Vice-presidente da OAB-DF, Daniela Teixeira defende medidas exemplares contra agressores de mulheres e aponta os desafios enfrentados pelas advogadas
“Enquanto os agressores não forem punidos, a violência não vai diminuir. Eles devem ser punidos, sejam quer for. Seja o marido da vítima, seja o promotor que está abusando de uma vítima em uma audiência, seja um deputado que é réu numa ação já recebida pelo STF”, declarou a vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal, Daniela Teixeira, referindo-se ao deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), réu no Supremo Tribunal Federal por injúria e apologia ao estupro.
A declaração da brasiliense de 44 anos causou alvoroço no plenário da Câmara dos Deputados. Em meio a uma discussão sobre medidas de enfrentamento da violência contra a mulher no último dia 14, Bolsonaro se indignou ao ser citado. Aos berros e de dedo em riste, foi até a Mesa da Câmara e tentou interromper a sessão, presidida por Maria do Rosário (PT-RS).
A reação do parlamentar provocou a indignação da OAB. A entidade emitiu uma nota de desagravo em que estendeu a agressão do parlamentar a todas as mulheres advogadas. Teixeira, que cursou Ciências Políticas e Direito na Universidade de Brasília (UnB), saiu acompanhada da Câmara por assessores e parlamentares.
Apesar dos avanços nas legislações dos últimos anos, como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, o índice de violência de gênero ainda é epidêmico no Brasil. Dados da Organização Mundial da Saúde colocam o Brasil como o quinto país do mundo em assassinatos de mulheres, atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia. Levantamento realizado pelo Data Senado revelou que uma em cada cinco mulheres já sofreu algum tipo de violência.
“Precisamos educar os nossos jovens: a mulher para não aceitar apanhar, o homem para não bater e as pessoas para denunciar”, afirmou a vice-presidente da OAB-DF. Em entrevista, Teixeira critica propostas de mudanças na Lei Maria da Penha, apontou entraves para o exercício da advocacia pelas mulheres (“30% desistem nos primeiros cinco anos de profissão”) e reafirmou a importância da atuação feminina no mundo do Direito.
CartaCapital: Qual é o principal desafio da Justiça brasileira hoje no enfrentamento à violência contra a mulher?
Daniela Teixeira: A violência contra a mulher é principalmente doméstica. Isso nos cria uma dificuldade muito grande de enfrentamento, porque não adianta colocar a polícia na rua se a violência ocorre na intimidade dessa mulher, em casa ou onde ela trabalha. Para enfrentar a violência doméstica, não temos outro caminho, não tem fórmula mágica. Precisamos educar os nossos jovens: a mulher para não aceitar apanhar, o homem para não bater e as pessoas para denunciar. É muito importante fazer sempre campanhas de esclarecimento.
A polícia não vai nos ajudar em nada, infelizmente, com relação à violência contra a mulher.Das mortes de mulheres, 7 em cada 10 são muito fáceis de serem solucionados, porque é o ex-companheiro que comete esse homicídio. Veja que é um quadro totalmente diferente do homem. O homem é morto na violência do asfalto, na briga de bar, na violência urbana. Vamos conseguir mudar isso com a a educação e com a punição exemplar desses homens agressores.
CC: Por que a punição é importante?
DT: É preciso ficar claro que eles serão punidos, porque é isso que faz com o que o seu colega de trabalho, de bar, de futebol, pense duas vezes antes de agredir uma mulher. Por isso insistimos muito na punição do agressor. O agressor que não é denunciado ou punido é um exemplo para os outros homens de que eles vão conseguir sair impunes. É muito importante que seja feita a denúncia e que ele seja processado e julgado. Essa foi a grande inovação da Lei Maria da Penha.
CC: Que inovações a legislação trouxe?
DT: Antes, a gente tinha uma legislação comum que tratava de violência. Era assim: João dá um tapa em José. Um tapa é só um tapa, todo mundo vê, fala para deixar disso, não vai para a delegacia.
