"Cassandra Rios incomodou os militares por várias razões. A principal delas é o conteúdo erótico de seus livros, contrário a 'moral e aos bons costumes', como se dizia na época", explica Rodolfo Londero, professor da Universidade Estadual de Londrina e autor do livro Pornografia e Censura: Adelaide Carraro, Cassandra Rios e o Sistema Literário Brasileiro nos anos 1970.
Nascida em 1932, em Perdizes, bairro classe média alta de São Paulo, Cassandra era pseudônimo de Odete Rios. Em 1948, aos 16 anos, publicou seu primeiro livro, A Volúpia do Pecado, uma história de amor entre duas adolescentes, se tornando a primeira autora do país de romances eróticos voltados ao universo homossexual feminino.
Nascida em 1932, em Perdizes, bairro classe média alta de São Paulo, Cassandra era pseudônimo de Odete Rios. Em 1948, aos 16 anos, publicou seu primeiro livro, A Volúpia do Pecado, uma história de amor entre duas adolescentes, se tornando a primeira autora do país de romances eróticos voltados ao universo homossexual feminino.
Na época, após ter sido rejeitado por todas as editoras de São Paulo, A Volúpia do Pecado foi publicado pela própria Odete com dinheiro emprestado pela mãe, dona Damiana, uma imigrante espanhola burguesa e católica. Sob o pseudônimo de Cassandra Rios, originalmente a sacerdotisa grega que profetizou o episódio do "cavalo de Troia", o livro de estreia fez tanto sucesso que chegou a ser reeditado nove vezes em pouco mais de dez anos.
Até que, em 1962, foi proibido e tirado de circulação por ofender os valores familiares. Entre 1964 a 1985, anos da ditadura, outras três dezenas de livros da escritora seriam proibidos.
Para Londero, mais que o conteúdo erótico e homossexual, foi a combinação de duas características perigosas aos olhos dos militares que transformaram Cassandra Rios na "escritora maldita", modo como era chamada pela ditadura: a sua sexualidade - a escritora era assumidamente lésbica - e a sua popularidade.
"Enquanto escritora, Cassandra sabia se comunicar com as classes populares", afirma o pesquisador. "Enquanto lésbica, sabemos, baseados em farta documentação, que a ditadura considerava perigosa qualquer orientação sexual que escapasse da heteronormatividade."
"A sociedade rotula o homossexual como cachaça de macumba, não como uísque", brincou a escritora em 2001, pouco antes de morrer, ao lembrar da sua trajetória.
Apesar da perseguição recorde, Cassandra Rios se tornou a primeira escritora brasileira a vender 1 milhão de exemplares, meta alcançada em 1970, superando escritores populares de sua época, como Jorge Amado, Clarice Lispector e Érico Veríssimo. Foi, ainda, o primeiro caso conhecido de uma escritora nacional a viver exclusivamente da venda de seus livros, nunca tendo exercido outra profissão.
"Mesmo censura após censura, Cassandra era persistente, continuava escrevendo", conta Londero. "No final, a própria censura ajudou a transformá-la em um mito. Mais que um xingamento, a fama de 'escritora maldita' se transformou em um rótulo lucrativo para as editoras."
Pesquisas da professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP Sandra Reimão estimam que 450 livros tenham sido censurados nos 21 anos de ditadura militar, regime que teve início no golpe de Estado de 31 de março de 1964.
Perseguida e queimada
Ainda que fosse um sucesso de vendas entre os anos 1950 a 1980 - e de popularidade, diga-se de passagem, já que personalidades como Jorge Amado e o Bandido da Luz Vermelha eram fãs declarados da escritora - Cassandra foi perseguida e tirada de circulação com tanta ferocidade pelos militares que até hoje é difícil encontrar seus mais de 50 livros em livrarias e sebos.
"Com os direitos autorais que recebia da venda dos livros, a tia Odete levava uma vida muito confortável", lembra Liz Rios, sobrinha da escritora. "Ela [a tia] tinha o apartamento em que morava, tinha uma casa em Interlagos [zona sul de São Paulo], uma chácara em Embu das Artes e alguns carros, além da própria livraria, onde ela vendia seus livros".
Com a perseguição dos censores, Cassandra foi à falência em 1976, ano em que 14 obras da escritora foram censuradas em apenas seis meses. "Ela perdeu quase tudo e teve de fechar a livraria. Lembro que ficou arrasada nessa época, sem chão", conta a sobrinha.
"Em geral, os escritores exerciam o ofício da literatura não como forma de renda, pois trabalhavam em outras atividades. Mas Cassandra era uma escritora profissional", conta Londero, explicando que a romancista foi a única escritora de sua época a viver exclusivamente da venda de seus livros no Brasil, tendo sido uma das pioneiras na profissionalização do escritor no país.
Para sobreviver, Cassandra passou a colaborar com artigos para revistas e jornais e criou um pseudônimo, Oliver Rivers, para conseguir publicar livros e equilibrar as contas.
"Engraçado que com o pseudônimo masculino, a tia Odete conseguia passar pela censura e vender os livros, igualmente eróticos. Isso comprova que a perseguição era contra a pessoa Cassandra, e não só contra sua literatura", afirma Liz, lembrando que a tia era levada pelos DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) para depor com frequência, livro após livro.
E para onde íam os livros apreendidos de Cassandra? Segundo a professora Reimão, que é autora do livro Repressão e Resistência - Censura a Livros na Ditadura Militar, provavelmente muitos foram para o fogo. Por isso, muitos livros dela estão fora de circulação.
