“Ela não sentia o tempo nem as pessoas, o que ela sentia era êxtase”
2 ABRIL 2020,
«Êxtase» (2020). Direção e roteiro: Moara Passoni. Produção: Petra Costa |
A recusa dos padrões estabelecidos por uma sociedade amorfa sexista, um mundo que desagrega. “Preciso realmente do outro?”, pergunta nem sempre pronunciada, encabulado questionamento. Como se tornar adulto num mundo onde não te cabe e ser dona do tempo, dos movimentos, do vento, dos contra-tempos, ser única e não desejar o outro, que outro? Encontrar na anorexia o insPirar, o supremo êxtase. Mas de qual êxtase estamos falando? A diretora pergunta.
Durante 10 anos a roteirista e diretora Moara Passoni pesquisou sobre anorexia, conversou com mulheres que sofriam do distúrbio alimentar, psicólogos da Unifesp (Alessandra Sapoznick, então coordenadora do Proata), filmou no Ambulim (Programa de Transtorno Alimentares do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo - USP), e participou de eventos, como o Topografias do Corpo - Sesc Paulista. Decodificou de uma maneira ímpar, com suprema sensibilidade as agruras da relação entre política e da psiquê, o impulso de controle totalitário de uma mulher sobre o seu corpo e o rejeitar, das formas vigentes e da dependência do outro.
Durante 10 anos a roteirista e diretora Moara Passoni pesquisou sobre anorexia, conversou com mulheres que sofriam do distúrbio alimentar, psicólogos da Unifesp (Alessandra Sapoznick, então coordenadora do Proata), filmou no Ambulim (Programa de Transtorno Alimentares do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo - USP), e participou de eventos, como o Topografias do Corpo - Sesc Paulista. Decodificou de uma maneira ímpar, com suprema sensibilidade as agruras da relação entre política e da psiquê, o impulso de controle totalitário de uma mulher sobre o seu corpo e o rejeitar, das formas vigentes e da dependência do outro.
Através da personagem Clara, a diretora mostra a passagem dos anos em que ela vivência a turbulência em meio a mudanças sociais, políticas no Brasil na década de 90, momento em que o Brasil tinha seu primeiro presidente eleito democraticamente desde 64 sendo impichado, entre a inocência da infância e a hecatombe de mudanças na puberdade. Retrata o espírito alegre e comunitário do Jardim Ângela nos movimentos populares dos anos 80, a escalada da violência no fim de 80, começo de 90 em São Paulo, na casa que também era uma espécie de comitê político, os pais de Moara eram ativista sociais, e a saída da sua comunidade berço da suas memórias e, como tentou comprimir a vida em seu próprio corpo dos 12 aos 17 anos.
O filme é uma obra de arte aberta. E como tal excita um leque de interpretações. Sua voz ecoa, identifica o que se passa na psiquê de uma pessoa, personificada através da personagem de Clara (interpretada em suas diferentes idades pelas atrizes Alice Vilares, Gigi Paladino, Sara Antunes, Victoria Maranho e Susana Priz), Moara faz um excelente trabalho na direção de atores de maneira delicada, densa, sem o apelo e a brutalidade de imagens de corpos esqueléticos, depressivos, tão comuns em outros filmes e em campanhas publicitárias de apoio a “vítimas” da busca por espaço para que o corpo se “encaixe” no statu quo, nos padrões de beleza, comportamentais de um mundo que eles não reconhecem como seu.
Êxtase não é uma denúncia. É uma escuta, um sussurro delicado, poético, que interage entre as várias fases do crescimento da personagem. Tece, como se fossem pontos de tricô, imagem e som desnudam o controle da sua própria rotina interna e externa na qual a personagem luta contra ela mesmo para poder não precisar do outro.
Êxtase não é apenas um filme, é uma experiencia sensorial, com picos de catarses através de imagens sobrepostas, que pulsam na fronteira entre documentário e ficção, impecável fotografia, texto que embala e “fisga” o telespectador. Pela primeira vez, a abordagem da anorexia deixa de lado o lugar comum, as imagens de corpos esqueléticos que depreciam as pessoas que ultrapassam a barreira do desejo, o controle do seu próprio corpo durante os vários estágios do crescimento que ela queria conter.
Impossível não reconhecer o texto de Moara em outro grande e bem sucedido documentário como o indicado ao Oscar, Democracia em Vertigem. Moara conversou conosco sobre o desafio de crescer, anorexia, política e sua estréia como diretora.
Rupturas sociais e politicas podem desencadear doenças como anorexia? Como?
Acho que esta pergunta respondida por um psiquiatra ou psicanalista, ele teria uma resposta técnica, cientifica.
