terça-feira, 10 de março de 2020

'Ele pegou a faca e cortou meu rosto. Vivia falando que ia me matar'

A história da jovem de 23 anos que luta para não se tornar mais uma vítima de feminicídio no Brasil.
HuffPost Brasil
Por Marcella Fernandes
“Não esquenta não, que hoje eu vou tirar uma vida.” A voz no vídeo que Fernanda* mostra no celular é do ex-marido, que, com uma arma em punho, a ameaça mais uma vez. O agressor foi preso no início do ano por descumprir medida protetiva, mas sua prisão é provisória.

Hoje, Fernanda se esconde em uma casa em uma rua de terra batida no entorno do Distrito Federal, com o irmão e dois filhos. A mais nova, de sete meses, é filha de seu agressor. ”É muito difícil saber que uma pessoa está presa a qualquer hora pode sair e fazer algum mal com você ou sua família”, contou ao HuffPost Brasil.
Aos 23 anos, ela luta para não ser mais uma vítima de feminicídio no Brasil. Em 2017, 4.936 mulheres foram mortas no País, de acordo com o Atlas da Violência 2019. São 13 assassinatos por dia. 
O Distrito Federal se destaca nesse cenário. Em 2019, o número de feminicídios foi recorde. Do total de 60 mulheres mortas, 33 foram considerada vítimas devido a seu gênero. No final de outubro, a Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) criou uma CPI (comissão parlamentar de inquérito) para investigar o tema.
A jovem conheceu Henrique* em 2014, quando um amigo a convidou para dar uma volta de carro, mas o veículo era roubado. Ele foi preso no dia e foi liberado em 2018. “Ele foi atrás de mim, me procurou e eu cedi. Ele prometeu mil e uma coisas, isso e aquilo… Mulher é besta. Aí a gente ficou, casou, juntou as coisas e foi morar junto. Eu engravidei. Até então era tudo normal”, lembra.
Foi depois que a filha nasceu que a violência veio à tona. “Quando ela nasceu, começaram as agressões. Ele começou a me bater. Ele queria me bater. Não deixava eu ir para casa da minha mãe. Passei por muita coisa ruim”, conta Fernanda, com a voz embargada. 


O comportamento de Henrique levou a jovem a se isolar. “Nem celular ele queria deixar eu ter. Ele era bem possessivo”, conta. Nessa época, ela tentou buscar ajuda pela primeira vez.
“Ele quebrou tudo dentro de casa. Fui na delegacia denunciar. Chegou na porta da delegacia, eu voltei. A neném tinha um mês. Eu ainda estava de resguardo, com pontos na barriga, porque o parto foi cesárea”, lembra. “Eu tinha medo. Morria de medo de ele descobrir que eu fiz a denúncia e ele fazer alguma coisa comigo.”

O emprego como salvação

Como forma de buscar uma saída, a jovem que estudou até o 9º ano do Ensino Fundamental voltou a trabalhar pouco tempo depois de dar à luz. Depois de separados, o ex-marido soube onde ela trabalhava e quase fez com que ela fosse demitida. “Ele foi no meu serviço, fez um escândalo.”
Foi só quando o agressor a ameaçou por mensagens que ela conseguiu coragem para denunciar. “Eu estava no trabalho e ele começou a mandar um monte de mensagens falando que ia me matar, falando que quando chegasse em casa ia fazer isso e aquilo”, disse. Na Delegacia da Mulher (DEAM), a jovem mostrou os áudios e solicitou uma medida protetiva.
De acordo com Fernanda, nem ela nem o ex-marido foram notificados da decisão judicial que determinava que o agressor não poderia se aproximar dela ou entrar em contato. Com medo, ela foi para casa da mãe. Sua filha, de três meses, estava na casa da ex-sogra. “Eu comecei a trabalhar quando ela [filha] estava muito nova. Eu falei para ele ‘o dia que eu arrumar um emprego, eu vou te largar’. E ele não acreditava”, lembra. “Não aguentei. Fui denunciando até que um dia eu consegui prender ele.”
A segunda medida protetiva foi concedida no final do ano passado. De acordo com Fernanda, entre os últimos dias de 2019 e os primeiros de 2020, ela registrou 5 boletins de ocorrência. Na virada do ano, a jovem foi com a filha, de então cinco meses, para a casa de uma amiga.
“Ele descobriu onde ela morava, pulou o muro da casa e saiu me puxando pelos cabelos, querendo me obrigar a ir para casa”, lembra. “No dia 1º [de janeiro], ele pegou a neném à força. Eu liguei para a polícia. A polícia foi lá, me levou na casa da mãe dele, pegamos a neném, fomos para a delegacia e fiz outra ocorrência.”



