Por Paula Sant`anna Machado de Souza, Nálida Coelho e Camila Marques
13 de agosto de 2020
Simone de Beauvoir já afirmava, no século XX, que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. A vigilância deve ser constante. Portanto, não é novidade afirmar que a pandemia não é a causa do cenário histórico de discriminações de gênero e políticas que perpetuam o sexismo e o racismo estrutural. Mas é incontestável que a crise atual possui o enorme potencial de catalisar os efeitos das violações de gênero e as suas diversas interseccionalidades, e ainda, criar novos contornos, aprofundando as desigualdades já existentes. Olhares atentos e coordenados são, essencialmente, a única forma de evidenciar as novas dinâmicas de flexibilização e restrições de direitos e, também, pleitear políticas específicas de gênero, com perspectiva étnico-racial, para garantir a equidade nas ações de enfrentamento a este cenário.
Nos últimos meses, muito se discute sobre os diferentes efeitos e impactos que a pandemia provoca em distintos grupos da sociedade, especialmente, com relação às mulheres. E na mesma intensidade em que as análises e estudos evidenciam que os grupos que historicamente sofrem preconceitos e processos de vulnerabilização social são aqueles que mais vivenciam as profundas consequências do novo cenário mundial, vozes conservadoras e negacionistas tensionam o ambiente, em uma tentativa de se opor e anular todos os avanços alcançados nas últimas décadas pelo movimento feminista.
Nos últimos meses, muito se discute sobre os diferentes efeitos e impactos que a pandemia provoca em distintos grupos da sociedade, especialmente, com relação às mulheres. E na mesma intensidade em que as análises e estudos evidenciam que os grupos que historicamente sofrem preconceitos e processos de vulnerabilização social são aqueles que mais vivenciam as profundas consequências do novo cenário mundial, vozes conservadoras e negacionistas tensionam o ambiente, em uma tentativa de se opor e anular todos os avanços alcançados nas últimas décadas pelo movimento feminista.
Por isso, neste momento em que todos os países do mundo se voltam para os mesmos desafios, grupos e instituições comprometidas com a justiça social e com a diminuição das discriminações de gênero precisam direcionar todos os seus esforços para o desenho dos diagnósticos e recomendações, a fim de que políticas públicas de igualdade de gênero possam ser efetivadas no âmbito regional.
Nesse mesmo sentido, recentemente, a Comissão Interamericana de Mulheres da Organização dos Estados Americanos (CIM-OEA) lançou um relatório[1] chamado “COVID-19 na vida das mulheres: razões para reconhecer os impactos diferenciados”, trazendo informações e recomendações que possibilitam o reconhecimento e mitigação do impacto diferenciado da COVID-19 às mulheres.
O documento da CIM-OEA evidencia que as dificuldades e obstáculos para a igualdade de gênero é um desafio regional e, assim, diversos pontos que aparecem no diagnóstico apresentado pela Comissão são representativos de muitas situações do cenário brasileiro. E para mitigar todos os efeitos que a pandemia causa às mulheres, o relatório destaca que só haverá uma resposta mais efetiva quando os países da região caminharem para a inclusão da participação de mulheres no desenho das respostas a esta crise. Segundo o documento, não se pode superar esta crise “sem a participação efetiva de mulheres que permita a visibilização e incorporação destas realidades diferenciadas no desenho destas políticas públicas”.
Este argumento fica ainda mais forte quando se analisa com cuidado os números da região. Apesar de todos os esforços e conquistas do movimento feminista nos últimos anos, as mulheres continuam subrepresentadas nas esferas de poder, em todas as instituições dos Estados, em uma média regional, o relatório aponta que as mulheres representam 30,6% das parlamentares, 28,5% dos gabinetes ministeriais, 15,5% das prefeitas e 32,1% dos mais altos tribunais de justiça.
No Brasil, não é diferente, aliás, o cenário é ainda mais preocupante. Mulheres representam 15% das duas Casas Legislativas[2], no executivo federal há duas ministras do Governo, e apenas 29% de mulheres ocupam os cargos no topo da administração federal[3]. No Judiciário, apenas 20% de mulheres são desembargadoras enquanto que nos Tribunais Superiores, somente 16% são ministras.[4]
As semelhanças entre o cenário regional e nacional continuam. Com o objetivo de desenhar um retrato dos principais desafios que os grupos em situação de vulnerabilidade estão passando em São Paulo, a Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública paulista realizou uma busca ativa a diversos movimentos sociais, incluindo os movimentos de mulheres, para mapear os impactos da pandemia a estes grupos. E assim, publicou um relatório[5], no qual identificou que diversas das situações presentes no cenário local que atingem as mulheres refletem o contexto regional que foi apontado pela Comissão.