Eu posso falar da maneira como foi construído esse filme.
O projeto nasceu há 10 anos quando eu e Mauricio Ayer - que então escrevia uma tese sobre Marguerite Duras - começamos a descobrir cruzamentos improváveis e potentes entre a obra da autora e minha experiência com anorexia (aliás, enquanto respondo estas perguntas, continuo refletindo com Ayer sobre tudo isto).
Mais até que a ruptura, começamos a compreender, nas nossas discussões, que o que eu havia vivido como anorexia, revelava a maneira como o corpo se constitui politicamente nos seus afetos e na sua potência. Melhor dizendo, revelava modos da estruturação política do mundo em que minha experiência havia se travado.
A anorexia é um gesto paradoxal e trágico em que se recusa radicalmente o controle do mundo sobre o corpo controlando o próprio corpo a ponto de quase anulá-lo.
Como uma forma de afirmação de si, a imposição de um controle absoluto sobre o corpo o transforma quase numa idéia, numa imagem.
Anorexia, assim, é compreendida a partir da idéia de controle, enquanto o corpo é aquilo que escapa.
E uma vez que a anorexia diz respeito ao controle do corpo, é algo que perpassa toda nossa sociedade, um padecimento que perpassa nosso tempo. E neste sentido, a anorexia é apenas uma radicalização desse controle.
Por outro lado, me parece possível falar que o desencadeador de anorexia no filme é sim a ruptura da delicada rede da comunidade.
Os humanos, quando hostis ou invasores ou frios, amargam demais os corações e almas dos jovens que, então, desesperados de comunidade, concebem sem pensar viver sozinhos, céticos sobre todo alimento, sobre toda a amizade, com a saudade triste de um laço que não viveram ou viveram pouco para logo perder. Estranha saudade essa, a saudade do que não foi vivido.
A anorexia é um remédio trágico para esta saudade: é querer curar-se do isolamento através do isolamento.
Você é “forçada” por questões externas (sua mãe vence eleição para deputada federal e a família sai do bairro do Jardim Ângela em São Paulo rumo a Brasilia). Falando de amparo social, sua casa era praticamente um centro comunitário, entre sai de pessoas conhecidas, depois ida para uma misteriosa Brasilia, aos seus olhos infantis, você acha que essa migração foi o gatilho para a sua anorexia?
Eu não entendo a anorexia como a consequência de uma causa. É muito difícil falar de um fato que a desencadeie. Tanto que é difícil identificar quando ela começa. Há um momento que vc tá dentro da anorexia. Mas saber exatamente quando isso começou é praticamente impossível. Há um modo de ser que vai se constituindo em cada uma das suas experiências diárias, sejam traumas ou validações. A partir de um dado momento, você entra num lugar em que é possível identificar uma mudança qualitativa na forma como você lida, responde, processa estas experiências. E quando você se dá conta, parece que você já tá em outro lugar - dentro da anorexia.
Na minha vida pessoal essa saída do Jardim Ângela acontece um pouco diferente. Mas narrativamente, no filme, o Jardim Ângela é o lugar da comunidade.
Orson Welles dizia que todos seus filmes eram filmes sobre a busca do paraíso perdido. Aqui, Rosebud é o Jardim Ângela.
Mas no Welles, ele é a causa de tudo. Enquanto aqui, há várias causas. Então, a saída da comunidade não é exatamente um gatilho, mas a contraposição entre a comunidade do Jardim Ângela e Brasilia é sensível no filme.
O bairro que se forma de maneira orgânica, com um sentido muito forte de comunidade, se distingue da cidade projetada e solitária como é Brasília.
E a própria ideia de projetar uma cidade a partir de um ideal, pode se relacionar com a maneira como na anorexia se controla o próprio corpo, a ponto de ter a sensação que você o está projetando.
Inclusive há a política corpo a corpo dos movimentos sociais - das necessidades radicais, da vida cotidiana compartilhada -; que opõe-se radicalmente à política institucionalizada do DF - sem corpo, sem transparência, de formalidades e embates, e negociações institucionalizadas.
É difícil reconhecer a inteligência e a loucura, você acha que isso também ocorre coma anorexia? Como e quando você identificou o êxtase da anorexia? É viciante?
Essa questão da inteligência e da loucura é uma referencia à Hiroshima Mon Amour, um filme de Alain Resnais com roteiro de Marguerite Duras. A personagem da atriz francesa tenta lembrar da sua experiência de loucura nos anos em que passou enfurnada no porão. Ela diz que a loucura é como a inteligência: quando você está dentro dela, tudo faz sentido. E depois, quando você sai da loucura, você não consegue mais acessá-la. A minha entrada na anorexia foi assim também - foi progressiva e imperceptível “pra’eu mesma”. Só me dei conta do que estava acontecendo comigo quando finalmente comecei a sair daquela condição.
