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segunda-feira, 16 de março de 2020

PARA ONDE VAI O FEMINISMO?

Chegamos até aqui. E agora? Oito mulheres falam sobre os rumos do movimento que tomou o país

CAMILA BRANDALISE E NATHÁLIA GERALDO

O feminismo é popular. Está na internet, nas camisetas, nas bolsas, nas frases de efeito compartilhadas em hashtags em redes sociais. Está nas escolas, nas universidades, nas periferias, nas classes altas. Está nas mobilizações quando mulheres são agredidas, assediadas e desrespeitadas.

O caminho traçado há mais de um século por feministas e a disseminação do movimento nos últimos anos o fez chegar até aqui. Mas e agora, para onde ele segue?
Universa entrevistou oito mulheres de diferentes perfis que se destacam por sua militância para que, neste 8 de Março, pudessem responder a essa pergunta. Abaixo, elas analisam o momento atual do feminismo, falam dos desafios e dos pontos em que se cruzam as lutas das mulheres que resistem no Brasil.

Dizem elas: é preciso construir um feminismo — ou feminismos, no plural, abarcando a diversidade de pautas — que não seja só sobre mulheres, mas também antirracista e que lute pelos direitos LGBT. E que continue empunhando a bandeira do combate à violência de gênero, do estímulo à participação política e da equidade de direitos e acessos. E, claro, que seja capaz de lidar com o ódio às feministas.

Jurema Werneck
Elo entre os movimentos feministas precisa passar pelo antirracismo
"Estamos às portas do fim do mundo; mas, como nós, negras e indígenas, sabemos, esta não é a primeira vez.

Por sua vez, feministas negras — e mulheres negras ativistas atuais — estão mais bem posicionadas em termos de acesso a informações e ferramentas de luta quando comparadas aos movimentos que vieram antes. O racismo, que antes era negado violentamente, já está escancarado e todas e todos já estão desafiados à superação. Aliás, penso que o elo entre os movimentos feministas brasileiros passa pelo antirracismo necessário e obrigatório e na afirmação do protagonismo das mulheres negras.

O desafio de superação do racismo patriarcal heteronormativo e de apreender a reconhecer (e celebrar) a diversidade de lutas e de movimentos sociais de mulheres está posto, e isso precisa ser urgentemente superado pelo movimento feminista brasileiro. Há uma cegueira deliberada e uma tentativa equivocada de apropriação das diferentes lutas das mulheres negras para enquadrá-las no conceito.

Sou uma ativista que se soma à trajetória das Ialodês, que remonta a períodos anteriores ao tráfico transatlântico de escravizados. Mas vejo de perto a luta das feministas negras. E a principal questão delas é a diferença não inferiorizada, que se apoia na ideia de negritude e, mais do que nela, na luta contra o racismo em todas as arenas, inclusive dentro do feminismo.

Suas ativistas são herdeiras, mais que do feminismo, das Ialodês, das yabás, da matripotência, dos repertórios de potência feminina negra que herdamos e (re)construímos. O desafio é não perder a memória e seguir levando mais adiante — atualizando o legado.

Por estarmos vivendo uma forte onda de retrocessos e ameaças aos direitos já conquistados, em que setores que alcançaram hegemonia política — que será temporária — utilizam o medo como uma de suas principais ferramentas, somos capturadas pela sensação de impotência.

Mas é preciso inverter o olhar. Lembrar que fomos nós e que foi a nossa luta, em que mulheres negras tiveram um papel de destaque — e estou falando apenas do século 21 —, que nos trouxeram até aqui, para esta nova arena de disputas.

Este não é um momento de descanso para as feministas negras e para todas as mulheres negras ativistas. As iniciativas de retrocesso se afirmam com a morte, com a violência (inclusive estatal), com o desrespeito e ataques aos direitos. Estamos todas no olho do furacão! Mas nossas tradições culturais nos ensinam a reconhecer a potência dos ventos e o que ele quer nos dizer.