Os documentos mostram que a atual crise sanitária desencadeou uma série de efeitos em todas as camadas e perspectivas de gênero, passando desde o crescimento dos índices de violência doméstica à fragilização dos direitos econômicos e relacionados à saúde das mulheres. Um dos principais impactos da pandemia que tem sido vivenciado pelas mulheres no âmbito regional e local diz respeito a sustentabilidade financeira, visto que mulheres vivenciam, em sua maioria, uma situação trabalhista precária, exercendo funções informais e atividades autônomas, tendo toda a sua renda reduzida ou sofrido uma diminuição expressiva em decorrência da pandemia e, agravando esta situação, há um cenário de burocratização e obstaculização para o acesso aos auxílios sociais, como a renda emergencial e o auxílio aluguel. Não bastasse o acima exposto, o fechamento de escolas e creches durante a pandemia, aliado à repartição desigual de tarefas domésticas e das funções de cuidado, tem impedido que mulheres possam garantir sua independência financeira.
Ainda, observa-se um aumento de todas as formas de violência de gênero, atingindo de forma especial, meninas, adolescentes, mulheres negras, idosas, migrantes e com deficiência. A necessidade de distanciamento social faz com que muitas mulheres estejam em uma maior presença e sob vigilância constante de potenciais agressores nos espaços domésticos. A descontinuidade, no que se refere às políticas de atendimento às mulheres em situação de violência, no período de pandemia, contribui para agravar o cenário acima descrito. Os casos de violência sexual também apresentam contornos preocupantes, além da violência psicológica e por meio digital.
Soma-se a isso outros fatores, como as restrições de acesso aos grupos de convívios habituais que impossibilitam que mulheres possam interagir em espaços de interlocução com o universo externo e redes de proteção, o agravamento do atendimento realizado pelo SUS e a ausência de transparência e dados com marcadores de gênero e étnico-raciais sobre a disseminação e efeitos da pandemia nos grupos em situação de vulnerabilidade. Além do fato de que grande parte das mulheres possuem interseccionalidade com outras condições de vulnerabilidade, ampliando o risco à COVID-19, como mulheres idosas, indígenas, quilombolas, migrantes, mulheres e adolescentes em situação de privação de liberdade, mulheres LGTBI, entre outros casos.
Analisando todo esse conjunto de efeitos, não há como manter um olhar distante para todos os impactos que a atual crise ocasiona aos direitos das mulheres, a sua saúde, aos seus direitos sexuais e reprodutivos, e na sua própria sustentabilidade financeira.
A Organização Mundial da Saúde (OMS)[6] declarou a necessidade de garantir nesse contexto da pandemia que as pessoas possam acessar serviços e informações para iniciar e/ou continuar o uso de contraceptivos, enquanto a Resolução nº 1/2020 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos[7] determinou que devem ser garantidas a disponibilidade e continuidade dos serviços de saúde sexual e reprodutiva, incrementadas as medidas de educação sexual integral e a disseminação da informação por meios acessíveis e adequados.
Até a presente data, o Governo Federal mantém-se silente em relação a isso, de modo que não há qualquer orientação para que os Estados se reorganizem a partir da adoção de mecanismos como telemedicina, dispensação por maior tempo de contraceptivos, recomendação para uso de LARCs, dentre outras medidas que têm sido adotadas em todo mundo para frear o aumento do número de gestações indesejadas. É de ressaltar que tem sido comum, em cenários de crises sanitárias- a exemplo do que ocorreu com a epidemia do Zika Vírus- que o Estado brasileiro responsabilize exclusivamente às mulheres para que adotem medidas tendentes a evitar gestações indesejadas.[8]
Muitas destas questões passam pela incidência jurídica e apoio psicossocial e nesse sentido, o Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (NUDEM) da Defensoria Pública vem desenvolvendo inúmeras iniciativas que vão desde a promoção e facilitação da solicitação de medidas protetivas online a casos em que houve impedimentos para a realização de abortamento legal e acesso à contraceptivos de emergência, ou ainda, dificuldades para a garantia do direito ao acompanhante no período pré, durante e pós parto.
