domingo, 1 de setembro de 2019

Aborto terapêutico e Direito à vida: O dilema entre a manutenção da vida do ser maduro e a garantia de vida ao feto.

Jusbrasil
Publicado por Eduardo Santos
31/08/2019
1 INTRODUÇÃO
Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988 instaurou o Estado Democrático de Direito, após a ditadura militar, caracterizada por um regime totalitário, não havendo observância dos direitos fundamentais dos cidadãos. Dessa forma, aquele Estado surgiu com o viés de trazer para a seara social os direitos fundamentais das pessoas, com o intuito dos poderes públicos promoverem e protegerem tais benefícios.
Entretanto, assim como em todos países que apresentam direitos fundamentais que devem ser promovidos pelos entes públicos, o Brasil também não fugiu à regra dos conflitos inerentes daqueles direitos, ou seja, haverá situações concretas em que privilégios fundamentais irão colidir, devendo haver ponderação sobre eles, para solucionar tal questão. Sendo assim, por esse fato chega-se ao tema articulado neste projeto de trabalho, o qual é o direito à vida da mulher (aborto terapêutico) entrando em choque com o mesmo direito do nascituro.

Este tema de trabalho apresenta importância social, na medida que procura demonstrar para a sociedade as peculiaridades do aborto, em que há algumas situações que esse é permitido, pela justificativa de uma ponderação de determinado direito fundamental (no caso, direito à vida).
Nesse sentido científico busca descrever para o âmbito jurídico as circunstâncias penais daquele aborto, relacionando-o com o direito fundamental da vida tanto da gestante, como do nascituro. Dessa forma, busca fazer uma relação entre tais questões para compreender as peculiaridades do aborto permitido no ordenamento jurídico brasileiro. E a sua importância para o meio acadêmico motiva os pesquisadores a terem uma visão interdisciplinar, relacionando situações do Direito Penal, com os Direitos Fundamentais. Nota-se a importância e o proveito social do estudo de tal tema, em que são tratadas questões essenciais ao direito à vida e à saúde (física e psicológica) da gestante, como do nascituro.
Diante do exposto pretende-se apresentar inicialmente o aborto terapêutico sob a perspectiva do Direito Penal. Igualmente se buscará explicitar o aborto terapêutico como meio para resguardar o direito à saúde da gestante, seja ela física, mental ou psicológica, como forma de garantir não só o direito à vida da mulher, como também para garantir a dignidade humana. Para se alcançar tais objetivos realizou-se pesquisa bibliográfica ou exploratória por meio da internet e livros.
2. BREVE HISTÓRICO DO ABORTO NO BRASIL E O ABORTO NECESSÁRIO
A partir deste tópico pretende-se abordar que o aborto sempre foi tema controvertido e que o Código Penal modificou a sua visão sobre o assunto ao longo da história do Direito Penal no Brasil através da cultura, dos costumes e hábitos da época. Nos conta o doutrinador penalista Cezar Bitencourt que o Código penal de 1830 não criminalizava o aborto praticado pela própria gestante, mas penalizava o aborto cometido por terceiro. Em verdade, punia o aborto consentido e sofrido, porém o autoaborto.
O Código de !890 por sua vez passou a criminalizar o aborto provocado (ou autoaborto). No entanto se o crime era cometido com o fim ocultar desonra própria havia atenuante para a pena. Esse foi o primeiro código a prever as excludentes especiais da ilicitude (BITENCOURT, 2014).
código penal de 1940, por sua vez, segundo Eliana Descovi Pacheco, em conjunto com a os avançados conhecimentos científicos da medicina, teve como definir a viabilidade ou inviabilidade de vida extrauterina do feto, prevendo anomalias, tais como a anencefalia.
Muito embora tal circunstância já fosse possível de se auferir, somente em 2012 o Plenário do STF, pela maioria dos votos, julgou procedente declarar a inconstitucionalidade da interpretação mediante a qual a interrupção da gravidez de feto anencefálico, tipificada ainda no art. 124 do Código Penal. (NOLASCO, 2012, p[?]).
A partir dessas considerações se verá que a matéria sofreu modificações ao longo da história, não somente do tema mas como igualmente das próprias abordagens dos crimes de aborto pelo Direito Penal.
