sábado, 2 de setembro de 2017

Como um caso de assédio sexual no transporte público expôs como a Lei trata as mulheres



Na última terça-feira (29), Diego Ferreira de Novais foi preso em flagrante após ejacular em uma mulher dentro de um ônibus em São Paulo


Ana Beatriz Rosa

Repórter de Vozes, Mulheres e Notícias, HuffPost Brasil

01/09/2017

"Entendo que não houve o constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco de ônibus quando foi surpreendida pela ejaculação do indiciado."



Na última terça-feira (29), Diego Ferreira de Novais foi preso em flagrante após ejacular em uma mulher dentro de um ônibus que passava pela avenida Paulista, em São Paulo.
Nesta sexta-feira (1), outra vítima do agressor contou à Folha que reconheceu Novais. A jovem afirmou à polícia que o mesmo homem havia encostado o pênis em seu braço, também no transporte público.
Um levantamento do jornal junto à Polícia Civil mostrou que o homem já foi acusado ao menos 16 vezes por crimes sexuais. O primeiro teria ocorrido em 2009, quando ele mostrou o seu pênis para uma mulher em um ônibus na Lapa. Só este ano, ele já foi denunciado cinco vezes pelo mesmo tipo de ação.
Porém, após audiência de custódia realizada na quarta (30), Novais foi liberado pela Justiça. Em sua decisão, o juiz José Eugênio do Amaral Souza Neto entendeu que "não houve constrangimento ou violência". O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) considerou a prisão desnecessária e o crime de menor potencial ofensivo.
Souza Neto, contudo, determinou que o ato era "bastante grave" e, levando em conta o histórico de passagens anteriores de Novais pela polícia, entendeu que o sistema penal não seria adequado. O caso foi então enquadrado como "contravenção penal" e foi indicado que o homem precisaria de tratamentos psicológicos e psiquiátricos.
O artigo 61 da Lei das Contravenções Penais foi publicado em 1941 por Getúlio Vargas. A norma prevê uma multa que deveria ser paga em uma moeda que sequer existe mais.Como diz o texto, "importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor" levaria a uma cobrança de duzentos mil réis a dois contos de réis.
A decisão do juiz reascendeu o debate sobre a violência contra a mulher no País e, por consequência, levantou algumas perguntas: O que é considerado estupro no Brasil? Quem é responsável por identificar as situações em que houve violência? Como a vítima é compreendida em casos de violência contra a mulher?


AFP/GETTY IMAGES

Estupro no Brasil

As respostas para estas perguntas são complexas. Isto, porque, a atitude do juiz do TJ-SP não é algo que pode ser facilmente lido apenas em casos individuais. A decisão faz parte de um sistema que, por muito tempo, se negou a enxergar violências reais, mas invisibilizadas.
Em entrevista ao UOL, a advogada Fernanda Castro Fernandes especialista em violência contra mulher, explicou que a ejaculação não poderia ser considerada estupro, de acordo com o nosso Código Penal.
"É chocante, é machista e agride a mulher moralmente e psicologicamente, mas não tem uma resposta na legislação que dê conta disso."
O artigo 213 do Código Penal determina que estupro é constranger alguém a manter conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso mediante violência ou grave ameaça. Ao crime são previstas penas de reclusão de até 10 anos. O tempo pode triplicar em caso de morte da vítima.
E é devido a formulação desta lei que há obstáculos na interpretação da violência que não é física. Para Silvia Pimentel, integrante do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher da ONU, é preciso que a sociedade faça uma discussão jurídica a respeito do artigo.
"O juiz considerou que era uma mera contravenção penal porque ele não consegue entender que existiu um constrangimento mediante violência. Isso porque ele só consegue entender como violência a violência física. Mas existe a violência simbólica, moral, psicológica de um ato como esse. É interessante que se abra na sociedade um debate jurídico a respeito de verificar que o artigo 213 (da lei do estupro) pode ser legitimamente interpretado e aplicado quando, independente de violência física, exista outra violência como essas", argumentou em entrevista à BBC.
Uma decisão de 2009 alterou o artigo 213 do Código Penal, a partir da lei 12.015.Dentre as alterações, está a própria adequação do crime, que deixou de ser lido como um atentado contra os costumes ("crimes contra os costumes") e passou a ser considerado crime contra a dignidade sexual e uma violação à liberdade sexual.
Assim, o estupro deixou de ter como vítima a sociedade e seus costumes e passou a enxergar o ser humano (mulher e homem) como aquele que tem seu corpo, sua dignidade e sua liberdade sexual ofendidas.
Apesar de ter sido considerado um avanço pelos movimentos em defesa dos direitos das mulheres, a mudança teve impactos que, no caso da ejaculação no transporte público, são vistos como problemas para alguns juristas.
"(Essa equiparação) gera um vazio jurídico muito forte. Essa conduta do ônibus é reprovável. Eu só tenho um pouco de dificuldade de aceitar que ela venha a ser equiparável a um estupro 'tradicional'. Ela mereceria uma graduação um pouco menor do que alguém que é forçado à conjunção carnal. Uma apalpada não desejada pode ser equiparada proporcionalmente a uma situação de violência invasiva de estupro? Um beijo forçado, por mais reprovado que ele seja, não invasivo da mesma forma que um estupro no sentido tradicional", avalia o advogado penas Renato de Mello Jorge Silveira à BBC.
Maíra Zapater é doutora em direitos humanos e chama atenção para um detalhe de interpretação da lei. De acordo com ela, "constranger" teria o significado de "obrigar" e não "envergonhar".
"O emprego do constrangimento na lei tem significado de obrigar, não de deixar a pessoa envergonhada. Ainda mais nesse sentido, acho que não tem como dizer que a vítima não foi constrangida, que ela não tenha sido obrigada a levar um jato de esperma no pescoço. No meu entender, o caso configura estupro", explicou em entrevista ao site Nexo.


