Em sua nova coluna, Danielle Torres reflete sobre sentir-se sozinha: "Não obstante o aumento na visibilidade trans, é quase certo que serei a única - na padaria, na academia, no ambiente profissional, no restaurante do almoço, e também nas lojas que frequentar"
02 SET 2019
Ser transgênero envolve uma profunda reconciliação com o corpo, mente e o próprio social. Não é fácil perceber-se diferente e enfrentar no cotidiano os olhares e a sensação de que estou sendo julgada.
Com o tempo, aprendi a contornar essas situações. Por vezes, eu mesma me esqueço que sou trans e consigo viver um dia com a normalidade que sempre sonhei. Mas, então, vem aquele sentimento de culpa, e logo me questiono como é que eu posso amar quem sou sendo eu tão “única”.
Com o tempo, aprendi a contornar essas situações. Por vezes, eu mesma me esqueço que sou trans e consigo viver um dia com a normalidade que sempre sonhei. Mas, então, vem aquele sentimento de culpa, e logo me questiono como é que eu posso amar quem sou sendo eu tão “única”.
Por vezes, eu mesma me esqueço que sou trans e consigo viver um dia com a normalidade que sempre sonhei
É neste momento que a solidão bate a minha porta. Eu, provavelmente, não irei encontrar com outras pessoas trans no meu dia. Não obstante o recente aumento na visibilidade trans, é quase certo que serei a única - na padaria, na academia, no ambiente profissional, no restaurante do almoço, e também nas lojas que frequentar.
Sem referências, eu torno a olhar o espelho. A imagem que vejo não é o ideal almejado. Começo a confabular a respeito dos mais diferentes tratamentos estéticos, hormonais e cirúrgicos – seriam eles capazes de apaziguar a minha solidão?
Torna-se natural eu alimentar a ilusão de que se eu fosse cisgênero, não precisaria viver esse conflito. O mundo seria um local onde eu encontraria acolhimento.
Abro as minhas redes sociais e vejo como estão as mulheres trans que sigo. Elas são a minha referência e também relatam por vezes os seus conflitos. Não deixo de enxergar no fundo de seus olhos o mesmo desejo de sentir-se parte do todo que eu mesma carrego – ainda que essa sensação possa ser somente eu fazendo uma leitura enviesada do outro.
Um tanto confusa, procuro utilizar esses anseios como substrato para a minha escrita literária.
É nesse ponto que lembro-me de estar sempre acompanhada, ainda que me sinta só. Tenho a minha volta pessoas preocupadas com o meu bem-estar e que querem o meu bem.
Eu ainda espero viver em um mundo em que eu não seja “única”, onde a minha dualidade seja plenamente abarcada e mesmo valorizada
Experimentar o mundo a partir da minha solidão e das inseguranças não irá ajudar-me em nada. Provavelmente, somente farei leituras equivocadas e que confirmem as minhas dores.
Eu ainda espero viver em um mundo em que eu não seja “única”, onde a minha dualidade seja plenamente abarcada e mesmo valorizada. Não há problemas em alimentar esta esperança, porém, não posso esquecer-me que se eu não for capaz de primeiro ressignificar os meus conflitos é capaz que eu jamais encontre esse mundo.
No fundo, muitas de nós buscamos nos compreender em um social que já ditou regras que nos antecedem. São essas regras que, por vezes, definem o adequado como algo binário e que não leva em consideração a plenitude da diversidade individual. Não estou tão solitária quanto precipitadamente julgo. Com todas as particularidades que me cercam, apenas sou eu mais uma mulher vivendo os meus conflitos em busca do meu local de pertencimento.
PERPLEXA
quando o barco deixou a tormenta
a luz do farol se apagou
a capitã saiu da cabine
assustou-se ao ver que sua tripulação havia voltado
pensou em fazer um discurso caloroso
mas já era tarde da noite
caminhou na direção de seus homens
que abriram caminho
ao chegar ao centro
a capitã acendeu uma tocha
e a ergueu o mais alto que pode
e então, milhares de pontos de luz surgiram no horizonte
outros barcos
igualmente iluminados
apareceram ao seu lado
a capitã percebeu:
ela nunca esteve só
ela é a luz do farol
assustou-se ao ver que sua tripulação havia voltado
pensou em fazer um discurso caloroso
mas já era tarde da noite
caminhou na direção de seus homens
que abriram caminho
ao chegar ao centro
a capitã acendeu uma tocha
e a ergueu o mais alto que pode
e então, milhares de pontos de luz surgiram no horizonte
outros barcos
igualmente iluminados
apareceram ao seu lado
a capitã percebeu:
ela nunca esteve só
ela é a luz do farol
- Victoria Novisck,
do livro Desejo a Poesia
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