Em 2005, o Partido Social Liberal, do atual presidente da República, Jair Bolsonaro, solicitou que o STF declarasse inconstitucional disposições contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O PSL pleiteou que, em suma, fosse restringido o direito à liberdade de crianças e adolescentes, permitindo que pudessem ser recolhidas pela polícia e apreendidas unicamente em razão de sua situação de vulnerabilidade econômica e social (por exemplo, crianças em situação de rua). A ação também propôs que crianças pudessem ser submetidas a medidas socioeducativas e que se ampliassem as hipóteses de aplicação de medida socioeducativa de internação.
Contudo, no último dia 8, o STF rejeitou, por unanimidade, a ação. O relator da ADI 3.446, ministro Gilmar Mendes, afirmou que "uma maior restrição às liberdades civis e a expansão indevida do aparato policial são características típicas de políticas e regimes autoritários" e que, "cabe ao STF, enquanto guardião dos direitos e liberdades fundamentais, coibir condutas que, em última análise, enfraquecem as regras do regime democrático e do Estado de Direito".
Contudo, no último dia 8, o STF rejeitou, por unanimidade, a ação. O relator da ADI 3.446, ministro Gilmar Mendes, afirmou que "uma maior restrição às liberdades civis e a expansão indevida do aparato policial são características típicas de políticas e regimes autoritários" e que, "cabe ao STF, enquanto guardião dos direitos e liberdades fundamentais, coibir condutas que, em última análise, enfraquecem as regras do regime democrático e do Estado de Direito".
Os demais ministros acompanharam integralmente o voto do relator. Celso de Mello declarou que, diferentemente do sustentado pelos autores, nenhuma das normas questionadas era incompatível com a Constituição. Ao contrário, inconstitucional seria a ação dos autores. Alexandre de Moraes afirmou que a política pública pretendida pelos autores se baseava em práticas de higienização social e que era clara a intenção de criminalizar a pobreza. Rosa Weber sustentou que precisamos agradecer por termos uma legislação como o ECA, que mudou o tratamento dado às crianças e aos adolescentes. Luís Roberto Barroso, por seu turno, chamou atenção para a importância da educação básica, apontando que “quem achar que o problema da educação no Brasil é escola sem partido, ideologia de gênero ou saber se 1964 foi golpe ou não, está assustando com a assombração errada”. Marco Aurélio Mello ressaltou a importância histórica do estatuto, além de mencionar que a redução da maioridade penal, essa, sim, se pleiteada, seria inconstitucional. O placar foi de 11 a 0.
É importante ressaltar e parabenizar o STF por ter se posicionado, de forma incisiva, contrariamente a uma ação que pretendia que retrocedêssemos décadas no tempo.
Foi no sentido de oferecer parecer técnico na ação que o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e o Núcleo Especializado da Infância e Juventude da Defensoria Pública de São Paulo se habilitaram como “amigos da corte”[1], buscando expor dados da realidade e informações relevantes a respeito de uma parcela da população que tem seus direitos diuturnamente violados.
O ECA não mudou só nosso pensamento enquanto sociedade. Ajudou, sobretudo, a mudar nossa realidade — mesmo longe de estarmos num cenário ideal para o desenvolvimento integral das crianças e adolescentes.
Segundo dados divulgados pela Unicef, por aqui, os adolescentes “estão sendo assassinados sistematicamente. O Brasil é o segundo país no mundo em número absoluto de homicídios de adolescentes, atrás somente da Nigéria. Hoje, os homicídios já representam 36,5% das causas de morte de adolescentes no país, enquanto para a população total correspondem a 4,8%”[2].
Também são as maiores vítimas da violência estatal. Conforme reportagem publicada pela Folha de S.Paulo, “a polícia paulista mata ao menos um adolescente por semana em casos atribuídos a confrontos na periferia da cidade de São Paulo”[3]. Ademais, em 20 anos, o número de adolescentes em privação e restrição de liberdade aumentou 511%. Muitos destes adolescentes ainda acabaram vitimizados por diversas violações de direitos, como tortura, humilhações e ameaças.
Evidente, portanto, que o ECA, uma das legislações mais modernas e avançadas que temos, vem tendo enorme dificuldade em se afirmar e em alterar a realidade.
A juventude, notadamente a pobre, negra e periférica, ainda é brutalmente vitimizada pela violência, exclusão social, desemprego e precarização dos serviços públicos. A promessa constitucional de que crianças, adolescentes e jovens devem ter assegurados, com absoluta prioridade, seus direitos fundamentais e serem protegidos de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão ainda está muito longe da realidade.
Se a lei é um mero pedaço de papel que não está sendo implementada, não é a lei que deveria mudar — ou ser jogada na latrina, como afirmou o atual presidente da República. Precisamos superar a mentalidade de um menorismo que já estamos tentando deixar para trás ao longo de três décadas. Precisamos enfrentar a realidade abjeta a que são submetidos crianças, adolescentes e jovens pobres no Brasil.
O PSL perdeu. O discurso de ódio também. Em tempos como o que estamos vivendo, é importante dizer, reafirmar e defender o óbvio. E a suprema corte, que defende nossa Constituição, exerceu esse papel.
Daniel Palotti Secco é defensor público do estado de São Paulo e coordenador-auxiliar do Núcleo Especializado da Infância e Juventude.
Mariana Chies Santiago Santos é pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Departamento de Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).
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