NURPHOTO VIA GETTY IMAGES

Cansadas da impunidade e os obstáculos até a denúncia
Em casos como o ocorrido na última semana na capital paulista, é comum que a primeira reação da população seja pela punição violenta do homem flagrado.
Porém, a indignação imediata não é suficiente para transformar questões mais estruturais do País.
O cobrador do ônibus da linha municipal de São Paulo, Bruno Vieira Costa, presenciou toda a cena. Em entrevista à Jovem Pan, ele afirmou que os passageiros, ao se darem conta do ocorrido, queriam espancar o homem que estava tentando fugir. Porém, Costa pediu que o motorista não abrisse as portas do veículo e tentou controlar os passageiros até a chegada da polícia.
"Não deixei ele sair do carro, foi quando peguei minha blusa para ela se limpar. E uma moça ligou para a polícia, encontramos o policial do outro lado da rua. Mas a gente não deixou ele descer, não poderíamos deixar as outras pessoas baterem nele. Aqui ninguém é carrasco de ninguém. Seria pior. O que eu pensei foi em chamar a polícia para que ninguém mais se sujasse com esse ato que ele cometeu. Violência só gera violência", explicou o cobrador a rádio Jovem Pan.
Apenas 36% dos crimes contra mulheres entre março de 2015, data de promulgação da Lei do Feminicídio, e dezembro de 2016, classificam a violência contra a mulher pela sua condição de gênero.
O número é um dado preliminar da pesquisa Feminicídio como violência política, do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Mulher (Nepem) da Universidade de Brasília.
"Apesar da obrigatoriedade da lei, a partir de 9 de março de 2015 e de constar no Código Penal Brasileiro, a maioria dos casos continua sendo registrada como crime passional, o que contribui para a impunidade do crime de feminicídio e para a continuidade dos elevados índices de violência contra as mulheres no Brasil", afirma a professora Lourdes Maria Bandeira, do Departamento de Sociologia da UnB e coordenadora da pesquisa em entrevista ao HuffPost Brasil.
A juíza e professora do grupo Direito, Gênero e Identidade (FGV/SP) Camila de Jesus Mello Gonçalves explica que a situação das estatísticas oficiais sobre violência contra a mulher é bem mais complexa e não se limita a quantas pessoas são denunciadas ou condenadas no País.
"Muitas vezes a mulher chega na audiência e fala que não lembra o que aconteceu. Ela quer proteger o acusado. Você pode constranger essa mulher e dizer que ela está mentindo, já que tinha feito a denúncia na delegacia. Essa mulher pode vir até a ser processada. Porém o grupo do Ministério Público tem uma orientação de não processar as mulheres nesse caso. A gente acaba acolhendo esse discurso que revela que ela está em uma situação muito difícil. É preciso acolher essa mulher e empodera-la", analisa.
Porém, esse acolhimento muitas vezes vai gerar uma absolvição do réu simplesmente porque não há provas contra ele, já que muitas vezes os crimes de violência acontecem em âmbito privado.
"Isso revela que há uma impunidade? Não. Revela que a gente não está conseguindo cuidar dessa mulher. O foco da proteção da mulher é na mulher. Como a gente está cuidando delas?", questiona a juíza. "A condenação tem um efeito imenso. Ela sente que o Estado está do lado dela. Mas apenas quando ela consegue encarar essa violência."

Assédio em transporte é recorrente

O assédio em transportes públicos ou privados não é novidade. Somente nesta quarta-feira (30) outro caso foi denunciado em São Paulo. Menos de vinte e quatro horas depois, outra mulher foi vítima dentro de um ônibus na capital.
Juliana de Deus também estava em um veículo que passava pela Paulista quando um homem enfiou sua mão entre os seios da mulher.
"Ele passou a mão em mim e quis parecer que eu estava louca. Estava sentada ao lado dele. Ele começou a passar a mão no meio seio e eu comecei a me ligar. 'Sai de perto, sai de perto!' As mulheres ao redor também começaram a se revoltar", relatou em entrevista ao G1.
Ainda esta semana, a hashtag #MeuMotoristaAssediador se tornou um dos termos mais comentados nas redes sociais após a escritora gaúcha Clara Averbuck denunciar um motorista do Uber por estupro.
"Fui violada de novo, violada porque sou mulher, violada porque estava vulnerável e mesmo que não estivesse poderia ter acontecido também", escreveu em seu Facebook.
Em nota à imprensa a Uber repudiou o ocorrido e informou que o motorista foi identificado e banido da empresa.
"A Uber repudia qualquer tipo de violência contra mulheres. O motorista parceiro foi banido e estamos à disposição das autoridades competentes para colaborar com as investigações. Acreditamos na importância de combater, coibir e denunciar casos de assédio e violência contra a mulher."

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