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terça-feira, 10 de março de 2020

Com Lei do Feminicídio, mulheres deixam de ser colocadas no banco dos réus

Ao longo dos anos, forma como o Direito enxerga questões de gênero foi se transformando, mas ainda há desafios.
HuffPost Brasil
Por Ana Ignacio
“Quase 6 meses depois do júri popular, ainda me sinto presa ao meu passado, carregando diariamente o peso das consequências. Mulher nenhuma deveria sentir o mesmo que eu.” A declaração é de Bárbara Penna, 25 anos, sobrevivente de uma tentativa de feminicídio ocorrida em sua casa, em Porto Alegre, há mais de seis anos.

Seu ex-companheiro, João Moojen, colocou fogo no apartamento em que ela morava e depois a jogou pela janela do prédio. Os dois filhos pequenos do casal morreram no incêndio, assim como um vizinho que tentou ajudar. 
Em setembro do ano passado, seu ex-companheiro foi condenado a 28 anos e quatro meses de prisão. Ele foi considerado culpado pela tentativa de assassinato de Bárbara, mas parcialmente responsabilizado pela morte dos filhos e inocentado em relação à morte do vizinho.
Uma mulher que teve o milagre de estar viva, mas que morre aos poucos pelo desgaste injusto do sistema.
Bárbara Penna, que sobreviveu a tentativa de feminicídio
“Acreditei fielmente que, com a comoção - mesmo que pouca - com os fatos, com vítimas fatais, eu e meus destroços, e todas as provas anexadas, eu iria saber o verdadeiro significado de uma condenação ao menos justa”, disse Bárbara ao HuffPost. “Mas houve apenas mais uma frustração, mesmo depois de tanto sofrimento. O sistema compactua diretamente nas ações do machismo, fazendo com que o índice nunca diminua.”
De fato não reduz. O número de mulheres assassinadas continua em curva ascendente no país. Segundo o Atlas da Violência de 2019, 4.963 brasileiras foram mortas em 2017, considerado o maior registro em dez anos. 
No caso de Bárbara, mesmo após a condenação, ela considera que o desfecho não foi justo e que a tipificação do feminicídio não “ajudou” a obter um resultado esperado. “João Moojen não teve nenhum tipo de queimadura, nenhuma fratura, nenhuma sequela e nem ao menos uma pena rígida. Sou mais um número. Uma mulher que teve o milagre de estar viva, mas que morre aos poucos pelo desgaste injusto do sistema.”

CAROLINE BICOCCHI/HUFFPOST

A Lei Maria da Penha, de 2006, e a Lei do Feminicídio, de 2015, foram avanços importantes na maneira legal de encarar os crimes de violência contra a mulher. No entanto, ainda não se pode dizer que os julgamentos se tornaram mais simples e claros.  
“A inserção da qualificadora específica relativa aos feminicídios, seguindo outros exemplos de criminalização e recrudescimento de penas visando maior encarceramento, tais como tráfico de entorpecentes e racismo, não ocasionou em diminuição das condutas delituosas”, diz Carolina Gerassi, advogada atuante em proteção integral das mulheres e outras minorias.
Segundo Gerassi, têm sido veiculados, inclusive, dados alarmantes que apontam para uma “escalada de diversas modalidades de violência doméstica”, contexto em que se insere a maioria esmagadora dos casos de feminicídio.
“Mas é preciso reconhecer que, não obstante o fracasso enquanto mecanismo de prevenção, a existência de uma qualificadora específica na legislação penal traz consigo um discurso implícito do Estado, de reconhecimento de um problema estrutural na sociedade que ele não conseguiu resolver. Trata-se de uma confissão de que as instituições públicas falharam”, avalia.
Para a especialista, por mais que existam conquistas como essas, é preciso lembrar que havia uma visão sexista do Direito em relação às mulheres que não se modifica rapidamente.
“Apenas em 2005 foi retirado do Código Penal o casamento entre agente e vítima como causa de extinção de punibilidade para os então chamados ‘crimes contra os costumes’. Também, até essa reforma, constavam diversos tipos penais que traziam como elementar as expressões ‘mulher honesta’ e ‘virgem’. A mulher que não fosse ‘honesta’ (casada, viúva, abstêmia ou virgem), não faria jus à proteção do Estado contra seus violadores.”
Esses pontos foram superados, leis foram reformadas e é possível ver uma evolução gradual de raciocínio.
Outro exemplo de mudança é em relação à forma de enxergar o criminoso. Por muitos anos, as táticas de defesa colocavam o homem como “vítima” da situação, movido por amor.
O caso de Ângela Diniz é um exemplo disso. A socialite foi morta a tiros pelo então companheiro Raul “Doca” Fernandes do Amaral Street na década de 1970. “[Na época], foi acatada a tese de legítima defesa contra a honra. Construiu-se no júri a imagem de uma mulher sedutora, insaciável do ponto de vista sexual e a imagem de um homem frágil, seduzido e impelido pela emoção e paixão. Decidiu-se que era possível que ele matasse para proteger a sua honra”, conta Nalida Coelho, defensora pública do estado de São Paulo, coordenadora auxiliar do Nudem( Núcleo de Defesa e Promoção dos Direitos das Mulheres).
Inicialmente condenado a dois anos de prisão, após intensa campanha do movimento feminista com o slogan “quem ama não mata”, Doca foi a novo julgamento e condenado a 15 anos de cadeia. No entanto, situações do tipo ainda são realidade.
“Anos depois, o caso da estudante Eloá [em 2008, a jovem de 15 anos foi morta pelo ex-namorado após ser mantida presa por ele em seu apartamento] ainda foi retratado em diversos meios do mesmo modo. O cárcere privado foi romantizado e visto como uma prova de amor”, ressalta a defensora.


