segunda-feira, 1 de abril de 2019

Atendimento qualificado muda histórias marcadas pela violência

Por Laura Gonçalves Sucena
Uma mulher cheia de garra e determinada a superar  o passado. Vítima de violência, K. F., 32 anos, conseguiu dar um basta nas agressões e mudar sua vida. Atualmente, ela participa do programa de Atendimento Essencial à Mulher da instituição SOS Ação Mulher e Família que realiza um conjunto de ações socioassistenciais e terapêuticas visando o empoderamento da mulher e a interrupção de uma história de violência.

Mas para chegar até a instituição muita coisa aconteceu. Com lágrimas nos olhos, K. F., hoje fotógrafa, conta que passou por muita coisa e que tudo começou num namoro aos 16 anos de idade. As lembranças ainda assombram, mas contar sua história faz parte de um processo de fortalecimento.
“No início do namoro era tudo lindo e maravilhoso, até o dia que me entreguei e meu namorado teve a certeza de que eu o amava. Foi nesse ponto que as coisas começaram a mudar e, numa discussão boba, ele me deu um empurrão”, contou.
Depois veio mais uma briga e um tapa, e outra, com um xingamento. “Até que um dia ele bateu com sua cabeça na minha boca e eu, que usava aparelho ortodôntico, fiquei toda machucada. Foi um horror, minha boca sangrava e eu ainda tive que mentir para minha família falando que foi uma bolada. Eu sempre mentia e falava que era um tombo, que eu era desastrada…”, disse.
Sem saber o que fazer, a menina acabava acreditando nas palavras de carinho e no arrependimento do namorado. “A gente esquece dos momentos ruins e acredita que tudo vai mudar. E tem mais, é muito difícil falar para alguém que a gente foi agredida porque as pessoas colocam a culpa na gente. Falam que somos fracas ou que provavelmente fizemos alguma coisa para merecer”, relata.
Gravidez
K.F. continuou com o namoro e descobriu que estava grávida, aos 17 anos. Logo casou-se com seu agressor. “Só meu pai que falou que eu não precisava sair de casa. Acho que no fundo ele sabia que algo estava errado porque eu vivia dando desculpas para os meus hematomas. As pessoas não querem enxergar o óbvio, nem quem passa pela agressão e nem os que convivem ao redor dessa situação”, comentou.
Entre uma briga e outra, K.F. esperava por uma ajuda, mesmo sem contar a ninguém sobre as agressões. “Como não temos forças, o que queremos é que alguém tome uma atitude, nos dê a mão para que possamos sair da situação. Mas as pessoas também fingem que não sabem de nada. É um círculo vicioso, parecia que eu estava presa numa teia e não conseguia me desvencilhar”, contou K.F.
Nem mesmo grávida, K.F. teve paz. “Me lembro de uma vez, grávida de 7 meses, que fui buscar meu ex-marido no bar. Ele voltou para casa atrás de mim e começou a me bater em frente do portão. Eu gritava e pedia por socorro. As pessoas me olhavam, mas não faziam nada. Eu com aquela barriga e ninguém me ajudava. Essa situação me marcou muito porque parecia que ninguém me enxergava, era como se nada estivesse acontecendo. É muita falta de compaixão! O que eu digo é que em briga de marido e mulher tem que meter a colher sim, tem que ajudar, tem que fazer alguma coisa”, exclamou.
Acordando
K.F. conta que depois que seu filho nasceu ela logo voltou a trabalhar. “Meu ex-marido não conseguia parar em trabalho e eu tinha uma casa e uma criança para sustentar.  Precisava pagar contas, colocar comida em casa e comecei a fazer muita hora extra. Daí começou o ciúme com as acusações de traição. E as agressões voltaram”, desabafou.
“Um dia, estava na cozinha, meu filho no berço ao lado, e meu ex-marido começou a gritar, me acusar e pegou uma faca. Alguma coisa aconteceu porque eu consegui ver a cena de fora e me perguntei: o que eu estou fazendo aqui? Eu podia morrer, meu filho podia morrer… Só falei para ele pensar bem se ele queria me matar na frente do nosso filho e que ele teria que cuidar da criança porque eu não estaria mais lá. Ele me ouviu e saiu de casa. Na hora eu chamei a polícia”, relatou.
Nesse dia as coisas mudaram.  De acordo com K.F. as palavras do policial que lhe atendeu foram fortes e certeiras. “Além dele me orientar a ir à Delegacia da Mulher e solicitar uma medida protetiva, ele me falou que eu era nova e que estava em minhas mãos a mudança.  Que os agressores sempre falam que é a última vez, mas que a última vez nunca chega e que uma hora a coisa pode piorar. Isso mexeu demais comigo e ouvir essas palavras foi decisivo”, relatou.
Dando a volta por cima
Com 18 anos, a menina virou mulher e decidiu dar a volta por cima. Contou tudo que acontecia à família e recebeu todo o apoio. Mudou de casa, de bairro e fez tudo o que podia para se proteger.
“Claro que não foi fácil, mas foi possível. No começo ele me perturbava muito, mas com ajuda eu fui colocando limites. Porém tudo isso que passei deixou marcas, não só em mim, mas também no meu filho que passou por uma gestação violenta”, contou emocionada.
Devido ao comportamento agressivo do filho, K.F. chegou ao SOS Ação Mulher e Família. “Foram várias escolas, muitas brigas e muita dor de cabeça. A gente fica fragilizada, sem saber como lidar com a situação. Já escutei muito desaforo de pais de alunos e até mesmo do pessoal da escola porque ninguém entende o que passamos”, desabafou.