2.1 Aborto terapêutico, de acordo com o Código Penal atual.
Antes de abordar a questão do aborto terapêutico, é necessário explicitar o aborto criminoso. De acordo com o princípio da taxatividade, o Código Penal deveria ser claro ao descrever tais tipos penais, porém tal questão não ocorre no artigo 124 daquela legislação, cabendo à doutrina tal explicação. Sendo assim, conforme Hélio Gomes apud Cezar Roberto Bitencourt (2014, p.167), “É a interrupção ilícita da prenhez, com a morte do produto, haja ou não expulsão, qualquer que seja seu estado evolutivo, desde a concepção até momentos antes do parto”. Nota-se que aquele é caracterizado por marcos temporais, ou seja, há de ser durante a concepção, mas não pode ser logo após o início do início do parto, já que tal fato pode ocasionar outros tipos penais, como infanticídio ou homicídio, dependendo das circunstâncias (BITENCOURT, 2014, p.166)
Nesse sentido, já explicitado tal tipificação do artigo 124 do Código penal, pode-se partir para o aborto terapêutico, em que de acordo com o artigo 128 daquele legislação, não pune-se o aborto praticado pelo médico, quando ocasionar risco de vida imediato para gestante. Dessa maneira, Antonio Cândido Milagres (2011, p.30) afirma que tal preceito relaciona-se com o artigo 24 do Código Penal, o qual refere-se ao estado de necessidade, já que tal fato é um perigo atual para a gestante, que no mínimo ela gerou tal situação com a participação de outra pessoa (seria uma visão preconceituosa culpar somente a mulher por uma gravidez, enquanto é necessário a participação de outra pessoa para essa ocorrer), por isso não pode falar que gerou tal ocasião, além do sacrifício não ser exigido, perante as circunstância do caso. Além disso, a solução ponderada encontrada nestes conflitos é que a mulher apresenta uma importância maior, por já ter sua vida formada, o que não seria razoável o sacrifício daquela, perante uma pessoa que apresenta somente potencialidade de vida (PACHECO apud MILAGRES, 2011, p.31).
Dessa forma, é válido destacar a observação que Cezar Roberto Bitencourt (2011, p.174) elabora em relação aos requisitos do aborto necessário, em que são o perigo de vida da gestante e não existência de outro meio para salva-la, ou seja, nota-se que aquele primeiro elemento deve ser iminente, direto, além de relacionar-se com a vida da mulher grávida, não devendo ser perigo à saúde, mesmo que muito grave; ademais, “[...] o aborto, [...], deve ser o único meio capaz de salvar a vida da gestante, caso contrário o médico responderá pelo crime.” (BITENCOURT, 2014, p.174). Sendo assim, observa-se que os destaques feitos por aquele autor apresentam íntimas relações com o estado de necessidade (excludente de ilicitude).
Outra relação importante abordada por Bitencourt (2014, p.174, 175) é o aborto terapêutico, com o artigo 146§ 3º do Código Penal, em que a intervenção médica é justificada, independendo do consentimento do paciente, pela razão do iminente perigo de vida, ou seja, não é necessário o querer da gestante, mas a observação e decisão racional do médico em relação ao sacrifício do nascituro, perante o risco de vida iminente da mulher, além de que o profissional da saúde também agirá conforme o estrito cumprimento do dever legal, de acordo com o artigo 23, III, primeira parte da legislação penal.
Pelo exposto acima, observa-se que o aborto terapêutico é uma forma de proteger a vida de uma pessoa, perante outra que apresenta a potencialidade da vida, em que havendo a ponderação, escolher-se-á aquela, sem que com isso haja punição por determinado ato do profissional da saúde.
3 ABORTO TERAPÊUTICO COMO FORMA DE INTERVENÇÃO DO ESTADO PARA PROTEGER O BEM JURÍDICO VIDA
O aborto terapêutico é uma modalidade do aborto necessário, que é hipótese de aborto legal nos termos do art. 128 do Código Penal. O aborto necessário ocorre quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. Dessa forma como preceitua Damásio de Jesus, subsiste o delito quando provocado com o fim de preservar a saúde. No entanto é válido citar que tal hipótese legal de aborto, só não se constitui em crime quando feito por um médico.
Durante a gravidez, apresenta-se às vezes, em razão do estado da mulher ou de alguma enfermidade intercorrente, séria e grave complicação mórbida, pondo em risco a vida da gestante. Em tal situação o médico assistente é o árbitro a quem cabe decidir sobra a continuidade ou não do processo de gravidez. (PACHECO, 2007, p.[?]).
Nesse caso, segundo o referido autor, a lei transfere ao médico a legitimidade para averiguar a compatibilidade entre a moléstia e a gravidez, entendendo como resultado a morte e não somente dano à saúde da gestante. Sendo afirmativo, a lei permite a interrupção da gravidez em detrimento da vida e da saúde da mulher.