Para quem ainda duvida que as lutas por justiça e igualdade para todas e todos não são válidas, temos, todas nós, ativistas negras ou não, feministas ou não, o desafio de responder às questões atuais em linguagens e formatos das ruas e das áreas rurais, da vida cotidiana de pessoas reais. Temos que saber olhar no olho dessas pessoas e, junto com elas, imaginar um país inclusivo. Ou, como afirmamos na Anistia Internacional, um Brasil Para Todo Mundo."

Jurema Werneck é ativista do movimento de mulheres negras brasileiro, médica, escritora, doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e, desde 2017, diretora da Anistia Internacional no Brasil

Stephanie Ribeiro
Popularização do movimento tem acertos, mas também equívocos
"Temos acertado ao popularizar o feminismo e algumas demandas feministas. Muitas mulheres públicas se assumiram assim e a pauta ganhou outros significados, não é tão vista como algo pejorativo especialmente pelas mulheres. É uma onda que cresce mundialmente e à qual o Brasil dá uma grande contribuição em duas vertentes: nas redes sociais e nas ruas.

A gente passou a usar as redes sociais, participar de uma disputa de narrativas, sem esquecer que vários movimentos foram para as ruas, como a Marcha das Vadias [a primeira do Brasil aconteceu em 2011], que marcou muito. O mesmo aconteceu com o 'Ele Não', que movimentou mulheres de diversas idades e perspectivas — não foi um movimento feminista e, sim, de mulheres, mas remete bem a esse uso.

Na popularização também mora o erro: ao se fazer isso, algumas demandas são enfraquecidas.

Estamos em um momento de ascensão do feminismo liberal, uma prática dele como 'estilo de vida'. Esse feminismo sem responsabilidade coletiva — apenas individual — é vendido por meios mais potentes, como as próprias mídias hegemônicas.

De qualquer forma, não dá para ignorar que esse é um primeiro momento para muitas mulheres, que depois veem recortes e se colocam como feministas marxistas, feministas radicais, feministas negras, transfeministas.

Vejo que um dos nossos desafios, agora, é efetivar ações que já poderiam estar sendo feitas: ainda é difícil que mulheres feministas, e a prática em si, estejam mais associadas ao fazer político institucional.

E temos que estar nessa disputa, já que estamos em um Estado que se coloca como democrático. Uma das formas de institucionalizar e transformar questões de acesso a direitos pelas mulheres em políticas públicas é ocupar esses espaços. Principalmente na atual conjuntura política, com a ascensão de um governo e de um discurso de negação de direitos, com destruição de algumas políticas públicas para mulheres, com discurso que nos afeta — conservador —, que não ressalta a mulher como agente de si mesma, mas que precisa ser subalternizada à figura de um homem.

A gente viu isso no golpe de estado com a Dilma, a primeira mulher eleita. E a narrativa foi marcada com o 'Bela, recatada e do lar' da primeira-dama do Michel Temer: ele dizia que o lugar da mulher não era o do fazer político, mas nesse, que remete à boa esposa.

O governo atual reforça mais ainda isso. Temos um Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que vem com uma narrativa extremamente conservadora e que fere muitas lutas que a gente já conquistou, inclusive em relação à liberdade sexual.

Apesar disso, tenho um olhar positivo para o futuro: mulheres feministas vão assumir outros espaços, com mais poder de decisão. Não sem que precisemos lutar para que não tentem diminuir nosso tom de voz. Vamos precisar deixar nossas posições mais claras e até radicais.

Já para termos um feminismo interseccional, a gente precisa partir de uma proposta de escuta e de aprendizado, porque já existe uma produção sobre isso, acadêmica e não acadêmica, já está no debate público, em rodas de conversa. Só que nos privamos desse conhecimento, e não falo de quem nem se identifica como feminista. Digo partindo da perspectiva de que, ao nos assumirmos feministas, estamos assumindo uma responsabilidade coletiva, de uma luta histórica. Tem que conhecê-la ao máximo.

