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domingo, 9 de novembro de 2014

Brianna Wu: “Ameaças de morte e estupro já fazem parte do meu trabalho”

A americana Brianna Wu foi ameaçada de morte ao criar um videogame protagonizado por mulheres. Segundo ela, a perseguição às mulheres é coisa corriqueira na indústria dos videogames

RAFAEL CISCATI

Época

04/11/2014

A desenvolvedora americana Brianna Wu, dona da produtora de videogames Giant Spacekat, estava acostumada a receber ameaças de morte. Depois de criar um jogo em que todas as personagens eram mulheres, a perseguição virou rotina: “Nós chateamos muita gente”, diz ela. Mesmo assim, Brianna se assustou quando, no dia 10 de outubro, viu seu endereço publicado na internet, acompanhado por um recado: “Espero que você aproveite bem seus últimos momentos de vida”. Ela virara alvo do GamerGate – uma campanha de difamação e ameaças contra mulheres de destaque na indústria dos jogos eletrônicos.

Em entrevista a ÉPOCA, Brianna conta como o assédio a mulheres que trabalham em empresas de videogames é corriqueiro nos Estados Unidos. E discute a importância de abordar  a questão: “Tratar desse problema é a diferença entre manter as mulheres trabalhando nessa indústria, ou perdê-las por uma geração”, diz ela.

ÉPOCA - A senhora comentou, em entrevistas passadas, que se acostumou a receber ameaças de morte ao longo da carreira. As mensagens que recebeu no dia 10 de outubro eram diferentes. Como a senhora reagiu?

Brianna Wu - Eu sou uma figura pública, como mulher no mundo da tecnologia. Recebo ameaças de morte e estupro constantemente. Já é parte do meu trabalho. O que aconteceu naquele noite foi diferente. Aquela foi a primeira ameaça que recebi que parecia indicar, de verdade, perigo imediato. Incluíram o endereço da minha casa; fizeram ameaças muito específicas ao meu marido. Quando li aquilo na tela do celular, deixei meu telefone cair e comecei a chorar. Tudo que consegui fazer foi pedir a meu marido que ligasse para a polícia imediatamente. Foi chocante. E as mensagens, você as viu, eram muito depravadas.

ÉPOCA - Quão comuns são os casos de assédio e as ameaças a mulheres na indústria do videogame?

Brianna - Isso é muito comum. Toda mulher que conheço nessa indústria, desde que seja uma figura pública, recebe ameaças. É quase que uma parte da vida. Uma amiga minha, editora de um site sobre games, já viu fotos de sua residência publicadas online, como forma de assustá-la. O que acontece é que, com o tempo, você se acostuma. Você desenvolve certa frieza e a capacidade de dizer: “Bom, essa ameaça aqui não parece muito séria. Esse outro aqui só que me assustar”.

ÉPOCA - E como as mulheres reagem a esse ambiente?

Brianna - A maioria das mulheres tenta continuar a trabalhar e fica em silêncio a respeito do que lhes acontece. Tentam não tornar essa forma de assédio algo importante. Temos grupos organizados entre mulheres que trabalham na indústria da tecnologia nos quais podemos sentar para falar a respeito disso. Intimamente, todas nós estamos aterrorizadas. Mas, publicamente, não queremos ser vistas como alvos. Por isso acredito que a maioria das mulheres lida com isso simplesmente ficando em silêncio.

ÉPOCA - As mensagens que a senhora recebeu citavam seu jogo, Revolution 60. Ele foi bem avaliado pela imprensa especializada. Por que os GamerGaters o odeiam?

Brianna - Para começar, acho que eles odeiam Revolution 60 porque eles me odeiam. E eles o odeiam porque meu jogo tem personagens femininas fortes. Revolution 60 é um jogo no qual todas as personagens são mulheres. A vilã, a heroína, todas as personagens secundárias – são todas mulheres. Ele não possui uma mensagem feminista declarada, mas essa mensagem fica implícita. Mostramos mulheres sendo incríveis. E isso chateou muita gente.

ÉPOCA - De onde surgiu o desejo de criar um jogo apenas com mulheres? Por que a ideia era atraente para a senhora?

Brianna - Trabalho com desenvolvimento de jogos há 5 anos, mas trabalhei com tecnologia por quase toda a minha vida adulta. Sou uma grande fã de Final Fantasy. Final Fantasy teve uma grande influência sobre mim enquanto eu crescia. Na verdade, todo jogo com narrativa e com personagens femininas poderosas me atraia muito. Por isso, quando decidi criar minha empresa de desenvolvimento de jogos, decidi que teria um jogo que tratasse somente de mulheres. O que me incomoda nos videogames é que, muito frequentemente, as mulheres são retratadas como “a namorada”; “a dama em apuros”. Raramente elas são as heroínas. Eu queria contar histórias nas quais as mulheres ocupassem esse papel.

ÉPOCA - Há algo de errado na forma como as mulheres são representadas nos videogames?

Brianna - Claro. Há tantos games no mercado, mas a maioria comete os mesmos erros. Vou dar um exemplo: há um jogo de O senhor dos Anéis que acaba de ser lançado. Não há nenhuma mulher com a qual você possa jogar, e uma mulher é morta logo nos dez primeiros minutos, para dar ao protagonista homem os motivos para sair em uma missão. Exemplos assim me fazem pensar que as mulheres são tratadas como lixo nos videogames, e acho que isso traz consequências para toda a cultura. Muda a forma como as mulheres são vistas. Acho que encoraja violência contra mulher, acho que encoraja homens a objetificar mulheres e que, sobretudo, diz aos homens que eles não precisam nos tratar com seriedade. Que eles não precisam nos tratar como iguais.