Mas se João dá um tapa na mulher dele, na namorada ou na ex-namorada, a chance de isso aumentar é muito grande. Hoje é um tapa, amanhã é um murro, depois de amanhã é um soco e isso vai evoluir provavelmente para uma tentativa de homicídio. A grande evolução da Lei Maria da Penha foi tornar esse tapa não um tapa em Maria, mas um crime contra a dignidade humana, é uma violência contra o gênero mulher.
Independentemente de Maria querer ou não denunciar seu marido, o Estado passou a prosseguir com a ação penal. Estamos dizendo, com essa lei, que completou 10 anos no mês passado, que o Estado brasileiro não permite mais que as mulheres apanhem. E as nossas estatísticas são horríveis. O Brasil é o quinto país com o maior número de violência doméstica contra a mulher.
Então, realmente, é um assunto que precisa ser discutido, debatido e falado. Os maiores índice de violência contra a mulher no Brasil são no Espírito Santo, Alagoas, Piauí e Paraná. Isso mostra que as mulheres apanham muito, de norte a sul do Brasil.
CC: Além das estatísticas, estamos vivendo um momento em que inclusive políticos se sentem empoderados em falar ou incitar a violência contra a mulher. Como é possível fazer essa discussão sobre a violência dentro desse contexto?
DT: É muito difícil assumir esse papel de fazer a defesa das mulheres. Porque é exatamente isso que a gente passa: uma autoridade pública se sente confortável para, numa sessão do Parlamento que discutia o estupro e medidas de combate a violência contra a mulher, para gritar, falar palavras de baixo calão, colocar a mão na cara de uma mulher.
Aquilo é um retrato do que acontece no Brasil: pessoas ainda vivendo no século passado e achando que podem fazer esses atos de violência contra a mulher. É contra tudo isso que estamos tentando uma outra alternativa. Eu costumo sempre falar que estamos vivendo o que os historiadores já estão chamando de primavera feminina, que nós somos um exército anônimo.
Quem é Daniela Teixeira? Eu não sou ninguém e nem quero ser ninguém, mas trago dentro de mim todos os sonhos do mundo. Sou eu e milhares de mulheres. Temos hoje milhares de mulheres fazendo essa revolução silenciosa do “basta”. Eu não vou apanhar e não vou permitir que a minha filha apanhe, minha mãe apanhe ou minha colega apanhe.
As denúncias aumentam a cada dia por isso. É essa conscientização da mulher que é sujeito de Direito. Ele não pode bater nela porque o bife está mal passado, porque ela está de saia, porque terminou o namoro – ela não pode apanhar. E nós estamos conseguindo mudar essa percepção.
Eu tenho 44 anos. Se você pegar uma geração anterior à minha, ainda viam com uma certa normalidade. Hoje, eu não imagino dizendo isso para a minha filha. Se a minha estagiária, de 20 anos, chegar aqui de olho roxo, vou tomar uma providência imediatamente. Jamais diria para ela que isso é normal.
CC: Como sociedade, estamos discutindo a violência contra a mulher da maneira adequada ou com a ênfase que seria necessária?
DT: Acho que existe hoje espaço para discutir e se opor a essa violência. As vozes do atraso sempre vão existir, em qualquer assunto, mas eu tenho essa esperança de que está bem encaminhado. As pessoas estão abertas a entender. Não é uma ideologia de gênero, essa pauta não é da esquerda ou da direita, de rico ou de pobre, de branco ou de negro, as mulheres brasileiras apanham em todas as classes sociais. Acho que existe esse consenso de que é preciso mudar.
CC: A Lei Maria da Penha contribuiu para diminuir em cerca de 10% a taxa de homicídio contra mulheres dentro de casa. Atualmente, a lei pode sofrer modificações. O ponto mais polêmico é a introdução do artigo 12-B, que confere à autoridade policial o poder de conceder ou não as medidas protetivas de urgência – competência que hoje é exclusiva do Poder Judiciário. Como a senhora analisa essas possibilidades de mudança?
