longa de Jay Roach, cujo foco na ainda recente história da queda do poderoso executivo Roger Ailes (John Lithgow) do comando da emissora consegue ser ao mesmo tempo contemporâneo às questões sociais em jogo e antiquado na forma como as manipula. Em tempos onde a exposição de predadores sexuais começa a se tornar uma resposta possível dentro da indústria e enfim se dá início ao julgamento de Harvey Weinstein, recontar o caso de Ailes nas telonas é uma forma nem tão discreta de Hollywood não apenas se “pronunciar” sobre o tema – o que talvez justifique a presença de um elenco tão “estrelado” no projeto – como incorporá-lo às suas narrativas, elevando-o assim à importância de mais um dos “grandes temas” do cenário atual.
Mas se este é um clima de solenidade que já se converteu em rotina nos círculos maiores da indústria estadunidense e no seu “cinema de grandes temas” que vive a abarcar – e é difícil não lembrar nestas horas de “O Vale das Bonecas” e seu tratamento sobre o vício das drogas no fim dos anos 60, por exemplo -, como outras “primeiras incursões” é apenas inevitável que “O Escândalo” torne-se refém das próprias temáticas pelo ineditismo e a completa falta de referencial que tem quanto às mesmas.
Roach e o roteirista Charles Randolph talvez tenham alguma consciência deste desafio, porque seus esforços concentram-se justo no ato de aproximar a história das estruturas mais modernas das cinebiografias convencionais. Como “A Grande Aposta” (cujo texto também era de Randolph), o longa assume do início a fragmentação da montagem para situar o espectador no ambiente corrosivo da Fox News, usando das três protagonistas como forma de navegar pelos diferentes níveis executivos da emissora: por mais que se acompanhe as histórias de Megyn Kelly (Charlize Theron) e Gretchen Carlson (Nicole Kidman) para compreender a dinâmica dos altos escalões tanto na produção quanto apresentação dos programas televisivos em si, fabrica-se também a perspectiva da jovem estagiária Kayla (Margot Robbie) para descobrir as ramificações da cultura de medo promovida por Ailes no nível das baias da redação, onde o que já é perturbador se deturpa ainda mais com naturalidade.
Esta estrutura é toda feita para dar conta de uma narrativa de poder que vê em Ailes o único centro possível da história, e é na forma como as protagonistas se relacionam com o executivo que o filme com naturalidade busca escancarar as situações de abuso que começam a se empilhar dentro da companhia. Como os diálogos não cansam de repetir, “O Escândalo” é todo pautado pelo abuso de poder no mundo corporativo, seja nos assédios e maus tratos do CEO sobre seus empregados à maneira como estes acatam e repercutem este comportamento a seu modo, na cultura de silenciamento e de falta de apoio às vítimas que domina os escritórios da emissora.
É na forma como as protagonistas se relacionam com o executivo que o filme busca escancarar as situações de abuso
O que a produção não percebe nesta dinâmica, porém, é como este procedimento privilegia o foco no abusador em detrimento dos abusados, pois o interesse da narrativa no fundo recai apenas no arco da queda de Ailes perante as denúncias de Carlson e Kelly. Junto de Kayla, as três protagonistas no filme carregam arcos que se encenam sobre o dilema de revelar ou não ao mundo seus assédios e acatar com as consequências desta divulgação, uma perspectiva o qual Roach busca traduzir na constatação de rompimento com o meio que as cerca. É apenas quando cada uma delas chega à constatação da toxicidade daquele ambiente que elas optam por ir a público com as acusações, e motivos de resistência sobram neste caminho – é o trabalho, a família, a reputação, o destino dos colegas, tudo precisa ser pesado dentro de um ambiente fadado a perversões das ações mais “honestas”.
Esta decisão certamente permite que o longa se conduza por um viés moral e facilita a forma pela qual a cinebiografia torna digerível o tema, mas também implica num divórcio um tanto indigesto das figuras individuais do meio que habitam. O contraste fica melhor perceptível no tratamento privilegiado das personagens “reais” e centrais da história, com as figuras de Kelly e Carlson sendo submetidas a arcos um tanto desonestos de purgação de pecados – o filme em alguns momentos ensaia buscar expandir suas posições de vítimas das atitudes de Ailes a toda a trajetória profissional das duas, vide os discursos da jornalista de Kate McKinnon – enquanto todos aos seus redor caem no escrachamento da sátira, independente de serem vítimas ou abusadores – o que é no mínimo problemático se considerar a seriedade com o qual é tratado o tema maior do abuso aqui.
O lado mais cruel desta lógica, porém, é como no fim as trajetórias das protagonistas ficam submetidas a este ato da denúncia, não importando como elas são afetadas pelos ataques de seu assediador. Enquanto Carlson é praticamente eliminada da narrativa a partir do momento que vai a público com as primeiras acusações do processo, Kelly assume o protagonismo da história apenas até o momento em que enfim decide se juntar ao movimento, restando ao longa registrar apenas o desfecho da trajetória profissional de Ailes e o desmonte das estruturas armadas por ele na companhia após sua denúncia – despir o monstro ao mundo é uma manobra mais importante que o resto, parece afirmar o filme neste momento, quando privilegia suas reuniões com a família Murdoch e reduz ao máximo os efeitos da ação de Kelly.
O interesse da narrativa no fundo recai apenas no arco da queda de Ailes perante as denúncias de Carlson e Kelly
A partir daí o filme se desmonta, preso ainda por impulsos sórdidos de querer empurrar ao público a perversidade destes abusos afim apenas da tensão subsequente a estas cenas – e neste sentido todas as escolhas de câmera na passagem do assédio de Kayla são pavorosas, incluindo o ato de alternar-se entre o desnudamento de seu corpo e o proveito de Ailes para forçar a agonizante “terceira pessoa silenciosa”. Revelado na comédia e habituado a cinebiografias produzidas para a TV (ou mais convencionais para o cinema, a exemplo de “Trumbo”), Roach acostumou-se na carreira a dirigir histórias que tinham como objetivo final a exposição de hipocrisias do sistema, mas aqui este modo de operação não encontra anteparo irônico para ancorar as dores dos abusos cometidos e só acentua as fragilidades da construção da história.
Só isso para explicar, pelo menos, a completa contradição narrativa do fim, quando a trama relembra a decisão de Rupert Murdoch (Malcolm McDowell) em assumir o cargo de Ailes após sua demissão para efeitos de “nada mudou” e termina o filme alegando que o poder da mudança está nas mãos daqueles que foram assediados. Em questão de vazio, este encadeamento é tão sólido quanto a imagem da cristã e lésbica enrustida jogando no lixo o crachá da empresa que uma vez se mostrou fiel como forma de provar seu desencanto com aquela cultura – uma cena de lógica de barata tonta que encerra “O Escândalo”, vale acrescentar.
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