Acredito que as mulheres negras exercem papel de protagonismo no feminismo brasileiro. E vamos seguir assim, porque num país como o nosso não é possível fazer nenhum tipo de ação sem pessoas negras, mulheres negras. Somos agentes ativos em muitos contextos da sociedade. É impossível existir feminismos brasileiros sem mulheres negras participando dele. Nossa luta é a base do feminismo."

Stephanie Ribeiro é escritora, arquiteta e urbanista e ativista feminista negra. Foi um das primeiras mulheres a falar sobre o movimento nas redes sociais

Helena Vieira
Temos que aprender a conversar com a mulher que diz não ser feminista
"Caminhamos para maiores explosões feministas. Mas, por enquanto, precisamos cumprir o luto de nossas derrotas, acalmar nossos ânimos e fazer um pouco mais de silêncio, para que assim possamos ouvir as demandas.

Os passos agora devem ser para entender o encadeamento de acontecimentos que nos conduziram ao lugar onde estamos: fragmentadas, popularizadas e intensamente atacadas. A noção de feminismo, hoje, fora dos círculos progressistas, entre as pessoas comuns que não se reivindicariam de direita, está perdida, se converteu em um significante vazio que precisaremos disputar incessantemente e, para isso, será preciso construir uma ética do encontro e do diálogo.

Temos que aprender a conversar com mulheres que dizem não ser feministas, teremos que abandonar a postura sacerdotal que impõe a correção e que defende o bem, para convencermos as pessoas, escutarmos suas dúvidas, angústias e dores.

A questão é: não podemos seguir isoladas e confortáveis no gozo masturbatório de nossa própria virtude feminista e nem melancólicas no cercadinho da resistência. Temos de confrontar esses incômodos e construir um feminismo do nosso tempo, ainda que seja preciso abdicar de velhas fórmulas. Entendendo a importância de uma teoria feminista atual é que recomendo a leitura de feministas africanas, latinas, do sul do mundo. Os feminismos negro, indígena e trans têm produzido saberes nas margens e representam formas de destruição e deformação das velhas teorias.

Nas pautas feministas de maior visibilidade, a questão trans ainda é bastante marginalizada. É preciso entender que não se trata de acolher as demandas das mulheres trans como se fôssemos um grupo externo recebido por caridade ou gentileza, mas de entender que as questões trazidas pelo transfeminismo são fundamentais para a superação das condições de toda e qualquer mulher.

É preciso deslocar-se do conforto do feminismo cisgênero. Assim como o feminismo negro tem dito incessantemente que a raça é uma questão fundamental para se entender as relações de gênero, demandamos a compreensão da transfobia como uma violência que afeta mulheres trans e travestis, mas que também é parte reguladora das relações de dominação sobre a mulher. Toda violência de gênero é, em alguma medida, uma violência transfóbica."

Helena Vieira é escritora, militante transfeminista e pesquisadora em gênero e sexualidade, com diversos artigos publicados nessas áreas. Foi consultora da novela "A "Força do Querer" (2017), da Globo, que tinha uma personagem transexual

Marcia Tiburi
Feministas têm que entrar na disputa política: a urgência é clara
"Não adianta dizer 'ele não'. Adianta se colocar fisicamente como uma candidata contra ele. Quais são as mulheres que vamos insistir para ocuparem esse lugar? Feministas têm que entrar na disputa política, e a urgência está clara. O campo político foi construído pelos homens e dominado por eles de uma maneira tão patriarcal e machista que a presença das mulheres não é bem-vinda.

A tarefa do movimento agora é romper com isso, quebrar essa barreira. Ocupar o poder, participar dos partidos, filiar-se, apoiar candidatas feministas e votar nelas. Precisamos de mulheres comuns, de professoras, de intelectuais, de donas de casa, de ativistas, de artistas, de quem pensa de maneira crítica, transformadora, e seja lá qual for o tipo de feminismo que façam. Acho bacana que o movimento não seja unitário, que tenha tensão conceitual. As discussões são ricas, fazem a gente evoluir e perceber a multiplicidade de posturas, de ideias, as mulheres dos diversos contextos.