ÉPOCA - Um levantamento realizado pela Entertainment Software Association (ESA) sustenta que o número de mulheres com mais de 18 anos jogando videogame já ultrapassou o número de adolescentes com menos de 18 fazendo o mesmo. Ao menos nos EUA. Mesmo assim, os jogos não parecem pensados para as mulheres como público.

Brianna - Concordo completamente com você. Vemos um número cada vez maior de mulheres gamers. Por isso acho que há um descolamento entre a forma como os jogos são vendidos, entre as estratégias de marketing pensadas para vendê-los, e o público que realmente consome esses produtos. E isso é reflexo de uma indústria dominada pela presença masculina. Fui esse ano a uma feira de desenvolvedores de jogos importante nos Estados Unidos. Quando cheguei a essa conferência, só o que havia eram homens. Falta conexão entre as pessoas que fazem os games e as pessoas que compram.

ÉPOCA - Há jogos bons no mercado, entre as grandes produções? Jogos que apresentem uma imagem de mulher que fuja ao estereótipo de donzela indefesa ou objeto sexual?

Brianna - Há sim. A versão de 2013 da Tomb Raider, por exemplo. Os escritores tomaram esse personagem, que por mais de uma década foi um símbolo sexual com seios imensos, e transformaram em uma pessoa, em uma mulher com a qual o jogador pode se identificar.  E acho que a indústria está mudando, mas acho que ela muda muito lentamente. Melhorou, mas ainda não é aceitável. Por exemplo: no ano passado, a Nintendo lançou uma nova versão de Super Mario. É um jogo da Nintendo, é um jogo grande.  Nele, a princesa Peach é raptada pela 12ª vez. Sabe, isso aconteceu em 2013. É tão anacrônico. Eu acho que melhorou, está ficando melhor, mas que essa mudança acontece muito lentamente.

ÉPOCA - O GamerGate surgiu como reação a um conjunto crescente de críticas que se opõem à forma como mulheres e minorias são retratadas nos jogos. Há mais gente preocupada com essa questão?

Brianna - Os games tentam ser levados a sério como uma forma de arte há décadas. E acho que, finalmente, conseguiram. Junto com esse reconhecimento vem essa discussão de o que essa arte significa. O que essa arte significa para as mulheres, para pessoas negras, para hispânicos. Esses questionamentos são consequência da crescente importância dessa mídia.

ÉPOCA - Há poucas mulheres trabalhando em empresas de tecnologia. Nas empresas de videogames, mulheres equivalem a meros 22% dos funcionários, segundo levantamento da International Game Developers Association. Há resistência à presença feminina nesse meio?

Brianna - Sim, e é bastante frustrante, para ser franca com você. Muitos dos contatos que você faz nessa indústria surgem no bar, com muito álcool, no meio da noite. É difícil para uma mulher fazer amizades nessa indústria muito masculina. Não é que as pessoas digam todo o tempo: “Nós não queremos mulheres por perto”. Mas é um ambiente muito masculino e que, sem que as pessoas sequer pensem a respeito, se torna hostil à presença de mulheres. Algumas das minhas amigas, ainda no inicio dos 20 anos, têm de aturar assédio sexual em um nível que me deixa chocada. Tenho amigas que processaram as empresas para as quais trabalhavam. Há uma espécie de ambiente de fraternidade, que torna muito difícil para uma mulher se manter na indústria. E acho que o sexismo piora, mas acho que esteve aqui desde o começo. O número de mulheres que buscavam diplomas na área da ciências da computação caiu dramaticamente nos anos 1990, se comparado aos anos 1980. Então, sim, acho que está ficando cada vez pior.

ÉPOCA - Por que essa discussão é importante?

Brianna - Tratar desse problema na indústria de jogos é a diferença entre manter as mulheres trabalhando nessa indústria, ou perdê-las por uma geração. Todas as mulheres que conheço estão apavoradas. Há garotas jovens que me escrevem o tempo todo. Então, a menos que os homens nessa indústria se manifestem e trabalhem para por um fim nisso, vamos ver uma perda muito grande. É hora de a indústria demonstrar coragem.

ÉPOCA - A senhora continua a receber ameaças?

Brianna - Recebo uma ou duas ameaças todos os dias. Hoje mesmo, antes de conversarmos, recebi um e-mail: “Eu vou te estuprar #GamerGate”. Isso é constante. Tudo que faço é manda-los imediatamente para a polícia. E bem, eu odeio dizer isso, mas já me sinto meio entorpecida. Tive de suportar tanto abuso nas últimas duas semanas, que simplesmente me sinto emocionalmente morta diante dessas ameaças. Não sinto nada.

ÉPOCA - A polícia conseguiu avançar nas investigações? Já apontou os responsáveis pelas ameaças a senhora?

Brianna - A polícia veio até minha casa. Olhou as ameaças que recebi. O que posso dizer é que eles estão tentando encontrar os responsáveis. O FBI está investigando; a divisão de crimes cibernéticos está investigando. Estou bastante confiante de que essas pessoas serão encontradas. Mas eu continuo a receber ameaças de morte e estupro. Recebi uma há alguns minutos, inclusive. Mando todas para a polícia e espero para ver o que vai acontecer.

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