sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Coleção sobre antiprincesas e antiheróis ajuda a desconstruir estereótipos de gênero em sala de aula

Livros resgatam personagens latino-americanas como Frida Kahlo, Violeta Parra e Clarice Lispector
 

Frida Kahlo era manca, dedicou-se às artes e tornou-se um ícone da pintura mexicana. Violeta Parra preferiu a vida artística à doméstica e fez história na música chilena. Juana Azurduy comandou tropas em lutas independentistas do Alto Peru no início do século XIX. Clarice Lispector “abandonou uma vida de princesa” ao lado do marido diplomata e escreveu importantes obras da literatura brasileira. Julio Cortázar foi um renomado escritor argentino, e Eduardo Galeano retratou injustiças no continente.

Nenhum desses grandes nomes se encaixa nas idealizações de gênero com as quais crianças são bombardeadas desde cedo pela literatura infantil. Notórios por seus talentos e lutas, os protagonistas da coleção Antiprincesas e Antiheróis, da editora argentina Chirimbote, são latino-americanos e se contrapõem ao estereótipo feminino de princesa e masculino de superpoderes.

No Brasil desde o fim do ano passado pelas mãos da distribuidora Sur Livro e vendidos também em países como Colômbia, Uruguai, Chile e Bolívia, os livros foram bem recebidos não somente por pais e mães, mas também por professores que viram neles potencial para fomentar discussão e dar início a uma mudança de mentalidade em relação às construções sociais comumente transmitidas às crianças.

Na Escola Primária Nº 8 Atahualpa Yupanqui, em San Vicente, na província de Buenos Aires, os livros estão sendo usados com alunos da primeira à sexta série. “O que mais nos interessava era o conteúdo sobre mulheres de verdade, que não precisaram de ninguém que as salvasse. Queríamos romper com os estereótipos que temos hoje em dia nas escolas, muito refletido na violência entre meninos e meninas”, explica Julieta Alonso, professora de dança.

Os livros são aproveitados de forma interdisciplinar, inclusive por professores de áreas artísticas. “Achamos importante trabalhar desde cedo com a percepção corporal dos alunos, com o que as mulheres podem fazer com seus corpos e não simplesmente ficar em casa, esperando um príncipe vir salvá-las”, conta.

Um dos trabalhos com o livro de Juana Azurduy, por exemplo, é os alunos imaginarem como a guerreira se desenvolvia em um campo de batalha. “Eu disse: vamos representar o que ela faria, como cuidaria dos seus filhos [em meio ao conflito]. Eles têm uma base técnica de movimentos e, com música e imaginação, montaram uma sequência coreográfica e dançaram uma batalha”, lembra.

A socióloga argentina Trinidad Haedo, por sua vez, utilizou o da pintora mexicana Frida Kahlo na disciplina Ética, Direitos Humanos e Construção da Cidadania na Educação Primária do professorado da Escola Normal Superior N°1, de Buenos Aires, para trabalhar “a desnaturalização das etiquetas, estereótipos, generalizações e sentido comum”. Para isso, levou também uma entrevista com a autora publicada em um site, para discutir, com docentes em formação, objetivos e possíveis repercussões desse tipo de obra infantil centrada em mulheres lutadoras e revolucionárias.

Os livros trazem desenhos do ilustrador Pitu Saá, são diagramados por Martín Azcurra e contam com páginas de atividades que dialogam com a história ou obra da antiprincesa ou antiherói retratado. Mas, segundo a autora Nadia Fink, a coleção não foi idealizada como algo puramente educativo: “Pensamos mais em gerar histórias de mulheres reais para pais e mães terem a possibilidade de aproximar outro material às crianças”, explica.

A repercussão da proposta surpreendeu. “Não imaginamos nunca gerar esse movimento. Evidentemente a sociedade estava esperando algo para ocupar um espaço neste momento em que a questão de gênero, o repensar estereótipos e a violência contra as mulheres estão tão em evidência”, completa.

De fato, o caso recente de estupro coletivo de uma adolescente no Rio Janeiro fez com que o docente Leonardo Rocha de Almeida aproveitasse a aquisição do livro sobre a artista chilena Violeta Parra para abordar a questão de gênero com seus alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Senador Alberto Pasqualini, de Porto Alegre. “Eu não podia deixar passar em branco o que aconteceu”, explica.

Com seus alunos de 7 a 8 anos, o gaúcho contou a história da artista, identificou a localização do Chile em um globo terrestre e ressaltou a passagem em que o marido de Violeta pede que ela escolha entre a arte ou ele, que a queria em casa. A cantora decide cuidar dos filhos sem abandonar a arte. “Eu disse a eles: é muito legal ela ter escolhido ficar com a arte, mas se ela tivesse ficado com ele, tudo bem. Ela tem que poder escolher”, explica. A aula foi complementada com análise das letras do nome Violeta em comparação com as de seu instrumento, violão, e de seu apelido, Viola. A cultura popular também foi abordada, já que a artista percorreu seu país resgatando canções.

Com o livro de Frida, Almeida estimulou que os alunos fizessem autorretratos. “Trabalhei com eles a questão da identidade, de que origem e cor eram. Eles sempre se pintavam de rosa, então usamos um espelho para que vissem a si mesmos e aos colegas”, conta. O acidente que a deixou manca foi abordado para tratar diferenças: “Eu uso óculos porque não enxergo bem, Frida precisava de uma bengala porque tinha uma perna menor que a outra e tem gente que não tem um braço. Cada pessoa é diferente”, diz sobre a abordagem.

Marcelo Duvidovich, dono da Sur Livro, diz que as versões em português de Frida Kahlo e Violeta Parra ultrapassaram 7 mil exemplares vendidos e que mesmo as edições em espanhol tiveram boa recepção. “A coleção traz toques do que é autoritarismo e ditadura, que não são fáceis de transmitir, de forma leve. Os professores adoram isso, porque podem trabalhar não só a leitura, mas também a temática”, explica. “Quanto mais surgem histórias de violação de direitos das mulheres, mais vem à tona a importância deste tipo de obra.”

Os próximos personagens reais da coleção serão a antiprincesa Gilda, cantora de cumbia argentina, e o antiherói será Ernesto “Che” Guevara. No Brasil, os livros de Frida Kahlo e de Violeta Parra estão à venda em português. A previsão é que os próximos lançamentos sejam a obra sobre Clarice Lispector em julho e a sobre Eduardo Galeano mais adiante.

Carta Capital

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