Vale ressaltar que a licitude do aborto terapêutico independe do consentimento da gestante ou familiares, visto que dessas relações podem advir interesses hereditários, preferência ao filho do que à mãe, ou mesmo no caso da gestante querer se sacrificar pelo filho. A intervenção será necessária sempre que houver risco de vida para a gestante, e do Direito Penal põe a seguro tal atuação do médico no art. 128 do Código Penal.
Cabe citar que a tendência é sempre se afirmar que a vida deve prevalecer, contudo, assinala Kleber Tagliaferro (Procurador Federal), deve-se utilizar a técnica da ponderação e da razoabilidade, porquanto sem vida não há que se falar em sociedade. No entanto a questão é complexa, afinal não se pode impor à mãe que leve a gravidez a cabo gerando a ela sofrimentos prolongados. Pela razão do homem médio, proibir a antecipação terapêutica do parto seria a dilação de amarga angústia à gestante. (TAGLIAFERRO, 2004, p.[?]).
Estatuto da Criança e do Adolescente prevê em seus arts.  e  que o Estado deve garantir meios de tutelar a vida da criança desde a sua concepção para assegurar o seu nascimento e desenvolvimento sadio e harmonioso. Isso parece se chocar com o Código Penal que permite o aborto em alguns casos. (DE JESUS, 2011, p.[?]).
Conforme Alexandre Morais: “o aborto poderá ser penalizado quando estiver tutelando o direito à vida; devendo , porém, em virtude da relatividade dos direitos fundamentais, ser despenalizado quando houver grave risco para a vida da gestante (aborto necessário). (DE JESUS, 2011, p.[?]).
É diante de tal perspectiva que o Direito Penal declara a atipicidade da conduta do aborto em casos em que se deva resguardar o direito à vida da gestante, e mesmo diante de fetos anencefálicos, após o julgamento do STF em 2012, garante o direito da antecipação terapêutica em vista de assegurar o direito à saúde da mulher.
4 ASPECTOS DOUTRINÁRIOS DO ABORTO TERAPÊUTICO OU NECESSÁRIO
A extensão da exclusão de ilicitude para o enfermeiro que realiza a operação de abortamento em conjunto com o médico, se dá em caso de perigo de vida para a gestante e inexistindo outro meio de salvá-la. Diante dessa circunstância, abordada anteriormente, o requisito essencial é iminente perigo de vida da gestante, sendo insuficiente o perigo à saúde, embora se configure grave segundo o entendimento de Bittencourt (2014, p.174).
Segundo Damásio de Jesus (2001, p.128), a disposição não contém causas de exclusão de culpabilidade, nem escusas absolutórias ou causas extintivas da punibilidade. O referido autor entende que o dispositivo contém uma exclusão de antijuricidade. “Fato impunível em matéria penal é fato lícito”, essa citação de Dámasio se coaduna com o entendimento de Cezar Bitencourt, que entende ser uma causa especial excludente de ilicitude.
Assim sendo, para Damásio, haveria causa pessoal de exclusão de pena somente se o Código Penal dissesse “não se pune o médico”. Partindo desse ponto de vista é que se questiona se o aborto praticado pela enfermeira seria fato punível. No entendimento do autor, assim como para Bitencourt, depende. Em tratando-se de aborto necessário, em que não há qualquer outro meio de salvar a vida da gestante, não responde pelo delito, afinal a enfermeira é favorecida pelo estado de necessidade que é uma excludente de ilicitude do fato, previsto no art. 24 CP.
Dessa forma se a enfermeira não responde em se tratando de estado de necessidade, se ela auxilia o médico a fazer o aborto nessas mesmas circunstâncias, igualmente não responderia por nada. No entanto, em se tratando de aborto sentimental a enfermeira responderia pelo delito uma vez que, no entendimento de Damásio (2001, p.178), a norma permissiva faz referência expressa à qualidade do sujeito que pode ser favorecido: deve ser médico.
Cezar Roberto Bitencourt concorda parcialmente com Damásio. Afirma o doutrinador que em verdade, a conduta da enfermeira, na hipótese, não está acobertada pela excludente especial de ilicitude, que é o que exige a condição especial de médico, não possuída pela enfermeira. Para Bitencourt, a conduta reveste-se de tipicidade e antijuricidade, contudo ele não esgota a análise casuística. Disserta na hipótese de poder configurar a inexigibilidade de conduta diversa, que uma vez reconhecida, excluirá a culpabilidade. (BITENCOURT, 2014, p.176-177).