Após esse episódio, Fernanda denunciou a violação da medida protetiva. Desde 2018, esse tipo de descumprimento de decisão passou a ser crime. Henrique foi então preso provisoriamente e a jovem foi para uma casa abrigo com a filha do casal. Ela tem outros dois filhos de relacionamentos anteriores, um de quatro e outro de cinco anos.
Após 29 dias, Fernanda decidiu sair do abrigo por não se sentir bem no local. “Eu me senti presa, como se estivesse numa prisão. Preferi não ficar lá”, conta. 
Foi dentro da casa abrigo que Fernanda iniciou um tratamento no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), onde era atendida toda semana. “Eu estava passando por um psicólogo e um psiquiatra e agora estou tomando um remédio controlado porque estou com ansiedade e depressão”, afirma. Fora da casa, ela interrompeu o tratamento porque o posto mais perto é na região onde o ex-marido morava - e o temor de reencontrá-lo é mais forte. “Fico com medo de ele sair [da prisão] e eu não saber porque ninguém vem aqui avisar”, diz.

‘Se você não for minha, não vai ser de mais ninguém’

A jovem já recebeu ameaças contra ela e contra seus familiares, incluindo o filho de cinco anos. O ex-marido também a ameaçou caso se envolvesse em outro relacionamento. Segundo Fernanda, o ex-marido chegou a dizer: “se você não for minha, não vai ser mais de ninguém porque eu vou te matar. Mato você e a pessoa”.
A filha do casal também é usada por Henrique como forma de coagir a ex-esposa. No dia em que foi preso, o agressor tentou tirar a criança da mãe. “Ele pegou a neném à força. Ela estava só de fralda. Ele falou que queria levar ela, que era filha dele. Ele pegou uma faca e falou que se eu não deixasse [levar a neném], ele ia me matar”, conta. Fernanda aguarda assistência da defensoria pública para obter a guarda da criança e a pensão.
A jovem não chegou a ser atendida em um hospital, mas tem fotografias das agressões. “Ele me batia só na minha cabeça. Ele falava ‘vou bater de um jeito que não deixa marca’. Ele pegou a faca e cortou meu rosto. Falou que ia me matar. Vivia falando que ia me matar”, lembra.
Não é a primeira vez que Fernanda vive uma situação de violência doméstica. Aos 17 anos, ela conheceu seu primeiro marido, com quem ficou por três anos. Na época, a adolescente não chegou a procurar a delegacia. “Ele me bateu uma vez, deixou meu olho roxo. A segunda vez, deixou o olho roxo, a bochecha roxa, o lábio inchado. Me espancou mesmo.” Foi então que ela decidiu se separar e ele morreu 15 dias depois, com nove tiros nas costas e no rosto.
O padrão de relacionamento também é recorrente ao redor. “Conheço muita gente [em situação de violência doméstica]. A maioria das pessoas. Minha mãe mesmo. Meu pai batia muito na minha mãe. Minha mãe era bem judiada pelo meu pai. Até o dia em que ela decidiu sair. Pegou nós quatro - meus três irmãos e eu - e saiu de casa. Deixou ele vivendo só”, conta.
É comum que vítimas de violência doméstica tenham vivenciado experiências similares no ambiente familiar. Esse histórico leva a pessoa a internalizar o modelo de relação violenta como algo natural, o que dificulta a ruptura do ciclo de agressões.
Mesmo com medo do ex-marido, Fernanda hoje faz planos para o futuro. Sua vontade é cuidar de mais gente. ”É o que mais tenho vontade, de terminar meus estudos”, diz. “Queria fazer um curso de cuidador de idoso e depois de enfermagem. Tenho vontade de ser enfermeira.”
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos envolvidos.

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