DT: Eu sou vice-presidente da OAB-DF e nós somos radicalmente contra a mudança. Primeiro porque a Maria da Penha deu certo, qualquer pessoa hoje no Brasil conhece e sabe que existe. Não há motivo para mudá-la. Segundo, entendemos que a autoridade que pode restringir o direito, qualquer direito, é sempre o juiz, não um delegado. Não é verdade que o delegado está querendo isso para proteger a mulher. Ele quer poder. Ele vai começar protegendo a mulher e vai terminar concedendo medidas restritivas para o ladrão comum.
E a lei funciona. Se a mulher vai na delegacia especializada e pede a medida protetiva, o juiz dá e que funciona muito bem. Na nossa opinião, conceder um poder de restrição de direito a um delegado é uma via de mão dupla. Porque quem disse que ele vai dar? Eu presumo o contrário, que ele não vai dar. Que você vai pedir e o delegado vai fazer corpo mole e dizer para deixar disso. Nós vamos voltar ao que era antes, porque as mulheres sempre foram agredidas e o delegado sempre disse “deixa disso”.
A Lei Maria da Penha não trata só da questão penal, apenas 12% de seus artigos tratam da questão penal. Os outros todos são de prevenção à violência doméstica. Não é para tratar de quem já fez, mas sim para prevenir. A volta a esse sistema policialesco, da delegacia e do delegado, não traz nenhum benefício para nós. Pelo contrário, traz um risco de a mulher comparecer à delegacia e o delegado não fazer nada e ela ficar impossibilitada de pedir uma medida restritiva de direitos ao juiz, que é quem, no nosso sistema, pode pedir essa restrição.
Enxergamos isso como uma briga entre o delegado, o juiz e o promotor, na qual a última pessoa que está importando é a mulher, tanto é que foi a última a ser ouvida. Nenhum movimento de mulher foi ouvido, a OAB não foi ouvida. Ninguém que trabalha com isso foi ouvido. Aí você vê a associação dos magistrados contra e a dos delegados a favor e vai ganhar quem fizer mais força no Congresso.
Nós entendemos que isso não resolve. Era assim antes e não funcionava. Só passou a funcionar com as delegacias especializadas da mulher, as varas de enfrentamento à violência doméstica, com a estrutura do Fórum.
CC: Há hoje redes de advogadas e juristas formadas apenas por mulheres. Qual é a importância de se discutir questões feministas dentro do mundo do Direito, um espaço ainda muito machista?
DT: É muito importante. Eu faço parte de vários grupos, o que eu mais gosto é o Mais Mulheres no Direito. Nós temos especialistas de todas as áreas, juízas, promotoras, advogadas, nesta tentativa de trazer o olhar feminino para todas as áreas do Direito. Na advocacia já somos maioria, até 25 anos somos 60% das OABs, aí a medida que vai envelhecendo cai, mas no nacional já somos 52% de mulheres.
Somos maioria e eu não aceito ser tratada como minoria. Eu respeito as minorias, trabalho por ela, mas particularmente, nesse caso, as mulheres são maioria. Então é muito importante que a gente esteja sempre divulgando esse trabalho de mais mulheres no Direito. É importante que a gente dê visibilidade para isso.
CC: Essa tomada de espaço de poder dentro das esferas maiores do Direito, como a ministra Carmen Lúcia na presidência do STF, o que isso representa para uma jovem advogada?
DT: Muito, é exatamente olhar para cima e ver hoje que as duas maiores autoridades do Judiciário são mulheres. É a presidente da Suprema Corte, a Carmen Lucia, e a advogada-geral da União, [Grace Maria Fernandes Mendonça] mulheres comprometidas com essa pauta feminina. A ministra Carmen foi a primeira mulher a entrar de calça no STF.
É muito interessante, naquele dia o fato de ela ter entrado de calça comprida foi notícia em todos os jornais e revistas brasileiras. Parece que a gente mora na Arábia. Eu faço muitas palestras e levo prints desse dia de notícias. É surreal ter uma notícia dessas na capa dos principais jornais. Uma mulher entrar de calça no STF é notícia. Você vê que ela fez aquilo para provocar e dizer “olhar, eu vou de calça, não tem cabimento”.
