quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

‘PROPOSTA DE ABSTINÊNCIA SEXUAL COLOCA ADOLESCENTES EM RISCO’, DIZ ESPECIALISTA

Para Melania Amorim, da Rede Feminista de Ginecologistas, ‘quem adere só se prepara para abstinência e, quando inicia a vida sexual, não está preparado para contracepção e prevenção de doenças’
RIO – A proposta da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, para tornar a abstinência sexual uma política contra a gravidez na adolescência não tem apoio de grande parte dos médicos e especialistas na área e levou a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras a emitir uma nota contrária. Para uma das fundadoras da rede, a professora de ginecologia e obstetrícia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCJ), Melania Amorim, a proposta “coloca adolescentes em risco”.

Dados citados pelo grupo de médicas mostram que o Brasil acompanha a tendência mundial de queda das taxas de gravidez, mas ainda possui um dos maiores índices da América Latina (18,2%), com 69,9 nascimentos para cada mil mulheres entre 15 e 19 anos. O agravante é que essa incidência não se dá de forma homogênea: quase 18% das adolescentes de renda mais baixa se tornam mães, enquanto no estrato de renda superior a cinco salários mínimos a proporção não chega a 1%.
Qual a posição da rede sobre a proposta? 
Nós emitimos uma nota de repúdio porque somos cientistas e pesquisadoras, trabalhamos na área há anos, e sabemos por evidências cientificas, estudos e metanálises, que esses programas baseados na abstinência não funcionam, não são factíveis. Ele ainda coloca em risco os adolescentes porque quem adere a esse tipo de programa só se prepara para abstinência e,  quando inicia a vida sexual, não está preparado para contracepção e prevenção de doenças, tornando-se mais suscetível do que quem tinha educação sexual e via como concreta a possibilidade de iniciar a atividade sexual. Além disso, esses programas são heteronormativos, colocando em risco adolescentes LGBTQ+, e reproduzem estereótipos de gênero, com a menina numa posição passiva. E isso tem influência por toda a vida, até no risco de violência sexual e de inabilidade em negociar o uso de preservativos ao iniciar a vida sexual.
A abstinência como forma paralela de combate ao problema é válida? 
Não funciona, mesmo em paralelo. O que tem que deixar claro é que existe uma forte preocupação do âmbito moral e religioso fazendo crer que vai ser oferecida a educação sexual e preservativos, mas não é isso que está acontecendo. A informação que temos é que estão sendo divulgadas informações enganosas sobre esse assunto para os jovens. Existem pouquíssimos programas de educação sexual no Brasil, e a gente tem uma das taxas mais elevadas de gravidez da América Latina: 18% das gestações no país são de adolescentes. Não existe um programa sólido de distribuição dos métodos reversíveis de longa duração para contracepção (Larcs na sigla em inglês), como DIU e implantes, apenas 2% das mulheres usam, uma das taxas mais baixas do mundo. O que precisamos é de educação sexual integrada ao sistema da saúde e acesso integral aos métodos contraceptivos e Larcs. A gente tem dados da pesquisa Nascer no Brasil, da Fiocruz, que mostram que 56% das gravidezes não são planejadas, número que sobe para 65% em adolescentes.
Por que a gravidez precoce é tão comum no Brasil? 
Porque o país nunca chegou a investir muito nas estratégias que funcionam para reduzir essas taxas. Do ponto de vista de política pública, também tem que melhorar a desigualdade de distribuição de renda e educação. A gravidez na adolescência está intrinsecamente ligada à pobreza e à falta de programas específicos no sistema educacional e de saúde. Há gravidez na adolescência em todos os extratos, mas vai diminuindo progressivamente à medida que aumenta o nível educacional. Em função dos projetos de vida, essas pessoas vão tender naturalmente a postergar a gravidez. Por outro lado, nas classes mais baixas, às vezes, a maternidade é vista como mecanismo de ascensão social: a menina que engravida e se torna mãe acredita, pelo que vê e reproduz, que deixa de ser uma menina, é como se estivesse ascendendo.
E quais as consequências disso? 
A gravidez não planejada vai levar a sérios problemas sociais como abandono escolar e perpetuação do ciclo da pobreza, porque as meninas largam a escola e não conseguem empregos. Suas filhas também vão ter mais chances de ser mães na adolescência, além de haver maior possibilidade de esses filhos se envolverem com o crime. Do ponto de vista biológico, há maior risco de aborto, morte materna e chance elevada de contrair infecções sexualmente transmissíveis. Todo mundo concorda que gravidez na adolescência é terrível, mas pregar abstinência não funciona.
A senhora considera que de fato o início da atividade sexual é precoce no país? 
Está dentro da média mundial. Isso acontece em todo o mundo, a gente tem que lembrar que nossas avós e bisavós tinham basicamente a mesma idade de início de atividade sexual, mas era aceitável, porque se casavam.
É possível convencer os adolescentes a adiar esse início ou adotar a abstinência? 
A educação sexual proporciona empoderamento, até para que essa garota ou garoto decida postergar o início. Mas aí é uma decisão do adolescente, com todas as informações para se prevenir não somente da gravidez mas também contra as ISTs. O que acontece na maioria desses programas de abstinência é que, mesmo quando são convencidos e se engajam,  depois de uns anos a proporção de adolescentes grávidas vai ser semelhante ou até maior. A sexualidade é natural. É muito mais interessante reconhecer isso. Têm adolescentes que dizem eu escolhi esperar, mas ao final de alguns anos, a maioria dos que escolheu esperar não espera e esses não se prepararam em termos de contracepção e doenças. Um outro efeito possível é o casamento precoce. A gente tem visto muitas adolescentes casadas muito jovens, antes dos 16, com naturalidade impressionante, como se fosse uma autorização familiar para que a relação sexual pudesse ocorrer. Além de funcionar como suposto mecanismo de ascensão social, porque vira uma mulher casada, dona de casa, o que tem a ver com projeto de vida que já falamos.
Há estudos que recomendam a abstinência? Experiências positivas em outros países? 
Tem um estudo no Chile que a ministra Damares citou, que é isolado. Foi o único que ela conseguiu vasculhando a literatura internacional, procurando algo que corroborasse seu ponto de vista. Mas os estudos sérios e as metanálises, que são revisões de vários estudos, mostram o contrário.
Qual o peso das ideologias religiosas nessa questão da abstinência? 
Estamos seguindo os mesmos moldes do que vem acontecendo nos EUA com os governos conservadores, numa tentativa de empurrar valores morais e religiosos. O que se quer é impor um projeto moral, com alegações do tipo “o que está acontecendo é falta de freio” ou “o sexo é o problema” e isso tem um componente religioso extremamente forte. Não é à toa que temos no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos uma pastora. Mas é a evidência cientifica que deve nortear a formação de políticas públicas, não opiniões pessoais ou um projeto religioso.
Por Constança Tatsch

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