Após muitas reclamações sobre a agressividade da criança, muitas noites sem dormir e muita culpa, K.F. conta que a diretora de uma escola se sensibilizou com a situação e entrou em contato com a defensoria pública, enfatizando a necessidade de um atendimento especializado para o menino. Foi assim que mãe e filho conheceram o SOS Ação mulher e Família.
Na instituição, os dois passam por atendimento individualizado, com psicólogos, com o objetivo de se fortalecerem. “Estamos aqui há mais de 1 ano e está sendo muito positivo. Hoje consigo encarar toda a situação que vivi e que meu filho passa e estou mais forte para encarar os desafios. Se precisar assistir aula com ele eu assisto, estou presente e até mudei minha profissão para poder estar perto. Sei como me comportar e como reagir às situações porque fui me munindo de forças”, garantiu.
Atualmente K.F. continua lutando com confiança e determinação. “Minha vida é completamente diferente. Tenho um marido que me ama e me respeita e uma filha. Ele é companheiro e me ajuda muito com meu filho. E juntos fazemos tudo que é possível para acabar com os traços de violência que ainda existem. E assim a vida continua”, finalizou.
SOS Ação Mulher e Família
Pioneira no atendimento à mulher vítima de violência, a instituição atua desde 1980 na promoção do atendimento psicológico, social e jurídico de mulheres, crianças e adolescentes vítimas de violência. Além disso, também atende o agressor.
De acordo com a psicóloga da instituição, Lucélia Braghini, ao longo dos anos, os serviços que começaram apenas com o atendimento à mulher foram sendo ampliados, metodologias  desenvolvidas e muitas parcerias realizadas.
Por meio de uma equipe multiprofissional, a entidade trata a violência doméstica e sexual como um problema social e de saúde pública envolvendo a mulher, a família, as instituições sociais e a comunidade. “Buscamos, através da mulher e da família, relações mais justas e complementares, visando a interrupção de uma história de violência com o desenvolvimento de programas socioeducativos e preventivos.  Queremos que essas mulheres sejam protagonistas de suas vidas”, relatou Lucélia.
Segundo a psicóloga, por meio do Programa Atendimento Essencial à Mulher, a  SOS visa prevenir a violência doméstica e intrafamiliar, buscar o fortalecimento dos vínculos familiares, o desenvolvimento da autonomia e de potencialidades nos aspectos emocional e social, envolvendo os agentes da violência no processo de mudança dos modelos relacionais disfuncionais. “Propiciamos à mulher e sua família um espaço acolhedor para escuta qualificada, apoio e orientação, porque é isso que a vítima de violência precisa: ser ouvida”, contou Lucélia.
Atualmente, o programa Atendimento Essencial à Mulher passa por uma reavaliação. “Suspendemos o atendimento para novos casos e estamos reavaliando os atuais para o processo de encerramento ou encaminhamento. É um momento difícil porque temos um serviço diferenciado que dá suporte para a mulher e sua família ”, explicou Sandra Giovanini, coordenadora técnica da SOS.
“Quase todos os dias há casos de violência contra a mulher e a criança e é necessário dar suporte especializado para fazer o acolhimento e o acompanhamento até que a família se sinta mais fortalecida. É muito complicado ter que encerrar um trabalho que oferece atendimento especializado, na perspectiva da multidisciplinaridade, articulação intersetorial e em rede, de caráter continuado”, disse Sandra.
E os números são alarmantes. O SISNOV – Sistema de Notificação de Violência, que integra áreas de assistência social, saúde e educação do município, aponta que o número de notificações de violência contra a mulher em Campinas cresceu 67% entre 2013 e 2017. Foram registrados 779 casos em 2017, contra 466 em 2013. O balanço ainda apontou que pelo menos 32 mulheres morreram vítimas de feminicídio no período.
Além do projeto com as vítimas de violência, a  SOS Ação Mulher e Família ainda é executora do Serviço Especializado de Proteção Social à Família – SESF, referenciado ao Centro de Referência Especializado da Assistência Social – CREAS.
A instituição de 38 anos ainda conta com outros projetos que abrangem toda a família vítima de violência, como o ReCriando Vínculos – que oferece um espaço de convivência para crianças de 4 a 11 anos e suas famílias, que vivem em situação de violência doméstica e vulnerabilidade social.
De acordo com a líder do Programa Enfrentamento a Violências da Fundação FEAC, Natália Valente, a violência contra a mulher é caracterizada por uma “ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”, segundo a Lei nº 11.340/2006,  conhecida como lei Maria da Penha. “É um dos instrumentos mais importantes para o enfrentamento da violência contra mulher, que prevê desde medidas preventivas até a assistência à mulher vítima de violência doméstica. Por essa razão, é necessário pensar em programas, projetos e ações que trabalhem desde a prevenção até o atendimento especializado, afim de romper com sua naturalização e os ciclos que as perpetuam”, apontou.

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