A ministra Carmen é uma libertária, é uma amante das ideias feministas. Acho que vai ser muito bom tê-la como presidente do STF porque ela vai enfrentar essa pauta. No seu primeiro dia como presidente ela já disse que as mulheres sofrem preconceito sim. Eu imagino exatamente isso: uma jovem bacharel em Direito que está começando agora, tem em quem se inspirar, o céu é o limite agora.
Deixou de ser um universo totalmente masculino. Acho que é inspirador. É um caminho mais fácil do que para mim. Quando eu estava me formando eram 11 ministros homens. Então veja, está melhorando, em passos de formiga, mas está.
CC: Com relação à OAB-DF, que medidas vocês estão tomando para trazer visibilidade para a pauta da mulher quanto ocupar esses lugares de poder?
DT: Muitas. O ano de 2016 foi declarado o ano nacional da mulher advogada. Nós criamos o Plano Nacional da Mulher Advogada e comissões da mulher em todos os 27 estados, queremos criar essas comissões até o final do ano em todas as sub-sessões do Brasil. Então nos deu uma capilaridade imensa, eu sou membro da Comissão Nacional da Mulher Advogada, então hoje conseguimos resolver de forma muito rápida. E estamos realizando várias medidas de apoio à jovem advogada.
CC: Quais?
DT: A estatística pior para mim é que 30% das mulheres desistem da advocacia com cinco anos de formada. Pesquisamos e o motivo é a gravidez. Não é o filho, porque ela tem uma rede de apoio de pai, mãe, creche, marido. Filho tem quem ajude. Como ela faz com a gravidez? Ela não tem salvação. E desiste da advocacia. Aqui em Brasília, se você pesquisar, tem uma advogada, a Alessandra. Seu parto estava marcado para segunda e a audiência marcada para quarta em um processo que tem 11 anos e estava parado há três. Ela pediu adiamento e o juiz indeferiu. Ele falou que não, que se ela não tinha condições de fazer, que passasse para outro.
Nós fizemos o maior desagravo da história, colocamos 400 advogados na porta do juiz para dizer que aquilo era um absurdo e feria a dignidade humana daquela advogada. A nossa Constituição é a única do mundo que fala que a criança é prioridade absoluta e o que ela leva ali é uma criança, não uma barriga. E tivemos muita repercussão. O CNJ concordou conosco, disse que o juiz estava errado, mas o tribunal de justiça do DF nunca fez nada para dar um primeiro passo. De lá para cá, desde fevereiro, nunca mais tivemos casos de juiz que não tenha adiado a audiência de uma advogada grávida.
Nós fizemos um projeto de lei que acabou de ser aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e foi para o Senado e está aguardando relatoria. Foi na sexta-feira para o Senado. Na Câmara aprovamos na CCJ esse projeto de lei que dá 30 dias de suspensão do prazo para a advogada gestante. Temos muita esperança de aprovar esse projeto no Senado e já vai resolver muito a situação das grávidas. E há pequenos detalhes: o PL proíbe a advogada de passar pelo raio-x, dá vagas preferenciais no estacionamento, dá atendimento preferencial caso ela vá fazer uma sustentação oral.
CC: Na sua atuação profissional, que tipo de entrave você sofreu e que tipo de mudanças você vê do dia que você começou até agora?
DT: Eu sempre trabalhei em escritórios grandes de São Paulo e sempre ganhei menos do que os homens sócios. E é silencioso isso. Toda mulher ganha menos e ninguém te explica porque: você produz igual e é sócia igual, mas ganha menos. Mas a maior dificuldade que eu tive foi na gravidez.
Eu era da OAB, fui fazer uma sustentação oral no Conselho Nacional de Justiça com o ministro Joaquim Barbosa. Pedi para que o meu processo fosse chamado antes e ele indeferiu, dizendo que não havia precedente legal. Um advogado chegou a ir para a tribuna dizendo que daria a vez para mim e o ministro, sempre de forma muito grosseira, chegou a dizer que quem mandava era ele e disse que não, que o meu direito individual não se sobrepunha ao direito público da pauta. Que a pauta seria cumprida e que se eu não podia esperar, que eu fosse embora.
