domingo, 6 de julho de 2014

Experiências europeias podem contribuir para aplicação da Lei Maria da Penha no Brasil


Livro lançado pela Escola Superior do Ministério Público da União compara modelos europeus para o enfrentamento à violência de gênero com a perspectiva de levantar experiências jurídicas que contribuam para a efetivação do marco legal brasileiro.
Valorização das medidas protetivas, articulação entre o Sistema de Justiça e a rede de atendimento às vítimas e criação de tipos penais específicos que instrumentem os operadores do Direito para lidar com a complexidade da violência doméstica. Pontos como estes, já apontados como necessários por especialistas no Brasil, foram identificados como eixos no modelo adotado por alguns países europeus para enfrentamento da violência contra as mulheres.
Lancamento do livro Modelos Europeus de Enfrentamento à Violência de Gênero – Experiências e Representações Sociais, no MPDFT
Livro foi lançado no dia 24 de março, no auditório do MPDFT(Foto: Débora Prado)
Na obra Modelos Europeus de Enfrentamento à Violência de Gênero: Experiências e representações sociais, os promotores de Justiça do MPDFT Antonio Suxberger, Bruno Amaral Machado, Mariana Távora e Thiago Pierobom pesquisaram, respectivamente, os sistemas jurídicos na Inglaterra, Espanha, Portugal e França.

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A partir da reflexão sobre a realidade de cada país e, sobretudo, dos eixos em comum entre eles, os promotores buscaram levantar experiências que podem ser úteis no debate sobre os caminhos para diminuir a distância entre os direitos previstos na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) e a situação de violência vivida por muitas brasileiras.
De acordo com o promotor Thiago Pierobom, a quem coube a coordenação da obra, a proposta desse estudo comparativo não foi importar receituários de países com realidades distintas, mas sim apontar convergências entre os sistemas que possam representar caminhos para garantir a efetivação do marco legal no Brasil.
Confira alguns pontos destacados pelos autores no lançamento da obra, realizado em março no Distrito Federal.
Prioridade de Estado
Em todos os países, os casos de denúncia de violência contra as mulheres recebem tratamento prioritário, reforçando a posição de que o enfrentamento aos crimes praticados no âmbito doméstico deve sair da esfera privada e ingressar na de interesse público.
Para o promotor Thiago Pierobom, essa abordagem reforça uma avaliação corrente entre os operadores do Direito no Brasil de que, com a Lei Maria da Penha, busca-se mudar a página do sistema jurídico nacional, que por muitos anos encarou os crimes cometidos em contexto de relação íntima de afeto como um delito de menor poder ofensivo.
A experiência dos países europeus mostra ainda que a abordagem dos casos de violência doméstica como um assunto de Estado acaba dispensando, muitas vezes, a necessidade de autorização da vítima para adoção de medidas legais.
A Inglaterra, por exemplo, desde 2004 não atua com a necessidade de representação da vítima para processar os crimes de violência contra as mulheres. A ação é parte de uma política estatal dirigida a uma mudança de percepção cultural, conforme aponta Antonio Suxberger, que analisou a experiência inglesa. “A ideia é afirmar culturalmente que a realização da persecução penal nada tem a ver com a ofendida. Há um esforço grande sendo desenvolvido lá para incutir culturalmente a noção de que o processo de responsabilização do agressor passa absolutamente ao largo da vontade da ofendida”,  explica.
“Se sou pego praticando um roubo no Brasil, em nenhum momento me arrogo a responsabilidade da conduta da vítima por eu estar respondendo por este crime”, compara.
Além disso, outra experiência interessante na Inglaterra é a valorização do primeiro depoimento prestado pela mulher, buscando-se evitar sua revitimização pela repetição, inúmeras vezes, do relato da violência sofrida. “Há protocolos formalizados para que esse primeiro contato com a ofendida seja formalizado e registrado, utilizando-se ferramentas audiovisuais, buscando ouvi-la uma única vez em todo o caso”, conta Suxberger.
Responsabilização e proteção