Eu comecei fazendo esse filme de um lugar ainda muito próximo da anorexia. Embora já fosse, na época, algo do meu passado eu era ainda muito conectada com essa experiência . Ao longo desses anos eu me descolei dela, e hoje eu me sinto fora.
Enquanto eu não entendi o prazer que eu vivia naqueles anos de anorexia, eu não consegui desconstruir, ir contra a anorexia.
O filme mostra as várias fases da vida da personagem Clara, sua alter-ego, infância, expulsão da escola por causa de um beijo numa colega, festas, balé, (uma das mais belas, poéticas composições sobre o corpo de bailarinas que vi em documentários e filme), qual foi para você a fase de maior êxtase durante o período da anorexia?
A personagem Clara é construída em grande parte a partir da minha experiência, mas também incorporando falas, anotações, experiências de muitas outras mulheres. Vivi a anorexia como um êxtase, mas foi algo paradoxal.
O êxtase é também de certa forma um momento limite - uma vivência limite. Porque persistir no êxtase significaria morrer. Tem esse prazer, mas ele está no fio da navalha, na beira do abismo.
Daí a quebra, extremamente necessária.
No filme, no auge do êxtase ela vai parar no hospital. Daí ela tenta recobrar controle. Até chegar num momento em que seu êxtase está próximo a explodir por conta de um curto circuito.
Aos 7 anos você “inventa” ser vegetariana, dos 12 aos 17, você cria o seu próprio tempo, a sua própria rotina, a anorexia foi uma ferramenta no teu criar?
Anorexia é uma vivência, uma experiência, um processo, um surto, um modo de ser, não uma ferramenta.
Eu fui criando aos poucos uma rotina. Meu dia era dividido precisamente entre hora de comer, hora de fazer exercício, hora de estudar e hora de dormir. Entre estes horários não havia pausa ou descanso e expulsava a gritos quem tentasse impedir a realização desta rotina. Sua repetição, e a paralisação dos fluxos vitais do corpo - eu não me alimentava, não menstruava… - foi aos poucos gerando uma sensação de tempo eterno, a ponto de eu não saber direito quando aconteceu o que entre meus 12 e 18 anos. É como se o tempo nestes 6 anos fosse algo estático.
Talvez a anorexia lembre um pouco a performance que é este transito entre a criação estética e a vida.
Mas na anorexia não existe a decisão que existe na arte, do gesto artístico. Quando você vive a anorexia nada disso é claro nada disso é consciente. Você vive. Eu vivia o controle e o prazer que esse controle proporcionava. Mas isso não era feito por mim - diferente da performance, para ser um espetáculo.
Aliás, eu não queria me mostrar. Tudo o que eu queria era me esconder em meio a roupas largas que cobriam do pescoço ao dedo do pé.
Mas pode ser que hajam mulheres que vivem a anorexia de outra forma, buscando chamar atenção. Eu escondia o corpo.
O corpo anoréxico perturba. Mas generalizar dizendo que ele “é feito” para provocar um espetáculo, seria um equívoco.
Seria preciso pensar mais e mergulhar nessa reflexão sobre a anorexia e a histeria. Seria a anorexia um histeria contemporânea? Ambos são corpos indomáveis pela sociedade. Mas um elemento importante da histeria é a dimensão da sedução de uma sexualidade que se mistura, não encontra limites sociais, transborda. Na anorexia, a sexualidade está totalmente contida. O desejo era respondido, no meu caso com dissecação.
O que é importante notar é que não há uma descrição especifica da anorexia. Acho que, por mais que existam conexões muito importantes, cada mulher experiencia esse padecimento de maneira diferente e muito ligada à sua história pessoal.
Quais foram os resultados da anorexia no teu corpo e na tua psiquê, ela influência a tua forma de criar filmes, de enxergar o próximo como a você mesmo?
Não vejo meu lugar de criação relacionado à anorexia. Acho que criar o filme foi, inclusive, ir contra a anorexia. Por exemplo dar tempo e narrativa para uma experiência que vai contra o tempo.
Por outro lado, acho que a anorexia me tornou mais aberta e porosa para o outro. Pois meu processo de superação da anorexia foi justamente esta abertura para o outro.
O desejo briga com o controle o tempo todo, os dois são pulsantes. Quando o desejo ganhou do controle?