Eu fique lá das oito da manhã às cinco da tarde, sem comer, sem beber, nervosa e saí de lá direto para o hospital. Fiquei 15 dias internada e não consegui segurar o bebê. Minha bebezinha nasceu com 29 semanas e ficou 61 dias na UTI. Quando foi divulgado o caso, eu passei a receber denúncias do Brasil inteiro e isso acontecia todos os dias com as advogadas.
Foi quando eu mandei pesquisar a relação entre a gravidez e o abandono da advocacia e vi que era real, de cada 10, três vão embora. Por esse desrespeito. E é tão simples de corrigir, mas que não podemos esperar pelo bom senso. O bom senso não existe, se existisse não precisava de Código Penal, do Código Civil. Por isso que a gente leva esse projeto de lei adiante – ele para mim é um filho. Para mim é uma meta de vida aprovar esse projeto.
Carta Capital
CartaCapital: Qual é o principal desafio da Justiça brasileira hoje no enfrentamento à violência contra a mulher?
Daniela Teixeira: A violência contra a mulher é principalmente doméstica. Isso nos cria uma dificuldade muito grande de enfrentamento, porque não adianta colocar a polícia na rua se a violência ocorre na intimidade dessa mulher, em casa ou onde ela trabalha. Para enfrentar a violência doméstica, não temos outro caminho, não tem fórmula mágica. Precisamos educar os nossos jovens: a mulher para não aceitar apanhar, o homem para não bater e as pessoas para denunciar. É muito importante fazer sempre campanhas de esclarecimento.
A polícia não vai nos ajudar em nada, infelizmente, com relação à violência contra a mulher.Das mortes de mulheres, 7 em cada 10 são muito fáceis de serem solucionados, porque é o ex-companheiro que comete esse homicídio. Veja que é um quadro totalmente diferente do homem. O homem é morto na violência do asfalto, na briga de bar, na violência urbana. Vamos conseguir mudar isso com a a educação e com a punição exemplar desses homens agressores.
CC: Por que a punição é importante?
DT: É preciso ficar claro que eles serão punidos, porque é isso que faz com o que o seu colega de trabalho, de bar, de futebol, pense duas vezes antes de agredir uma mulher. Por isso insistimos muito na punição do agressor. O agressor que não é denunciado ou punido é um exemplo para os outros homens de que eles vão conseguir sair impunes. É muito importante que seja feita a denúncia e que ele seja processado e julgado. Essa foi a grande inovação da Lei Maria da Penha.
CC: Que inovações a legislação trouxe?
DT: Antes, a gente tinha uma legislação comum que tratava de violência. Era assim: João dá um tapa em José. Um tapa é só um tapa, todo mundo vê, fala para deixar disso, não vai para a delegacia.
Mas se João dá um tapa na mulher dele, na namorada ou na ex-namorada, a chance de isso aumentar é muito grande. Hoje é um tapa, amanhã é um murro, depois de amanhã é um soco e isso vai evoluir provavelmente para uma tentativa de homicídio. A grande evolução da Lei Maria da Penha foi tornar esse tapa não um tapa em Maria, mas um crime contra a dignidade humana, é uma violência contra o gênero mulher.
Independentemente de Maria querer ou não denunciar seu marido, o Estado passou a prosseguir com a ação penal. Estamos dizendo, com essa lei, que completou 10 anos no mês passado, que o Estado brasileiro não permite mais que as mulheres apanhem. E as nossas estatísticas são horríveis. O Brasil é o quinto país com o maior número de violência doméstica contra a mulher.
Então, realmente, é um assunto que precisa ser discutido, debatido e falado. Os maiores índice de violência contra a mulher no Brasil são no Espírito Santo, Alagoas, Piauí e Paraná. Isso mostra que as mulheres apanham muito, de norte a sul do Brasil.