Mudanças na investigação

Segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em novembro de 2019, foram julgados 315 casos de feminicídio. O número de sessões para esse tipo de crime em 2019 subiu 42% em relação ao ano anterior, quando houve 224 sessões com essa finalidade. Nove em cada dez acusados desse crime acabaram condenados pelo júri popular, percentual similar ao de 2018. 
Contudo, segundo a promotora Valéria Scarance, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo, nem sempre o resultado dos julgamentos é compatível com gravidade do crime. “Isso acontece por falta de conhecimento mesmo dos jurados em relação ao que é feminicídio. Se tem uma falsa noção de que aquele homem praticou um ato por desespero, um ato de amor. Feminicídio não é um ato de amor. É um ato de extermínio”, afirma.
Um dos mecanismos para combate à violência doméstica adotados pelo Judiciário é a Jornada da Lei Maria da Penha, realizada anualmente. Ao final, é publicada uma carta com medidas que devem ser adotadas pelos magistrados e pelos tribunais. A versão de agosto de 2019 sugere, por exemplo, a criação de um banco nacional de vítimas e de agressores pelo CNJ e o incentivo do uso de sistemas de monitoramentos eletrônicos e da implementação das Patrulhas Maria da Penha ou de programa equivalente de policiamento.
Entre as metas do CNJ para 2020 está identificar e julgar, até 31 de dezembro, 50% dos casos de feminicídio distribuídos até 31 de dezembro de 2018 e 50% dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher distribuídos até 31 de dezembro de 2019.
Em 2018, havia 131 varas exclusivas de violência doméstica. No mesmo ano, foram iniciados 507.984 processos de violência doméstica. Havia 983.923 casos pendentes e 601.016 foram concluídos. Também em 2018 foram concedidas 336.555 medidas protetivas.  
Aos poucos, é possível ver tentativas de outras ações mais concretas para mudar essa visão, além da criação de leis. Em dezembro de 2019, por exemplo, foi lançado o “Manual de atuação das promotoras e dos promotores de Justiça em casos de feminicídio”, da Enasp (Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública).
Entre os objetivos do material, está a redução desse tipo de crime. “O cenário é complexo, e a solução passa necessariamente pelo esforço conjugado de muitas instituições e muitos personagens. Outras medidas devem ser adotadas a fim de combater a epidemia da prática dessa espécie delitiva, no Ministério Público e fora dele”, diz parte inicial do texto. 
O documento aborda ainda questões como o perfil do acusado, a maneira que o crime foi realizado e a importância de olhar com uma perspectiva de gênero para casos do tipo e a influência que isso pode ter na investigação e julgamento dos crimes.
Segundo o manual, identificar de forma correta as mortes de mulheres mudaria os dados que existem sobre isso, ainda muito escassos. “Considerando que o feminicídio é a etapa fatal de um continuum de violência, o qual boa parte da literatura denomina ciclo de violência, é provável que haja uma subnotificação nos registros desse crime, o que pode indicar a falta da perspectiva de gênero na condução das investigações e do processo judicial”, diz o texto.
E é importante que as mortes sejam enquadradas corretamente, aponta o documento. “Assim, o promotor/a promotora de Justiça que souber da ocorrência de um feminicídio tentado ou consumado deve tomar providências para que, desde a investigação no local do crime até o seu final julgamento, tal morte seja investigada, processada e julgada levando-se em conta a perspectiva de gênero”. 
Dessa forma, os casos chegariam também de forma diferente ao júri. “Acredito que os júris tenham que ter essa abordagem de gênero. Tem que deixar claro a necessidade de superação desses estereótipos de gênero e que isso é essencial para que a mulher vítima tenha um verdadeiro acesso à justiça, assim como seus familiares, diz Monte.
A especialista afirma ainda que aos operadores do direito, incluindo os advogados de defesa, ”é essencial ficar claro que a exploração desses estereótipos e a tentativa de manchar a reputação da vítima é violadora de direitos humanos e que todos os advogados têm essa função de promoção e respeito dos direitos humanos”. 