Precisamos tomar as rédeas da nação: as feministas precisam conduzi-la. Não é fácil, mas tem que ser um projeto. Não dá para esperar que quem barra a entrada no poder, ou seja, quem já está na política, vá fazer algo por nós, nem aqueles e aquelas que são coniventes com o sistema como existe hoje. Quem tem que fazer somos nós, mulheres.

Vai ser muito difícil, há muito ódio contra feministas. Ódio contra as mulheres que criticam, que revelam problemas, que mostram as contradições das situações. Mas muitas minorias políticas estão se organizando. Podem estar silenciosas, mas as pessoas que têm consciência estão acordando para a necessidade de participarem das articulações. Tem muita coisa acontecendo.

Há projetos como Mais Mulheres na Política e Meu Voto Será Feminista [campanhas para estimular candidaturas femininas]. Tem vários coletivos, como o Mulheres Negras Decidem [campanha para debater a subrepresentação de mulheres negras na política]. Quando soube da existência desse último, fiquei muito esperançosa.

Confio muito nessas mulheres que se articulam dentro dos seus contextos fazendo a democracia ficar mais próxima. É a semente de uma transformação que será coletiva. Á medida em que vão crescendo organizações e grupos, vamos ultrapassando a barreira para ocupar o poder. Eu confio no feminismo absolutamente."

Márcia Tiburi é filósofa, professora convidada da Universidade Paris 8 e foi candidata ao governo do Rio de Janeiro em 2018 pelo PT. É também autora de "Feminismo em Comum" (ed. Rosa dos Tempos, 2018) e cofundadora do PartidA, movimento para impulsionar candidaturas feministas

Camila Mantovani
É um erro qualquer movimento branco que seja orientado pelo liberalismo
"Cheguei até o feminismo graças à minha igreja. Foi o Evangelho de Jesus que me chamou para a luta contra a opressão de gênero. E acho que a juventude está mais atenta às agendas urgentes que nós temos — não à toa, são cada vez mais coletivos e movimentos feministas com jovens na frente. Isso oxigena a gente e injeta energia para tocar nossas tarefas. A juventude não é só o futuro, é o presente.

Chega a dar um aperto no coração de pensar o quanto precisamos politizar o movimento, conversar com realidades distintas das nossas próprias, mas sinto que muito da reação conservadora dos últimos anos tem a ver com o quanto conseguimos avançar no Brasil e na América Latina.

Minha esperança: a revolução que a gente quer ver no mundo está sendo gestada pelas mulheres. Do protagonismo nas lutas contra os avanços neoliberais no Chile, em defesa da Amazônia, nos movimentos de luta por terra e moradia.

Pelo mundo, são mulheres curdas criando outra realidade possível, palestinas resistindo à barbárie, africanas e latinas na linha de frente contra o neocolonialismo e o imperialismo de diferentes países europeus e dos Estados Unidos. Nós vamos parir revolução.

Por isso, para mim, há dificuldade de entender um feminismo que não carregue consigo a compreensão do debate de classes e que não tenha uma perspectiva inclusiva e emancipatória com relação à identidade de gênero, à raça e à sexualidade. Por isso, é um erro qualquer movimento branco que seja orientado pelo liberalismo.

Eu gosto de pluralidade, especialmente daquela que permite uma construção política em torno de um objetivo comum, e percebo que o feminismo hegemônico não serve para libertar mulheres pobres e trabalhadoras, como deveria, porque ele é liberal; não dialoga com negras e indígenas, porque ele é racista; não conversa com as religiosas, por essas duas questões: raça e classe.

Nesse ponto, um dos maiores acertos do feminismo no Brasil é o fato de o feminismo negro estar fincado no debate de luta de classes. Outro acerto é o ecofeminismo e a compreensão de que a opressão exercida pelo patriarcado contra as mulheres está intimamente conectada com as formas de exploração da Terra e meio ambiente."

