terça-feira, 5 de setembro de 2017

Amar (e viver) até os 90

A capacidade de amar, em qualquer idade, expressa e reforça a opção por viver

IVAN MARTINS
30/08/2017

Conheci no fim de semana um cara de quase 90 anos que anda pelo mundo com a disposição de um adolescente. Ele sai de casa todos os dias, trabalha, frequenta bares e restaurantes, vai a shows, discute arte e ainda faz piada sobre a fragilidade de sua saúde. De um jeito delicado e espirituoso, flerta com mulheres 50 anos mais jovens do que ele, e elas adoram. Parece, sob vários pontos de vista, um homem invejável.

Como eu tenho intenção de viver muito – e gostaria de chegar aos 90 sorrindo –, fiquei pensando sobre o que distingue esse ancião jovial de tantos outros (e tantas outras) que morreram antes dele, ou que experimentam, com a mesma idade, simulacros tristonhos de existência.


Concluí que a primeira diferença em favor dele é a saúde. Embora tome comprimidos todos os dias, e tenha até sofrido um micro AVC, ele se move, fala e pensa como alguém muito mais jovem. O essencial de seu corpo e de sua mente está preservado, não obstante o vinho, o uísque e as pratadas. Sua genética deve ser boa e animada por um espírito guerreiro. Se a mão esquerda treme ao segurar o garfo, ou o olho direito enxerga apenas metade da cena, azar deles – a conversa continuará, animada, porque ela é mais importante do que as pequenas perturbações fisiológicas.

Há nele, para além do vigor físico, algo que eu chamaria de vontade de viver. Ela se expressa muito claramente nos olhos que brilham quando ele ouve uma história, ou no entusiasmo com que conta uma velha lembrança. Um ser humano interessado na vida e nas pessoas tem dentro de si uma chama essencial. Como qualquer um, deve ter momentos de melancolia e desesperança, mas isso não impede que se alegre ao celebrar a vida, comendo e bebendo em companhia de amigos.

Sei que ele não é um cara rico, mas é evidente que tem dinheiro suficiente para sustentar um estilo de vida prazeroso, que o põe em contato com muita gente interessante. Dinheiro faz diferença no início da vida e pode determinar o tom do seu final. Talvez ele fosse o mesmo cara se fizesse fila nos hospitais abandonados do SUS e sua única diversão fosse jogar dominó com os amigos, mas eu duvido.

Está claro para mim que ele é um homem romântico. Vários casamentos, vários filhos – o último deles nasceu quando ele tinha 60 anos – sugerem uma biografia repleta de amores, e isso sempre faz bem. A capacidade de se apaixonar, em qualquer idade, expressa (e depois alimenta) uma opção muito clara por viver. O desejo, alguém já disse, é o feitiço que mantém a morte longe. 

Enquanto comíamos, ele me contou que teve de procurar um psiquiatra, faz pouco tempo, porque levou um pé na bunda que o deixou desnorteado. Achei lindo. Numa idade em que a maioria das pessoas não tem mais ilusões, ele sofre desilusões amorosas que o deixam prostrado. Deve doer, mas, como dizia aquela música do Peninha, é melhor que caminhar vazio.

É evidente, quando se fala com ele, que não se trata de um homem grave ou angustiado. Parece ter atravessado a juventude e a maturidade da forma como atravessa a velhice, de maneira leve e despreocupada. Vive bem um dia depois do outro, há muitos anos, e tem sorte que o estoque de dias não tenha se esgotado.

O outro lado dessa leveza é certo alheamento ao que eu chamo de realidade. A notícia de que Michel Temer abriu às mineradoras uma área de reserva amazônica do tamanho da Suíça não estragaria seu almoço, assim como o pedido de prisão para um grupo de secundaristas cujo único crime foi pretender protestar contra o impeachment não atrapalharia seu jantar. Ele não perderá minutos preciosos de vida se amargurando com as injustiças e a degradação moral e cívica do Brasil. Seu mundo é outro, mais elegante e protegido.

Tendo pensado isso tudo sobre o Joca – não é seu nome de verdade, mas proponho que o chamemos assim –, percebo que a fórmula de longevidade dele é irreproduzível. Quem sabe ao certo sobre a própria genética? Quem é capaz de garantir seu interesse pela vida quando a memória falhar e as juntas começarem a doer? É possível trabalhar como um louco e, com sorte, ter algum dinheiro na velhice, mas então a vida não terá sido despreocupada e leve como a dele – com os amigos artistas, com a mesma jovialidade. Mesmo o amor, essa coisa que nos enche a vida de frescor inesgotável, e que a meu ver tem um papel essencial na vitalidade dele, como se faz para obtê-lo? Ou melhor: como se faz para continuar amando quando as desilusões, as tristezas e as perdas se acumularem dentro de nós? Eu não tenho resposta para nada disso.

Concluo, portanto, que o Joca é único e inimitável, e que cada um de nós tem de achar seu próprio jeito de viver feliz até os 90, se for esse o caso. Muitos preferirão uma chama existencial intensa e breve, e estará perfeito. Outros se fecharão na casmurrice da velhice como num casulo, reclamando o direito de ser deixado em paz, e terá sido a escolha deles. Não há fórmula, não há regra. Há uma vida única para cada um de nós, a ser vivida de acordo com os nossos exemplos e com as nossas possibilidades. O Joca está vivendo a vida dele intensamente, aos 90 anos. Só nos resta fazer o mesmo, aos 20, aos 30, aos 60.

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