CC: Além das estatísticas, estamos vivendo um momento em que inclusive políticos se sentem empoderados em falar ou incitar a violência contra a mulher. Como é possível fazer essa discussão sobre a violência dentro desse contexto?
DT: É muito difícil assumir esse papel de fazer a defesa das mulheres. Porque é exatamente isso que a gente passa: uma autoridade pública se sente confortável para, numa sessão do Parlamento que discutia o estupro e medidas de combate a violência contra a mulher, para gritar, falar palavras de baixo calão, colocar a mão na cara de uma mulher.
Aquilo é um retrato do que acontece no Brasil: pessoas ainda vivendo no século passado e achando que podem fazer esses atos de violência contra a mulher. É contra tudo isso que estamos tentando uma outra alternativa. Eu costumo sempre falar que estamos vivendo o que os historiadores já estão chamando de primavera feminina, que nós somos um exército anônimo.
Quem é Daniela Teixeira? Eu não sou ninguém e nem quero ser ninguém, mas trago dentro de mim todos os sonhos do mundo. Sou eu e milhares de mulheres. Temos hoje milhares de mulheres fazendo essa revolução silenciosa do “basta”. Eu não vou apanhar e não vou permitir que a minha filha apanhe, minha mãe apanhe ou minha colega apanhe.
As denúncias aumentam a cada dia por isso. É essa conscientização da mulher que é sujeito de Direito. Ele não pode bater nela porque o bife está mal passado, porque ela está de saia, porque terminou o namoro – ela não pode apanhar. E nós estamos conseguindo mudar essa percepção.
Eu tenho 44 anos. Se você pegar uma geração anterior à minha, ainda viam com uma certa normalidade. Hoje, eu não imagino dizendo isso para a minha filha. Se a minha estagiária, de 20 anos, chegar aqui de olho roxo, vou tomar uma providência imediatamente. Jamais diria para ela que isso é normal.
CC: Como sociedade, estamos discutindo a violência contra a mulher da maneira adequada ou com a ênfase que seria necessária?
DT: Acho que existe hoje espaço para discutir e se opor a essa violência. As vozes do atraso sempre vão existir, em qualquer assunto, mas eu tenho essa esperança de que está bem encaminhado. As pessoas estão abertas a entender. Não é uma ideologia de gênero, essa pauta não é da esquerda ou da direita, de rico ou de pobre, de branco ou de negro, as mulheres brasileiras apanham em todas as classes sociais. Acho que existe esse consenso de que é preciso mudar.
CC: A Lei Maria da Penha contribuiu para diminuir em cerca de 10% a taxa de homicídio contra mulheres dentro de casa. Atualmente, a lei pode sofrer modificações. O ponto mais polêmico é a introdução do artigo 12-B, que confere à autoridade policial o poder de conceder ou não as medidas protetivas de urgência – competência que hoje é exclusiva do Poder Judiciário. Como a senhora analisa essas possibilidades de mudança?
DT: Eu sou vice-presidente da OAB-DF e nós somos radicalmente contra a mudança. Primeiro porque a Maria da Penha deu certo, qualquer pessoa hoje no Brasil conhece e sabe que existe. Não há motivo para mudá-la. Segundo, entendemos que a autoridade que pode restringir o direito, qualquer direito, é sempre o juiz, não um delegado. Não é verdade que o delegado está querendo isso para proteger a mulher. Ele quer poder. Ele vai começar protegendo a mulher e vai terminar concedendo medidas restritivas para o ladrão comum.
E a lei funciona. Se a mulher vai na delegacia especializada e pede a medida protetiva, o juiz dá e que funciona muito bem. Na nossa opinião, conceder um poder de restrição de direito a um delegado é uma via de mão dupla. Porque quem disse que ele vai dar? Eu presumo o contrário, que ele não vai dar. Que você vai pedir e o delegado vai fazer corpo mole e dizer para deixar disso. Nós vamos voltar ao que era antes, porque as mulheres sempre foram agredidas e o delegado sempre disse “deixa disso”.