"Na documentação censória preservada no Arquivo Nacional de Brasília, há dezenas de ofícios do governo dos militares comunicando a incineração do material apreendido", explica Reimão. "Ou seja, as centenas de livros confiscados e guardados em depósitos pela censura usualmente eram incinerados, e não só apreendidos", explica.
Aqueles que conseguiam comprar as obras proibidas de Cassandra liam os livros com receio de serem descobertos.
"Escondiam meus livros debaixo do colchão, meu nome virou palavrão!", contou a escritora em uma entrevista dada em 2001 à revista TPM.
A santa vaca
A vida de Cassandra Rios se tornou ainda mais difícil a partir de 1968, com a promulgação do Ato Institucional número 5 (AI-5), que oficializou a censura no país.
"O AI-5 dava poder ao governo de cassar mandatos, suspender direitos políticos e garantias individuais, além de censurar a divulgação da informação, a manifestação de opiniões e as produções culturais e artísticas, incluindo livros", explica Reimão.
O endurecimento da censura pelo AI-5 trouxe diversas consequências para Cassandra Rios - para além da falência. Em uma entrevista à revista Realidade, em março de 1970, a escritora revelou que a censura lhe causava abalo emocional e decepção.
"Sou uma criatura simples, comum, cheia de problemas, triste e amarga. A vida de escritora tem sido muito dura para mim", disse Cassandra.
Além do forte moralismo usado como método para barrar uma obra, Reimão conta que a censura a livros, principalmente entre 1964 a 1968, era executada na base de "batidas policiais, apreensões de exemplares, confisco e coerção física".
Além das abordagens agressivas, o escritor censurado era intimado a depor sobre sua obra.
"Era comum que os escritores fossem chamados à delegacia ainda muito cedo. Lá, tomavam um 'chá de cadeira' que durava o dia inteiro, para serem interrogados somente no final do dia. Imagine o que passava pela cabeça de um escritor censurado pela ditadura enquanto esperava essas longas horas na delegacia", acrescenta Londero. "Era uma forma sutil de tortura psicológica, de intimidação da ditadura."
"A tia Odete nunca disse isso, mas com certeza tinha medo dos militares. Ela era muito reclusa, quase não saía de casa. Acho que a perseguição da ditadura a deixou assim, reservada", opina a sobrinha. "Com certeza ela morreu decepcionada com a ditadura."
Enraivecida com a censura de suas obras e com o rótulo de pornográfica - Cassandra não gostava desse estereótipo -, a escritora publicou A Santa Vaca em 1978, uma espécie de resposta à perseguição e difamação causada pelos militares.
"Escrevi A Santa Vaca de raiva", disse a autora quando questionada se o objetivo do título do livro, que conta as fantasias eróticas por trás de uma jovem considerada boa moça, era chocar. "De tanto me perseguirem, resolvi fazer pornografia, então fiz esse livro. Na introdução, está a minha intenção, [mostrar] a força da mulher ao ser chamada de prostituta", contou Cassandra Rios.
Pornográfica igual a comunista
Ser chamada de pornográfica nos anos 1970 era tão perigoso quanto ser chamada de comunista e, em muitos casos, poderia significar a mesma coisa.
"A liberação sexual estava intimamente ligada aos movimentos contraculturais, que, por sua vez, estavam ligados ao pensamento de esquerda", explica Londero. "Por isso, aos olhos da ditadura, editoras que publicavam qualquer coisa sobre a temática de sexualidade eram verdadeiras inimigas do Estado por serem promotoras da revolução sexual entre os brasileiros, sendo consideradas pelos militares ainda mais perigosas que a própria revolução socialista".
"Uma das conclusões dos meus estudos sobre censura na década de 1970 é que não é possível separar o universo moral do político", afirma Reimão. "Isso significa que, para os censores, havia uma correlação entre a destruição dos valores morais, promovida pela temática da sexualidade, e a destruição da segurança nacional, representada pelos temas políticos."
Porém, além de não se considerar pornográfica, Cassandra não conseguia entender por que o erotismo era algo a ser combatido pelos ditadores. "Pornografia é a intenção deliberada de chocar [...] é o sexo pelo sexo. Nos meus livros, o sexo só acontece em função do amor, para realiza-lo plenamente e sem preconceitos", esclareceu a escritora na entrevista à revista Realidade.
Nos anos 1990, a escritora ganhou um programa na Rádio Bandeirantes. Durante uma entrevista ao vivo com o ex-governador paulista Adhemar de Barros, Cassandra foi convidada pelo político a concorrer às eleições de 1986, eleições que marcaram o fim da ditadura. Ela aceitou o convite e se candidatou a deputada estadual por São Paulo pelo PDT, mas não foi eleita.
"Se ela [Cassandra] se considerava uma subversiva? Talvez sim", reflete a sobrinha Liz. "O fato é que ela foi uma pioneira. Foi ela quem deu o pontapé inicial, ainda nos anos 50, para que hoje discutíssemos temas ligados ao público LGBT".
Cassandra Rios morreu em decorrência de um câncer em 2002, aos 69 anos, no Dia Internacional da Mulher, 8 de março. Ela nunca quis ter filhos e chegou a casar-se na igreja aos 18 anos, com um amigo. A união, contudo, era de fachada tanto para ele quanto para ela, que queria sair de casa sem chocar os pais.
Apesar disso, a sobrinha conta que tanto a sexualidade quanto os livros da tia, "uma mulher que era amorosa com os familiares e inteligente", são motivos de muito orgulho para a família Rios. Liz acredita que se a tia Odete ainda estivesse viva, "ela estaria chocada com o conservadorismo, principalmente na política. Os tempos atuais a fariam lembrar tudo o que sofreu na ditadura por ser lésbica".
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