A partir do tópico apresentado, chega-se a conclusão que a (o) enfermeira (o) não responde por crime quando auxilia o médico na realização de qualquer das modalidades de aborto legal, visto que se para o médico é lícito, não há porque para a enfermeira ser. E como nos ensina Bitencourt, pela teoria da acessoriedade limitada da participação, a conduta da enfermeira se enquadraria aqui, pois exige que a conduta principal seja típica e antijurídica.
4.1 Aborto anencefálico e a dignidade humana da gestante (direito à saúde)
No que toca o aborto terapêutico de anencefálicos em vista à garantia do direito à saúde da gestante, o nosso posicionamento se assemelha ao apresentado por Bitencourt, onde a gestante tem a faculdade de manter o feto até o seu natural nascimento. Apenas se preferir. Mas não será obrigada a guardar dentro de si, nas palavras do doutrinador, “um tormento que aniquila, brutaliza, desumaniza e destrói emocional e psicologicamente”, pois o seu preparo é para a morte do filho e não para a celebração do seu nascimento com vida.
O bem jurídico tutelado, a despeito do aborto, é a vida do ser humano em formação. No entanto tratando-se de fetos anencefálicos, essa antecipação consentida do parto não afeta nenhum bem jurídico que é resguardado pela ordem constitucional, uma vez que não há potencialidade de vida, vida viável em formação. Por outro lado a gestação pode ser potencialmente perigosa, podendo gerar vários problemas de saúde ou riscos para a própria vida da mulher. (BITENCOURT, 2014, p. 178).
Nas hipóteses de aborto ilegal o sujeito passivo é o próprio feto, segundo Bitencourt, mas no aborto anencefálico o entendimento é que o feto não incorpora a condição de sujeito passivo, pela ausência das condições fisiológicas que proporcionam um dia torna-se uma pessoa.
Dentre os argumentos em defesa do aborto de feto anencefálico, tem-se a incompatibilidade do feto com a vida extra-uterina, ou seja, a impossibilidade de a criança sobreviver após o parto, uma vez que, a perspectiva de vida nos casos de não fechamento do tubo neural não ultrapassa algumas horas, em poucos casos, dois ou três dias. (CARVALHO, 2013, p.[?]).
De acordo com Sheyla Polliana e Jean Frederick (NOLASCO, 2012, p.[?]), “a dignidade é uma qualidade intrínseca da pessoa humana e possui um caráter de irrenunciabilidade, repousando na autonomia da vontade e no direito de autodeterminação de cada pessoa”. E a Constituição deve garantir um conjunto de direitos e deveres fundamentais que assegurem a todos contra qualquer ato degradante ou desumano. Que garante as condições mínimas de sobrevivência. (POLLIANA; FREDERICK Apud NOLASCO, 2012, p.[?]).
Diante do exposto, pode-se concluir que em vistas à dignidade humana da mulher, princípio basilar do Estado Democrático de Direito elencado pela Constituição Federal, e a impossibilidade fática do feto anencefálico ou mesmo do risco eminente à vida ou saúde da gestante não há discussão no que compete garantir a vida ou a saúde da gestante com vistas de garantir a autonomia da vontade e a autodeterminação da mulher dada pelo Direito Penal em, querendo ou não, continuar com a gestação até o final.
REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte especial 2 dos Crimes contra a pessoa. 14. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.
CARVALHO, Raul Pequeno Sá. O direito à vida e o dilema do aborto de feto anencefálico. In: Âmbito jurídico, Rio Grande, XVI, n. 119, dez 2013. Disponível em: http://www.ambito-jurídico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigos_id=13993>; Acesso em: 25 out, 2015.
DE JESUS, Damásio. O aborto sentimental e a interrupção da gravidez da autora do crime de estupro. In: Blogdamasio. Disponível em: < http://blog.damasio.com.br/?p=1685 > Acesso em 11 set, 2015.
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. Parte Especial 4: dos crimes contra a vida. 24 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2001.
NOLASCO, Lincoln. Aborto: aspectos polêmicos, anencefalia e descriminalização. In: Conteúdo Jurídico. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,aborto-aspectos-polemicos-anencefaliaedescriminalizacao,...; Acesso em: 11 set, 2015.
PACHECO, Eliana Descovi. O aborto através dos tempos e seus aspectos jurídicos. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, X, N.39, mar 2007. Disponível em: <http://www.ambito-jurídico.com.br/site/indez.php?n_link=artigos_leitura.pdf&artigo_id=3740>; Acesso em: 11 set, 2015.
TAGLIAFERRO, Kleber. Aborto ou terapêutica?. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 378, 20 jul. 2004. Disponível em: <http://.jus.com.br/artigos/5476/aborto-ou-terapeutica>; Acesso em: 28 out, 2015.

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