Uma das imagens mais associadas a casos em que foi aplicada a Lei Maria da Penha é a de um homem – namorado, marido ou ex – que agride a parceira, motivado por um sentimento de posse sobre a vida e as escolhas daquela mulher. E, de fato, este roteiro é velho conhecido de quem atua nos sistemas de Saúde, Segurança e Justiça atendendo mulheres vítimas de violência: a agressão física ou psicológica cometida por parceiros, ex ou atuais, é a mais recorrente no Brasil, conforme apontam pesquisas recentes.
De acordo com o Mapa da Violência 2012, com base nos atendimentos de casos de violência contra mulheres realizados pelo SUS, é possível afirmar que entre 20 anos e 59 anos da mulher, o agressor é majoritariamente o cônjuge e/ou namorado (ou ex) da mulher. A pesquisa Percepção da sociedade sobre violência e assassinatos de mulheres revelou ainda que, entre os entrevistados, de ambos os sexos e todas as classes sociais, 54% conhecem uma mulher que já foi agredida por um parceiro e 56% conhecem um homem que já agrediu uma parceira.
Os operadores de Direito ouvidos pelo Informativo Compromisso e Atitude alertam, porém, que a recorrência não pode ser confundida com regra geral e destacam: a Lei Maria da Penha deve ser aplicada sempre que houver violência doméstica e intrafamiliar contra mulheres, independentemente da idade ou classe social da vítima ou do sexo de seu agressor. Lembram ainda que a relação íntima de afeto prevista na Lei não se restringe a relações amorosas.
“Ainda há uma relutância do Poder Judiciário, que muitas vezes entende que a Lei só se aplica a um relacionamento amoroso entre um homem e uma mulher, quando, na verdade, ela abarca qualquer relacionamento íntimo e familiar – mesmo com primos, irmãos, pais – quando há uma mulher agredida e em que a agressão acontece justamente pela sua condição de mulher na sociedade”, aponta a defensora pública do Mato Grosso, Rosana Leite.
“Às vezes, até uma sogra pode praticar violência doméstica e familiar contra a nora, por exemplo, quando humilha e até agride a mulher porque ela não estaria desempenhando o papel que a sogra espera dentro da relação com seu filho”, exemplifica a também defensora Juliana Belloque, de São Paulo.
Os dados da Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180, mostram que no ano passado, por exemplo, entre todas as chamadas atendidas, em quase 13% dos casos as agressões relatadas partiam de familiares.
Para auxiliar nos parâmetros que permitem essa identificação, a juíza Elaine Cavalcante, titular da Vara Central da Violência Doméstica e Familiar, conta que em São Paulo a Câmara Especial do Tribunal de Justiça editou a Súmula (número 114), que afirma:
Para efeito de fixação de competência, em face da aplicação da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), tanto o homem quanto a mulher podem ser sujeito ativo da violência, figurando como sujeito passivo apenas a mulher, sempre que fique caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade, além da convivência íntima, com ou sem coabitação, e desde que a violência seja baseada no gênero, com a ocorrência de opressão, dominação e submissão da mulher em relação ao agressor.
Reconhecimento da diversidade
Outra possibilidade de aplicação da Lei que deve ser lembrada é para proteção da mulher que é agredida no relacionamento com uma outra mulher. “A Lei Maria da Penha ressalta de uma maneira expressa duas vezes que ela se aplica independentemente de orientação sexual e foi, inclusive, a primeira legislação no Brasil a falar sobre homoafetividade. Então, as relações entre mulheres estão ao abrigo da Lei”, ressalta a advogada Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e desembargadora aposentada. “A relação não precisa ser com um homem, a lei só define que a vitima é mulher. E uma situação terrível que vem acontecendo, nesse contexto, é que transexuais que ainda têm o nome masculino não tem tido acesso aos direitos previstos na Lei quando sofrem violência doméstica”, complementa.
Na prática, os casos de agressão nos relacionamentos homoafetivos registrados são bem menores numericamente: segundo os dados do Ligue 180, no ano passado eles não chegaram a 1% dos atendimentos registrados.
Ainda que numericamente menor, é importante lembrar que esses casos também estão sob o amparo da Lei, uma vez que discriminações podem se tornar barrerias adicionais para o acesso à direitos. A juiza Elaine Cavalcante destaca que, “de qualquer forma, a partir do reconhecimento da união homoafetiva pelos Tribunais e considerando a prevalência dos princípios constitucionais, torna-se imperiosa a proteção a esses grupos, sejam de lésbicas ou transexuais, nas agressões praticadas por seus companheiros ou companheiras”.
No Mato Grosso do Sul, apesar de serem poucos os casos, o processo também é feito normalmente pela Vara Especializada, conforme previsto pela Lei, aponta a promotora Ana Lara Camargo de Castro, que atua na Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em Campo Grande. “Nesses casos, em que uma das mulheres pratica a violência a partir de supostos papéis de gênero, a Lei Maria da Penha é e deve ser normalmente aplicada. Mas, sabemos que, infelizmente, em nem todos os juizados é assim”, lamenta.
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