O desafio estrutural

Apesar das mudanças e evoluções do pensamento legal e judiciário, ainda é necessário dar outros passos para uma alteração maior do cenário e para conseguir reduzir as mortes e os casos de violência contra a mulher. Bárbara conhece bem essa luta para frear esses crimes e sabe que somente a existência das leis não garante nenhuma conquista.
“A Lei Maria da Penha, que já possui 13 anos, é muito bonita no papel, no imaginário de um Estado político perfeito, o que não é. Muito se fala em conscientização, mas a pauta somente é lembrada com força no dia da mulher e nos 16 dias de ativismo. Falar sobre a violência contra a mulher se tornou uma pauta, longe de uma causa que verdadeiramente precisa de atenção e ação”, diz a sobrevivente.
Atualmente, além de sua atuação de conscientização, Bárbara criou um abaixo-assinado em que pede alterações na Lei Maria da Penha, buscando aumentar a atenção dada às vítimas. Entre os pontos do documento estão a exigência de um profissional de psicologia em cada delegacia da mulher, a obrigatoriedade de cada Estado da Federação de construir uma casa de atendimento da mulher (Casa da Mulher Brasileira), o uso de tornozeleira eletrônica para o acusado assim como expedição de medida protetiva e a obrigatoriedade de ressarcimento financeiro por parte do réu agressor, depois de comprovação de culpabilidade, referente a sua sobrevivência, gastos médico, jurídico, psicológicos e assistencial de alimentos aos filhos, entre outros. 
Apesar desses pontos mais técnicos relacionados a legislação, cumprimento da lei e funcionamento das instituições - e da importância disso tudo - ,sabe-se também que parte do trabalho é mais amplo e estrutural e passa por educação e por uma reconstrução cultural.
“A prevenção da violência contra a mulher ocorre não só com a superação da impunidade, mas também com a refundação da cultura, com a superação do patriarcado e, nesses termos, é importante nomear a morte de mulheres em todos os cenários”, diz Monte.
Gerassi também defende esse olhar mais amplo para a questão. “O que vai trazer a resposta que a gente quer é uma educação que penetra nos círculos familiares, nos menores círculos, onde o menino aprende que é tranquilo ser abusador e a menina aprende que é normal que o menino tente abusar dela. Essa naturalização vem das pequenas células na sociedade e se multiplica. Enquanto não mexermos na raiz do problema, estaremos lidando apenas com reparação de danos pelo viés da vingança pública promovida pelo sistema penal”, avalia. 
Enquanto isso, seguem os trabalhos em diversas esferas. E as vítimas e familiares acreditam que as coisas podem ser diferentes no futuro. “Eu quero mudar a sociedade. E quem sabe, um dia não precisar mais falar sobre a violência contra as mulheres. Somos o exemplo de um dos países onde se mata mais mulheres”, diz Bárbara. “Está na hora de sermos o exemplo de mudança.” 

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