A Lei Maria da Penha não trata só da questão penal, apenas 12% de seus artigos tratam da questão penal. Os outros todos são de prevenção à violência doméstica. Não é para tratar de quem já fez, mas sim para prevenir. A volta a esse sistema policialesco, da delegacia e do delegado, não traz nenhum benefício para nós. Pelo contrário, traz um risco de a mulher comparecer à delegacia e o delegado não fazer nada e ela ficar impossibilitada de pedir uma medida restritiva de direitos ao juiz, que é quem, no nosso sistema, pode pedir essa restrição.
Enxergamos isso como uma briga entre o delegado, o juiz e o promotor, na qual a última pessoa que está importando é a mulher, tanto é que foi a última a ser ouvida. Nenhum movimento de mulher foi ouvido, a OAB não foi ouvida. Ninguém que trabalha com isso foi ouvido. Aí você vê a associação dos magistrados contra e a dos delegados a favor e vai ganhar quem fizer mais força no Congresso.
Nós entendemos que isso não resolve. Era assim antes e não funcionava. Só passou a funcionar com as delegacias especializadas da mulher, as varas de enfrentamento à violência doméstica, com a estrutura do Fórum.
CC: Há hoje redes de advogadas e juristas formadas apenas por mulheres. Qual é a importância de se discutir questões feministas dentro do mundo do Direito, um espaço ainda muito machista?
DT: É muito importante. Eu faço parte de vários grupos, o que eu mais gosto é o Mais Mulheres no Direito. Nós temos especialistas de todas as áreas, juízas, promotoras, advogadas, nesta tentativa de trazer o olhar feminino para todas as áreas do Direito. Na advocacia já somos maioria, até 25 anos somos 60% das OABs, aí a medida que vai envelhecendo cai, mas no nacional já somos 52% de mulheres.
Somos maioria e eu não aceito ser tratada como minoria. Eu respeito as minorias, trabalho por ela, mas particularmente, nesse caso, as mulheres são maioria. Então é muito importante que a gente esteja sempre divulgando esse trabalho de mais mulheres no Direito. É importante que a gente dê visibilidade para isso.
CC: Essa tomada de espaço de poder dentro das esferas maiores do Direito, como a ministra Carmen Lúcia na presidência do STF, o que isso representa para uma jovem advogada?
DT: Muito, é exatamente olhar para cima e ver hoje que as duas maiores autoridades do Judiciário são mulheres. É a presidente da Suprema Corte, a Carmen Lucia, e a advogada-geral da União, [Grace Maria Fernandes Mendonça] mulheres comprometidas com essa pauta feminina. A ministra Carmen foi a primeira mulher a entrar de calça no STF.
É muito interessante, naquele dia o fato de ela ter entrado de calça comprida foi notícia em todos os jornais e revistas brasileiras. Parece que a gente mora na Arábia. Eu faço muitas palestras e levo prints desse dia de notícias. É surreal ter uma notícia dessas na capa dos principais jornais. Uma mulher entrar de calça no STF é notícia. Você vê que ela fez aquilo para provocar e dizer “olhar, eu vou de calça, não tem cabimento”.
A ministra Carmen é uma libertária, é uma amante das ideias feministas. Acho que vai ser muito bom tê-la como presidente do STF porque ela vai enfrentar essa pauta. No seu primeiro dia como presidente ela já disse que as mulheres sofrem preconceito sim. Eu imagino exatamente isso: uma jovem bacharel em Direito que está começando agora, tem em quem se inspirar, o céu é o limite agora.
Deixou de ser um universo totalmente masculino. Acho que é inspirador. É um caminho mais fácil do que para mim. Quando eu estava me formando eram 11 ministros homens. Então veja, está melhorando, em passos de formiga, mas está.
CC: Com relação à OAB-DF, que medidas vocês estão tomando para trazer visibilidade para a pauta da mulher quanto ocupar esses lugares de poder?