Outra convergência identificada na obra é a valorização da resposta aos casos de violência doméstica em duas frentes: para além de garantir responsabilização do agressor, as medidas de proteção da integridade física e psicológica das vítimas são incorporadas como uma função do Sistema de Justiça Criminal.
No sentido de atender a esta nova função, duas ferramentas existentes no Brasil são bastante valorizadas na experiência europeia: as medidas protetivas de urgência e o uso de centrais de atendimento telefônico para acolher as vítimas, como o Ligue 180, a Central de Atendimento à Mulher em funcionamento desde 2005 no Brasil.
Além disso, diante dessa prioridade dada à proteção, outro ponto em comum verificado nos países analisados foi a importância da articulação entre o Sistema de Justiça e a rede de atendimento psicossocial. Nesse sentido, equipes de suporte psicossocial, apoio jurídico e locais de abrigamento estão interligados de alguma forma aos órgãos de responsabilização do agressor. “A perspectiva é a de que o Estado deve se responsabilizar pela segurança da vítima numa articulação entre órgãos públicos”, frisa Pierobom.
A intervenção psicossocial junto aos agressores também é praticada em quase todos os países pesquisados, sendo considerada parte importante da política de prevenção à violência voltada às mulheres.
Tipificação
Outro ponto que chama atenção na experiência europeia é a busca pela criação de tipos penais específicos que efetivamente consigam retratar o fenômeno da violência doméstica.
A intenção é evitar que ocorra a minimização dos casos de agressões no Sistema de Justiça e que a responsabilização falhe nos casos em que a violência física não deixa marcas ou mesmo nos atos de violência psicológica.
A França, por exemplo, constituiu o tipo penal de violência conjugal, que engloba o crime de assédio moral na relação conjugal, a ser identificado por perícias psicológicas também estruturadas pelo marco legal, conforme aponta Pierobom. O sistema francês diferencia ainda o delito de violência psicológica pontual do reiterado, agravando a punição neste último.
“Ou seja, há mecanismos para tipificar e isso leva a uma preparação da Polícia para fazer a investigação a partir desses tipos penais. Por exemplo, no instituto de perícia francês há um psiquiatra que faz o laudo psicológico da mulher, que depois pode contribuir para responsabilização do agressor”, destaca o promotor Pierobom, que além de coordenar a obra, avaliou a experiência francesa.
Para ele, a realidade lá é bastante diferente da brasileira. “Nós temos um Código Penal de 1940, que foi construído a partir dos valores daquela época, e hoje tentamos adaptar esse código para os casos de violência doméstica. Grande parte das violências praticadas no âmbito privado não consegue ser capturada adequadamente por ele, como os casos de violência psicológica, previstos pela Lei Maria da Penha”, aponta o promotor.
Na prática, esta lacuna alimenta um ciclo vicioso que prejudica a responsabilização do agressor e desestimula a denúncia do crime. “Quando a mulher tem a coragem de romper todas as barreiras e buscar a delegacia para denunciar a violência doméstica, muitas vezes, o caso acaba sendo registrado como ameaça, quando na verdade pode existir um longo histórico de violências. Aquela mulher pode, por exemplo, estar com depressão, com síndrome do pânico ou com outros transtornos graves que poderiam ser detectados, mas geralmente não são, porque nosso sistema não está preparado para isso”, lamenta Pierobom.
Além da tipificação, os países trabalham também com mecanismos de agravamento das penas. Em todos os sistemas jurídicos analisados, por exemplo, há um agravamento quando a violência doméstica contra as mulheres é praticada na frente de crianças.
Celeridade e desburocratização
Todos os países pesquisados demonstraram ainda uma preocupação com a eficiência do Sistema de Justiça, segundo os promotores. Esta eficiência é mensurada não só pela efetiva responsabilização dos agressores, mas também por soluções que deem celeridade ao processo penal e desburocratizem o acesso à Justiça.
“Temos que criar mecanismos eficientes para que o tempo do processo acompanhe o tempo do conflito, para que o Estado nunca deixe de dar a devida responsabilização para um homem que pratica um ato de violência e para que a Justiça tenha condições de ser eficiente”, considera o promotor. “Cada país tem uma estratégia, mas todos diferenciam os casos mais graves, buscando dar um tratamento prioritário para estes”, exemplifica Pierobom.
Um ponto comum para tentar reduzir a quantidade enorme de processos em todos os países é a possibilidade da realização de acordos com os autores dos crimes pela declaração de culpa antes do julgamento, via que é conhecida na Europa como alternativa da persecução penal. “São acordos construídos na perspectiva de gênero, ou seja, de efetivamente responsabilizar o agressor e proporcionar condições para socorrer a mulher que é vítima de violência  da melhor maneira possível”, explica Pierobom.
A prática pode ser interessante para o Sistema de Justiça brasileiro repensar a possibilidade de acordo quando o réu se dispõe a assumir a culpa antes do julgamento, desde que esta prática não leve à minimização dos crimes contra os direitos humanos das mulheres, na opinião do promotor.
O Brasil tem um legado ruim, nesse sentido, deixado pela Lei nº 9.099/1995, que instituiu os Juizados Especiais Criminais destinados a processar os delitos de menor potencial ofensivo e levou à banalização dos casos de violência doméstica contra mulheres, propondo, por exemplo, punições alternativas para os agressores, como a doação de cestas básicas ou pagamento de multas.

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