Camila Mantovani é ativista feminista cristã, integrante da Frente Evangélica pela Legalização do Aborto e decidiu sair do Brasil em 2019, após receber ameaças de morte

Marize Vieira de Oliveira, a Pará Rete
O que une mulheres de todas as etnias indígenas é a busca pelo protagonismo
"Os feminismos indígenas abarcam as mulheres que estão dentro das aldeias e as do contexto urbano. Na aldeia, uma das questões fundamentais é a demarcação de terra. Quando se luta por ela, é por uma garantia de que a cultura e a língua sejam preservadas, para além de todos os direitos.

E quando você fala de mulher, você fala daquela que cuida, que gera. Falar de mulher, então, é falar da terra que, quando você joga a semente, dá frutos e vida. Outro fator fundamental para elas é o protagonismo, mas estando ao lado dos homens — elas exigem que os homens estejam presentes, porque querem falar para eles também. E até incluir o homem não-indígena. Eu sou feminista e, na minha casa, a primeira coisa que eu ensinei a meus filhos foi entenderem o mundo feminino. Se eu quero uma revolução, ter a sociedade que a gente quer construir, é essencial provocar uma mudança na microcélula que é meu lar.

As aldeadas têm demandas diferentes das indígenas urbanas, grupo no qual me insiro, mas o que une todas as etnias é a busca pelo protagonismo. Queremos lutar e ter o direito de produzir política não só para o mundo feminino, mas para o mundo. Política não só institucional, mas dentro do convívio social. Sou professora e é isso que eu tento passar para meus alunos: respeito às mulheres, discussões sobre homofobia, machismo e violência contra a mulher.

Esse tema, inclusive, avançou dentro das aldeias. Hoje, algumas etnias pedem uma cartilha sobre a Lei Maria da Penha, pois muitas vezes os homens são violentos com as mulheres aldeadas (e dentro do contexto urbano também) por causa do alcoolismo e das drogas, que chegam quando a cidade avança sobre o território indígena. Não falamos que todas as etnias sofrem com isso, porque são muitas, 305 no total, e há povos isolados, mas acontece.

Vejo como avanço também o fato de as indígenas de todas as etnias perceberem que é importante existirem associações de mulheres. Na década de 1980, foi quando aconteceu o boom. Mas foi no passado que tivemos a primeira Marcha de Mulheres Indígenas, em Brasília. Foram cinco dias. E hoje a gente se organiza dentro do fórum do Acampamento Terra Livre [maior mobilização nacional indígena], com mesas de mulheres, algo que antes era feito de forma periférica.

A nossa luta ainda é pela saúde indígena, a educação escolar — porque em muitos lugares temos o racismo institucional frente ao direito de ter educação diferenciada — e o acesso a ela, a universidades. Nossa pauta passa ainda pelo basta à violência contra as mulheres. Tudo isso tem a ver com a sobrevivência das aldeias.

Outro aspecto é a falta de visibilidade que temos no contexto urbano. Para nossa luta efetivamente dar certo, a gente precisa mexer nos preconceitos. Mais do que nunca, temos que entender que é necessário o entrelaçamento entre todas nós, mulheres. As diferenças étnicas têm que ser colocadas de lado. E não que a gente não tenha que discutir também a parte específica. Mas a gente precisa olhar para o outro. É a sororidade."

Marize Vieira de Oliveira é guarani, professora de história do ensino fundamental e médio, mestranda na área de educação em relações étnico-raciais pela UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e secretária executiva da Associação Indígena Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro

Marina Ganzarolli
Silenciamento de lésbicas, mais ainda de lésbicas negras, precisa acabar
"O feminismo ainda tem uma incapacidade de articular movimentos que têm como foco minorias, como o LGBT. Há uma invisibilidade lésbica no movimento, um silenciamento das mulheres lésbicas, e mais ainda de lésbicas negras. Nosso desafio é falar com um público maior, é esse caminho que deveríamos seguir. O movimento ainda é branco e incapaz de ter interlocução com questões de raça.