O filme pulsa nesta relação entre controle e desejo. O êxtase na anorexia é uma espécie de confluência dos dois, de quando o desejo encontra o controle. Esse êxtase é uma experiência limite justamente pois, se ele é levado adiante, ele leva à anulação do corpo e até, em ultima instância, à morte.
No meu caso houve uma quebra em que o desejo - para minha sorte - ganhou do controle.
Uma noite, sem me dar conta de como eu havia ido parado ali, acordei devorando a geladeira.
Depois deste dia, minha sensação é de que nunca mais consegui recobrar o controle sobre o meu corpo. Isso teve a ver com muitos processos terapêuticos, experiências de vida, que vivia na época.
Mas o que eu sei é que a partir de um certo momento isso se quebra e o desejo ressurge, trazendo de volta o corpo com toda força.
E a partir daí, por mais que eu tentasse controlar meu corpo, eu não conseguia mais. Isso era desesperador. É como sentir dor pela primeira vez.
As imagens do filme são de extrema delicadeza, planos sequências que nos puxam e ativam nossos canais sensoriais de maneira que conseguimos entrar na pele e na alma da personagem, nos últimos anos você co-escreveu o documentário Democracia em Vertigem junto com a Petra Costa, que agora produz tua estréia como diretora, como esses filmes e a equipe “alimentaram” e moldaram o teu olhar para dirigir o seu primeiro longa depois de 10 anos de pesquisa, produção?
Boa parte desse filme foi concebido antes mesmo de Petra e eu começarmos a trabalhar juntas.
Há muitos anos que a gente colabora e isso vai criando um vocabulário comum, uma sensibilidade compartilhada. Eu aprendi muito com minha colaboração com a Petra, de maneiras que talvez eu nem seja capaz de dizer.
O que eu sei dizer é que ela é uma artista com um universo interno fascinante e em constante ebulição. Uma diretora que articula com maestria a construção das emoções no cinema. De uma liberdade extremamente potente. E que sempre luta, até o fim, por sua própria voz. Petra inventou uma voz como artista. E isso é notável. E isso, por si só, me ensinou muito!
O filme sendo lançado na mostra competitiva do CPH:DOX (Festival de Documentários de Copenhagen), sem poder ser visto (ainda) na grande tela dos cinemas por causa de uma pandemia. Como tem sido a experiência de lançar um filme num dos maiores festivais do mundo, receber vários retornos positivos da crítica em meio a uma crise mundial, o mundo vive uma anorexia em busca de êxtase?
É difícil dizer qualquer coisa sobre o mundo hoje: desde quarta feira retrasada estamos assistindo o mundo virar de ponta cabeça, não é?
Em meio a isso tudo, o festival onde o filme nasce, tornou-se virtual.
Este filme que fala sobre anorexia, será lançado em uma condição similar à nossa personagem - isolada de outros corpos e virtualmente.
Claro que, como cineasta, é triste não ter a experiência física de compartilhar seu filme na sala escura, com a tela grande e cercado de outros corpos-corações-espíritos. Eu sempre pensei que em fazer este filme para sala de cinema. Não que o filme não possa ser visto em video. Acho que pode, claro. Mas sempre me senti as imagens em escala de cinema. E me parecia importante, de algum modo, dar fiscalidade ao que eu tentei tanto destruir, tornar uma ideia- meu próprio corpo.
Além disso, exibir um filme coletivamente é um aprendizado enorme de como a audience irá reagir ao que você, com sua equipe, passou anos tentando criar, articular, precisar. Não sei se estamos, como sociedade, buscando o êxtase.
Mas sim, vivemos num mundo onde as pessoas respondem a uma série de mecanismos de controle em que elas vão perdendo a dimensão do tempo e a matéria da existência vai se esvaindo pelas mãos. Talvez não seja um êxtase, mas uma espécie de estar fora de si. A própria etimologia de êxtase, do grego ékstasis, é o estar fora de si. Como se as pessoas vivessem um êxtase no sentindo de estar fora de si. E de repente o destino nos jogou nesta necessidade imediata e incontornável de pensar o mundo como uma grande comunidade e entendermos como estamos conectados uns aos outros.
A “salvação” está nas conexões que estabelecemos?
Acho que sim. O mundo se cura na conexão, no olhar, na compreensão que fazemos parte de uma mesma coisa. Que somos todos um mesmo corpo vivo. Acho que a salvação está em nossa capacidade de amor. De abertura e negociação com o outro. Por mais disruptivos e perturbadores que o outro, e o amor sejam.
Êxtase (2020). Direção e roteiro: Moara Passoni. Produção: Petra Costa.
Brasileira / Britânica, trabalha como jornalista multimídia e fotógrafa há quase duas décadas.
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