DT: Muitas. O ano de 2016 foi declarado o ano nacional da mulher advogada. Nós criamos o Plano Nacional da Mulher Advogada e comissões da mulher em todos os 27 estados, queremos criar essas comissões até o final do ano em todas as sub-sessões do Brasil. Então nos deu uma capilaridade imensa, eu sou membro da Comissão Nacional da Mulher Advogada, então hoje conseguimos resolver de forma muito rápida. E estamos realizando várias medidas de apoio à jovem advogada.
CC: Quais?
DT: A estatística pior para mim é que 30% das mulheres desistem da advocacia com cinco anos de formada. Pesquisamos e o motivo é a gravidez. Não é o filho, porque ela tem uma rede de apoio de pai, mãe, creche, marido. Filho tem quem ajude. Como ela faz com a gravidez? Ela não tem salvação. E desiste da advocacia. Aqui em Brasília, se você pesquisar, tem uma advogada, a Alessandra. Seu parto estava marcado para segunda e a audiência marcada para quarta em um processo que tem 11 anos e estava parado há três. Ela pediu adiamento e o juiz indeferiu. Ele falou que não, que se ela não tinha condições de fazer, que passasse para outro.
Nós fizemos o maior desagravo da história, colocamos 400 advogados na porta do juiz para dizer que aquilo era um absurdo e feria a dignidade humana daquela advogada. A nossa Constituição é a única do mundo que fala que a criança é prioridade absoluta e o que ela leva ali é uma criança, não uma barriga. E tivemos muita repercussão. O CNJ concordou conosco, disse que o juiz estava errado, mas o tribunal de justiça do DF nunca fez nada para dar um primeiro passo. De lá para cá, desde fevereiro, nunca mais tivemos casos de juiz que não tenha adiado a audiência de uma advogada grávida.
Nós fizemos um projeto de lei que acabou de ser aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e foi para o Senado e está aguardando relatoria. Foi na sexta-feira para o Senado. Na Câmara aprovamos na CCJ esse projeto de lei que dá 30 dias de suspensão do prazo para a advogada gestante. Temos muita esperança de aprovar esse projeto no Senado e já vai resolver muito a situação das grávidas. E há pequenos detalhes: o PL proíbe a advogada de passar pelo raio-x, dá vagas preferenciais no estacionamento, dá atendimento preferencial caso ela vá fazer uma sustentação oral.
CC: Na sua atuação profissional, que tipo de entrave você sofreu e que tipo de mudanças você vê do dia que você começou até agora?
DT: Eu sempre trabalhei em escritórios grandes de São Paulo e sempre ganhei menos do que os homens sócios. E é silencioso isso. Toda mulher ganha menos e ninguém te explica porque: você produz igual e é sócia igual, mas ganha menos. Mas a maior dificuldade que eu tive foi na gravidez.
Eu era da OAB, fui fazer uma sustentação oral no Conselho Nacional de Justiça com o ministro Joaquim Barbosa. Pedi para que o meu processo fosse chamado antes e ele indeferiu, dizendo que não havia precedente legal. Um advogado chegou a ir para a tribuna dizendo que daria a vez para mim e o ministro, sempre de forma muito grosseira, chegou a dizer que quem mandava era ele e disse que não, que o meu direito individual não se sobrepunha ao direito público da pauta. Que a pauta seria cumprida e que se eu não podia esperar, que eu fosse embora.
Eu fique lá das oito da manhã às cinco da tarde, sem comer, sem beber, nervosa e saí de lá direto para o hospital. Fiquei 15 dias internada e não consegui segurar o bebê. Minha bebezinha nasceu com 29 semanas e ficou 61 dias na UTI. Quando foi divulgado o caso, eu passei a receber denúncias do Brasil inteiro e isso acontecia todos os dias com as advogadas.
Foi quando eu mandei pesquisar a relação entre a gravidez e o abandono da advocacia e vi que era real, de cada 10, três vão embora. Por esse desrespeito. E é tão simples de corrigir, mas que não podemos esperar pelo bom senso. O bom senso não existe, se existisse não precisava de Código Penal, do Código Civil. Por isso que a gente leva esse projeto de lei adiante – ele para mim é um filho. Para mim é uma meta de vida aprovar esse projeto.
Carta Capital
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