Um primeiro passo que precisamos dar: perceber que há diversidade sexual, que existem lugares de poder, que há mulheres lésbicas e bissexuais, negras e trans. Eu sou branca, o que preciso entender como branca? Que sou racista. Ponto número um. Se sou heterossexual, que sou homofóbica. Eu posso falar de racismo? Eu devo. Eu sou parte do problema, preciso falar de solução.

Vamos levar essas questões de raça e sexualidade para dentro do movimento?

Também me pergunto como a gente está dialogando com pessoas diferentes de nós. Não estamos conseguindo abrir o coração para sentar e dialogar. Existe uma resistência muito grande de conversar com igrejas, quaisquer que sejam elas. Isso é um problema, porque muitas mulheres religiosas sofrem violência doméstica, mas se sentem com medo de falar sobre isso porque veem a pauta feminista como exclusiva da academia ou da esquerda.

Não adianta explicar o que é o LGBTQIA+ ou orientação de gênero, identidade, o que a Judith Butler [filósofa americana, uma das principais teóricas do feminismo] falou, para acabar com a homofobia e transfobia. Talvez eu tenha que falar com essa pessoa na chave do amor. As pessoas se amam, constroem família na base do amor, quem sabe assim elas entendam.

O que me deixa mais feliz, que eu sei que é um produto de anos e anos do movimento, é ver jovens, adolescentes e meninas mostrando que são donas de suas vidas. E que elas podem escolher ser e fazer o que quiserem. Claro que existe diferença de classe e raça, mas elas podem se ver como CEO de uma empresa, têm autonomia para decidir. Disso o feminismo é diretamente responsável, porque está trazendo a autonomia das mulheres.

Conquistamos não só a possibilidade de votar, mas de ser alguém que será votada. Agora quero ver mais mulheres, negras, indígenas, lésbicas no Parlamento. É para onde eu gostaria que estivéssemos caminhando."

Marina Ganzarolli é cofundadora da Rede Feminista de Juristas, militante feminista, lésbica e presidente da Comissão de Diversidade da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo)

Heloisa Buarque de Hollanda
Grande desafio é incluir as mulheres pobres nas pautas feministas
"O feminismo hoje é múltiplo e atende a mulheres bastante diferentes, o que é um passo grande do movimento. Entretanto, as mulheres pobres, que habitam as comunidades de periferia, ainda não foram incluídas com suas demandas específicas nas novas pautas feministas. Para mim, esse é o grande desafio.

Não minimizo a importância do feminismo de vitrine, da internet. É a prova de que estamos sensibilizando um número grande de mulheres que, mesmo por vaidade, podem acabar nessas fileiras. Nas classes média e alta, é feio uma mulher ser antifeminista. Isso não é ótimo?

Estamos sob um governo que rejeita o feminismo, como se o movimento fosse uma ideologia, e não uma luta por direitos das mulheres. Então penso que algumas áreas, como a produção de conhecimento, as artes e outras, estão sendo afetadas. Mas esse caminho já traçado, feminista, claramente não tem volta. E são as jovens que vão furar as barreiras atuais.

O erro cometido é a intolerância das feministas radicais, que persistem em negar as dissidências sexuais e as demandas profissionalizantes das prostitutas. O acerto são as estratégias de comunicação, articulação e visibilidade de nossas questões."

Heloisa Buarque de Hollanda é ativista desde a década de 1980, professora de teoria crítica da cultura da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), organizadora do livro "Pensamento Feminista Brasileiro" (ed. Bazar do Tempo, 2019) e autora de "Explosão Feminista" (ed. Companhia das Letras, 2018)

Veja a linha do tempo dos direitos da mulher nas Constituições do Brasil
Se hoje é complicado, as leis antigas do Brasil mostram que já foi pior ainda.

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