Garantir o sustento é uma dimensão do cuidar, mas não é e nunca foi exatamente por isso que o trabalho remunerado sempre teve seu valor garantido. É que ele é monetizado, está nas entranhas, na base, do sistema econômico dominante. Seja para sustentar filhos ou não, o trabalho remunerado foi alçado desde os primórdios do capitalismo ao posto de “o trabalho mais importante de todos”, nessa economia desenhada, claro, pelos que não realizam, historicamente, o trabalho não-remunerado. Ou, podemos dizer, pelos homens que não cuidavam.

Mas veja, isso foi há séculos, e movimentos sociais e teorias formuladas em diferentes campos da economia e da sociologia nos fizeram chegar a 2020, o ano da pandemia do coronavírus, com a compreensão mínima de que o trabalho não-remunerado, em especial o cuidado dos filhos, conhecido como “trabalho reprodutivo”, é imprescindível para o funcionamento da sociedade e tem valor econômico.

Além disso, conhecemos ou já ouvimos falar de pais, aquelas exceções, que assumem mais tarefas de cuidados do que as mães. Já não estamos no ponto zero, que bom. Mas estamos longe de uma Economia do Cuidado saudável.

Há algo, infelizmente, que não foi revisto com a profundidade necessária para tornarmos isso possível, na pandemia ou fora dela: o “homem-sujeito da economia”, seja ele empregado ou empregador, teorizado por Adam Smith, Karl Marx ou por dissidentes das correntes que ambos plantaram, nunca foi também, ou principalmente, o homem-pai, o homem que cuida. Enquanto que até aqui, na história do mundo, as mulheres sempre tiveram que conciliar suas identidades e jornadas de trabalho a partir do momento em que negaram apenas a vida doméstica. Elas cuidam em muitas dimensões.

Essa desigualdade histórica e as perdas que ela traz para todos os envolvidos na equação familiar - pais, mães e filhos - vêm sendo comunicadas desde os anos 70, desde a primeira “crise do cuidado” registrada. As mulheres americanas e europeias, organizadas, diziam que o caminho era valorizar o trabalho de cuidado e o doméstico. Naquela época, homens aceitarem lavar louças e cuidar de crianças em vez de priorizarem a vida pública soava utópico, embora a divisão sexual do trabalho tenha sido posta em discussão.

Mas a saída mais imediata para dar visibilidade à questão do cuidado era mesmo reivindicar salários para as mulheres que exerciam atividades do trabalho reprodutivo. Essa história está bem registrada em livros como “O Ponto Zero da Revolução”, de Silvia Federici. Dali pra frente, as mulheres foram ocupando o mercado de trabalho, enquanto não foi na mesma proporção que os homens foram se apropriando das atividades de cuidado em casa.

Cinquenta anos separam aquele primeiro alerta de que esse modelo tão desigual no cuidar não era sustentável da pandemia que vivemos hoje, e temos aqui outra “crise do cuidado”, agora porque enxergamos nitidamente que as soluções que encontramos, como sociedade, para manter o cuidado das crianças em dia enquanto mulheres e homens movem a economia “que importa”, essa que direciona as atividades econômicas, são insuficientes ainda.

Crianças estão em casa, sem escolas ou creches, e relatos e dados, como os que estão na pesquisa recém-publicada, “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, da qual participei, como uma das coordenadoras, nos mostram que mulheres estão sobrecarregadas, e que mesmo quando há divisão de tarefas em casa, há níveis diferentes de envolvimento no cuidar, de acordo com elas.

“Apesar de dividirmos as atividades, eu me sinto mais sobrecarregada pela carga emocional do cuidado com as crianças, especialmente gestão dos conflitos entre elas e uma atenção maior às variações de humor que possam ter. Além disso, minhas duas filhas estão tendo aula pela internet o que é insano, uma delas tem 7 anos e eu tenho que ficar ao lado dela”.

Relatos como esse estão no relatório da pesquisa, que traz dados que nos ajudam a compreender as desigualdades de gênero bastante presentes nessa crise, desigualdades que vão impactar o trabalho remunerado das mulheres e que indicam que grande parte dos homens segue aprisionado nesse papel de cuidador de segunda classe, que também os distancia dos seus filhos.

A pesquisa se soma à vasta literatura produzida há décadas, seja dentro universidades ou em institutos como o IBGE, sobre o tema do cuidado e oposição entre trabalho remunerado e não-remunerado. A Economia do Cuidado não é apenas sobre como “amparar” mulheres e jamais será. A presença do governo no tema, com políticas públicas, como a renda emergencial para mães-solo na pandemia, é central, é reparador de desigualdades. Mas a categoria “pai” é imprescindível para essa economia funcionar.