A atuação das instituições que atuam no acesso à justiça tem sido essencial no desenho de respostas à pandemia e em que pese a Defensoria Pública já tenha atendido milhares de casos remotamente, sabe-se que o cenário de exclusão às ferramentas digitais constitui um desafio a mais na garantia do direitos das mulheres e, principalmente, para o acesso à justiça e informações sobre saúde e direitos garantidos. De acordo com o mencionado relatório da OEA, existe um cenário mundial de desigualdade de acesso às tecnologias digitais, no qual as mulheres possuem menos acesso à tecnologia. Dados divulgados pela União Internacional de Telecomunicações em 2019 evidenciam que 52% das mulheres não têm acesso a internet no mundo.[9]
Já no Brasil, a pesquisa TIC Domicílios 2019, publicada pelo Comitê Gestor da Internet[10] no Brasil evidenciou que 28% dos domicílios brasileiros não possuem Internet e que 58% dos brasileiros acessam a rede exclusivamente por meio de seus telefones celulares, com esse percentual atingindo 85% na população mais pobre. O uso exclusivo de telefones celulares para acessar a internet também é predominante na população negra (65%), em comparação com 51% da população branca.
Este dado evidencia que é necessário que todas as iniciativas de enfrentamento a atual crise sejam pensadas a partir de um enfoque interseccional que considere medidas diferenciadas a partir das distintas especificidades e identidades das mulheres em situação de risco. A Comissão Interamericana de Mulheres diz de forma categórica que “o poder público deve considerar a intersecção de fatores como raça, etnia, idade, orientação sexual, identidade de gênero, entre outras variáveis que podem acentuar uma situação de risco à violência e discriminação”.
Todos estes dados mostram que políticas públicas específicas de igualdade de gênero, com perspectiva interseccional étnico-racial, são essenciais para o enfrentamento da crise sanitária, social e econômica que o mundo atravessa e que qualquer passo no sentido da retomada econômica que não seja pensado a partir de tais perspectivas interseccionais está fadado a potencializar as desigualdades sociais que já permeiam a região.
O movimento das mulheres na América Latina foi responsável por muitas das conquistas à nível regional e somente com a efetiva participação de mais mulheres em todos os espaços de poder, formais e não formais, garantindo a sua diversidade, será possível mitigar esta crise e, assim, alcançar algum nível de igualdade de gênero e democracia paritária. Enquanto isso, sigamos vigilantes.
Paula Sant`anna Machado de Souza é Defensora Pública, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos Das Mulheres (NUDEM)
Nálida Coelho é Defensora Pública, coordenadora auxiliar do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos Das Mulheres (NUDEM)
Camila Marques é advogada, e atua na Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
Notas:
[1] Acesse em: http://www.oas.org/es/cim/COVID-19.asp
[2] Acesse em: https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/08/mulheres-sao-15-do-novo-congresso-mas-indice-ainda-e-baixo.htm
[3] Acesse em: https://oglobo.globo.com/brasil/mulheres-ocupam-29-dos-cargos-de-confianca-no-governo-23459180
[4] Acesse em: https://www.migalhas.com.br/quentes/321176/tribunais-de-justica-tem-apenas-20-de-desembargadoras
[5] Acesse em: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Repositorio/23/Documentos/Relatorio%20SCO%20-%20COVID%2019%20maio.pdf
[6] Acesse em: https://www.who.int/reproductivehealth/publications/emergencies/WHO-COVID-Q-and-A-contraception-por.pdf
[7] Acesse em:http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf
[8] O ex Ministro da Saúde Marcelo Castro chegou a dizer frases como “E vamos torcer para que mulheres antes de entrar no período fértil peguem a zika, para elas ficarem imunizadas pelo próprio mosquito. Aí não precisa da vacina” ou “ Sexo é para amadoras e gravidez para profissionais.”, disponíveis, respectivamente, em https://exame.com/brasil/ministro-da-saude-disse-torcer-para-que-mulheres-peguem-zika/e https://m.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/11/1707967-microcefalia-pode-atingir-outros-estados-se-elo-com-zika-for-confirmado.shtml?mobile, acesso em 22/07/2020.
[9] Acesse em: https://www.convergenciadigital.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=site&infoid=52170&sid=14
[10] Acesse em: https://cetic.br/pt/pesquisa/domicilios/publicacoes/
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