quarta-feira, 19 de março de 2014

Meninas, aprendam com os homens

A diferença que os torna superiores num aspecto importante da vida

ISABEL CLEMENTE
  
Uma depois da outra, minhas filhas chegam no meu quarto, luz apagada, e se infiltram na minha cama. Está tarde, o marido toma banho, elas já deviam estar dormindo mas não conseguem. Eu, derrotada pelo cansaço, me rendo à presença delas mas peço silêncio. Começa o falatório.

– Se Deus criou o homem e a mulher, então todo mundo é parente? – questiona a mais velha.

Silêncio. Preciso dar uma explicação. Resolvo falar.

– Quem te falou isso? – pergunto.
– Li na Bíblia.
– Não é bem assim... Essa história bíblica é uma representação que Deus criou todas as coisas, mas você ouviu falar da teoria da evolução, que um macaco virou homem, daí vários macacos...
– Sim, eu sei.
– Faz mais sentido. Mas não deixa de ser legal a gente imaginar que todos os seres humanos têm laços. Agora chega. Shhhh...gente.

Silêncio.

– Mamãe, o que é azar? – quer saber a menor – O Visconde disse que a Emília só dá azar...

Penso em não responder, mas a pergunta é muito boa.

– Azar é quando acontece alguma coisa chata que não depende da nossa vontade, por exemplo, fomos ao mercado fazer compras mas não tinha o que a gente precisava. Demos azar.
– Ah...que nem a gente deu azar ontem quebrando o abajur?

Não foi bem azar. Diria teimosia e desobediência em estado bruto, mas era preciso encurtar a conversação, não polemizar e eu, com sono, concordo com tudo. Foi azar sim.

Lá pelas tantas...

– Mas mamãe, você vai morrer antes de mim? - pergunta a pequena.
Antes que eu diga alguma coisa, a irmã se antecipa.
– Claro, né, Carol, mas quando isso acontecer, você já será adulta, terá filhos, e terá acontecido um monte de coisa... – diz Letícia.

Apesar do tema pesado, sorri. Quando a mais velha, hoje com oito anos, tinha quatro veio com a mesma conversa. Agora, quatro anos depois, ela repete meu discurso com a explicação que me ocorrera dar naquela época.

Na penumbra da noite, como um feijão encantado, eu flagro uma semente germinando. Não posso continuar calada.

– A gente não sabe quem vai morrer quando, mas a gente espera que seja assim, primeiro os mais velhos - digo.
– Eu não quero. Se todo mundo morrer, eu, você, todo mundo, aí acaba?
– Não, Carol, os filhos têm filhos, eles também têm filhos, e assim vai, não acaba - continua Letícia, minha porta-voz para assuntos aleatórios.

Silêncio.

– Eu não quero que você morra, mamãe – diz Carol.
– Filha, eu não quero morrer agora, só quero dormir. Esquece isso agora, por favor?

Letícia ri. O tema já não lhe afeta da mesma maneira.

– Mas vai ter um dia, Carol, que o sol vai esquentar, esquentar, ficar muito quente e acabar com todo o planeta – diz Letícia, reluzente como uma explosão solar.
– Que isso, Letícia, quem te falou isso? – pergunto.
– Na escola a gente pesquisa, mamãe.
– Vai ficar muito quente? – Carol pergunta.
– Pegando fogo! Mas só daqui a muuuuuito tempo. A gente nem vai estar aqui mais, nem nossos filhos, nem nossos netos... – responde a irmã que tudo-sabe-tudo-vê.
– Pessoal, não é agora. O ar tá ligado, aqui nem tá quente, vamos dormir? – digo, para dar um fim ao clima apocalíptico.

Chega o pai e encerra com a farra. Elas se vão. Resumo para ele os diálogos e ele ri.
– Agora você vê, essa conversa do mundo terminar? – digo, sono indo embora.
– Hum-hum.
– E esse papo de morte? Sempre difícil – afirmo, mente a mil.
– Hum-hum. Agora dorme, Bebel.
– Coisa de quatro anos, né, lembra da Letícia? – insisto.
– Shhhh...Pensa nisso agora não. Boa noite.

Aí a gente fica pensando nos dramas existenciais dos filhos, na morte da bezerra, no planeta pegando fogo...e ele dorme!

O sono, esse fujão...

É por essas e outras que as mulheres têm mais insônia do que os homens.

Precisamos aprender com eles.

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