quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Juristas defendem perspectiva de gênero no ordenamento jurídico para efetivar enfrentamento à violência contra as mulheres

14/09/2015
A tipificação da Lei do Feminicídio no Brasil vem gerando debates entre os operadores do Direito sobre a objetividade da natureza qualificadora que tornou hediondo o crime de homicídio de mulheres motivado por sua “condição de sexo feminino”. De acordo com a Lei nº 13.104/2015, é considerado feminicídio o crime que envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Outros países já enfrentaram acirrada discussão sobre o reconhecimento legal de que a hierarquização socialmente construída entre homens e mulheres estimula comportamentos “masculinos” e “femininos” atrelados a uma noção de poder heteronormativa e violenta. No caso da Espanha, que tem a melhor lei integral de enfrentamento à violência de gênero do mundo de acordo com especialistas, 144 questionamentos foram apresentados à Corte Constitucional daquele país contra o diploma adotado em 2004 com aprovação unânime no parlamento. O dado foi apresentado pela ministra vice-presidente do Tribunal Constitucional da Espanha, Adela Asua Batarrita, durante o Seminário Internacional Violência de Gênero e Feminicídio, realizado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro em agosto.
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Adela Asua Batarrita fala durante o Seminário Internacional Violência de Gênero e Feminicídio. Na ponta, à direita, a ministra Cármen Lúcia. Crédito: Luciana Araújo








Adela e outras juristas, como a magistrada argentina Alicia Ruiz e a vice-presidente do Supremo Tribunal Federal brasileiro, ministra Cármen Lúcia, realçaram como a incorporação da perspectiva de gênero à legislação de enfrentamento à violência contra as mulheres e ao feminicídio é essencial, tendo em vista que as violações a direitos fundamentais das mulheres, entre eles, o direito à vida, são evidentes subprodutos das construções sociais.
“O padrão das circunstâncias em que esses delitos são cometidos corresponde a algumas características que são manifestações da violência de gênero e também a uma estrutura cultural, política e econômica em detrimento do papel das mulheres e que vem sustentando uma normativa de hierarquização”, destacou Adela. Este reconhecimento é fundamental, não só para visibilizar tais crimes nas estatísticas, mas para efetivamente identificar as causas e a gravidade da violência doméstica e educar os homens. “Se queremos ser efetivos, temos que identificar as causas e estruturas de submissão e experiências de gênero baseadas em uma visão antiga de obediência das mulheres aos maridos, pais [e homens em geral]”, afirmou.
Igualdade e equidade
Assim como aconteceu quando da aprovação da Lei Maria da Penha, críticos da Lei do Feminicídio apontam uma possível ruptura do princípio constitucional da igualdade entre cidadãos. Para a jurista e catedrática espanhola, tais questionamentos às legislações que apontam para uma perspectiva de gênero desconsideram que “a igualdade formal não se equipara à igualdade real e, por vezes, oculta a realidade”. O Supremo Tribunal Federal brasileiro também foi instado a se manifestar sobre a constitucionalidade da Lei nº 11.340/2006 e decidiu por unanimidade que a Lei Maria da Penha está em acordo com a Carta Magna.
De acordo com a magistrada argentina, a resistência nos meios jurídicos e políticos, assim como nos meios de comunicação, busca encobrir a violência de gênero no tratamento aos crimes. Adela destacou que a Suprema Corte espanhola, no julgamento da constitucionalidade da lei integral contra a violência de gênero em 2008: reconheceu que a violência sexista se inicia nas estruturas históricas; decidiu que não há discriminação contra os homens no tratamento desigual a fatos jurídicos distintos; e que é necessária uma “proteção legal reforçada, porque a imposição de uma estrutura de violência coloca as mulheres em uma situação de subordinação”, em desvantagem no acesso a direitos fundamentais.
Para a ministra Cármen Lúcia, desconsiderar as diferenças na existência social vivida pelas mulheres “é desigualar por preconceito, partindo de premissas falsas”. Para a vice-presidenta do STF, o empenho do Judiciário segue nessa direção: “estamos dando dinâmica ao princípio da igualdade constitucionalmente posto, lutando pela igualação, que é o processo dinâmico de conquistar a igualdade”.
Batarrita destacou como os marcos legais vêm permitindo, ainda que de forma lenta, a incorporação dos direitos humanos das mulheres e a responsabilização dos Estados nacionais pelo bem estar de metade da população. E que mais de 600 milhões de mulheres ainda vivem em países onde a violência doméstica não é reconhecida como delito. Daí a importância da evolução histórica da ampliação do conceito de direitos humanos, incorporada pela Cedaw (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher) em 1979, até os dias de hoje, bem como da obrigação de que todos os Estados signatários cumpram as normativas do referido tratado. Igualmente importantes são os protocolos para investigação dos crimes de feminicídio e violência doméstica, já em vigor em diversos países e que agora estão sendo adaptados para aplicação à realidade brasileira.
A ministra Adela Batarrita também ressaltou o avanço da Convenção de Istambul, que obriga os tribunais dos 47 países europeus signatários a julgar os casos de acordo com os princípios estabelecidos no documento a partir de 1º de agosto deste ano. A Convenção também dá a promotores e defensores dos direitos das mulheres autoridade para denunciar o descumprimento da convenção, além de criar uma comissão de especialistas para monitorar o cumprimento da mesma.
O desafio da formação em gênero e integração da rede de atendimento
Patricia Laurenzo faz sua explanação durante o Seminário.
Patricia Laurenzo faz sua explanação durante o Seminário.
Outra catedrática espanhola em Direito Penal, Patricia Laurenzo, ressaltou que as legislações com perspectiva de gênero têm servido para criar consciência social entre os operadores jurídicos sobre as desigualdades socialmente construídas entre homens e mulheres, retirar o problema da esfera particular e ressaltar que “temos metade da população mundial vivendo em situação de subordinação, sem condições de exercer seus direitos básicos de pessoa”.
Por outro lado, a professora da Universidade de Málaga aponta a contradição do Direito Penal ao trabalhar com responsabilidades pessoais, retirando o componente estrutural da violência e individualizando o conflito social. Desloca-se o problema de uma “estrutura social opressora que se manifesta em comportamentos autoritários e violentos, para tratar dos sujeitos concretos que, por uma mentalidade machista, atuam de forma violenta diante de pessoas concretas”. Embora seja fundamental a responsabilização dos agressores, Laurenzo destaca que a perspectiva penal dissociada da questão de gênero favorece um descompromisso da sociedade, que “se separa do agressor, o individualiza fora de sua responsabilidade”. Dessa forma, lembrou que a tipificação por si só não reduz a violência, mas sim um conjunto de políticas públicas que atuem na educação e prevenção, além de medidas que evitem a impunidade dos agressores por falta de formação dos operadores dos sistemas de justiça e segurança sobre as desigualdades de gênero. Além da sensibilização dos profissionais que atuam no atendimento às mulheres, a responsabilização dos operadores e do Estado também foi apontada como elemento fundamental no enfrentamento à violência de gênero (leia mais sobre esse tema aqui).
Luciana Araújo

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