domingo, 1 de setembro de 2019

O que dizer sobre o caso da mulher suspeita de estuprar o garoto de 12 anos na Bahia?

Bahia
30 de agosto de 2019

No texto de hoje abordaremos o aparente caso de estupro de vulnerável ocorrido essa semana em Vitória da Conquista – Bahia. Segundo consta nos mais variados portais de notícias existentes na internet, a exemplo do G1, uma mulher conhecida como “Rosa Cigana” fora presa por ter supostamente estuprado um garoto de 12 anos de idade. 

De acordo com dados prestados pela PM, a mencionada mulher, além de ter confessado o delito em sede policial, informou também que dois menores de 12 e 17 anos de idade a auxiliaram na empreitada criminosa, filmando a referida cena de estupro.
Dito isto e partindo dos fatos até então noticiados, pretendemos, neste escrito, individualizar a conduta de cada indivíduo envolvido na situação fática em questão, como também apresentar algumas lições acerca do crime estupro de vulnerável, que como se sabe, assim como o crime de estupro, é também – já que atinge de forma majoritária crianças do sexo feminino – um crime de gênero.
Os próprios dados levantados por Cerqueira e Coelho (2014) em estudo realizado em parceria com o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), relativo aos registros de 2011 apresentados pelo Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), nos indicam claramente que o estupro de vulnerável é, de fato, um crime de gênero.
De acordo com os  números trazidos pelos autores, 88,5% das vítimas de estupro são do sexo feminino e do total de vítimas 70% são crianças e adolescentes, o que nos mostra a predominância das mulheres como vítima destes tipos de delitos
O que não é surpresa para ninguém, tendo em vista que a cultura machita – que objetifica a mulher e a trata como propriedade do homem – ainda está enraizada na sociedade brasileira. O crescente número, por exemplo, de feminicídios e de violência doméstica contra as mulheres retrata bem este atual cenário.
 Nessa esteira, é correto afirmar que apesar da expressão “mulher honesta” ter sido expurgada desde 2005 do nosso Código Penal, ainda hoje, há um descrédito na palavra da mulher vítima de crimes sexuais.  Não é a toa que elementos como  “honestidade”, “virgindade” e “vida pregressa” são usualmente utilizados por Juízes e Desembargadores como critério para aferição da credibilidade dos depoimentos de mulheres vítimas de estupro.
Nesse mesmo sentido, Rossi (2015) afirma que não esporadicamente o estereótipo da mulher “honesta” prepondera fazendo com que autoridades judiciais não confiram credibilidade aos depoimentos de mulheres vítimas de crimes sexuais. O que faz com que, não ocasionalmente, mulheres vítimas de estupro sejam responsabilizadas (culpabilizadas) pelo ocorrido. 
Nessa esteira e diante de todo este cenário, é correto afirmar que o fator cultural interfere não apenas na questão da subordinação da mulher frente ao homem, mas também na possibilidade de existirem subnotificações em relação aos casos de estupro nos quais a vítima é do sexo masculino.
Os próprios autores – Cerqueira e Coelho (2014) – alertam para tal possibilidade. Segundo eles, estima-se que o número de homens vítima de crimes sexuais seja mais elevado do que o que consta nas pesquisas, já que ainda vige no imaginário popular a ideia de que o homem é sempre o sujeito ativo, indelicado e bruto enquanto a mulher é sempre sujeito passivo, delicada e frágil. 
Não é à toa que crimes brutais e de sangue são geralmente ligados à figura do homem. Até na literatura jurídica o agente criminoso geralmente é sempre do gênero masculino (a exemplo dos clássicos personagens Caio, Tício e Mévio).
Dessa feita, é inegável – apesar de não existirem pesquisas empíricas consistentes nesse sentido – que o fator cultural é algo que prepondera na seara dos crimes sexuais. 
Um exemplo disso pode ser visto nos mais variados casos de estupro de vulnerável em que a vítima é uma menina, pois nessas situações, o que se observava na prática, é que antes mesmo da inclusão do parágrafo quinto ao artigo 217-A do Código Penal, as decisões judiciais já desconsideravam por completo a possibilidade de anuência da vítima para o ato sexual.
Esse era, inclusive, o entendimento do STJ veiculado pela súmula 593 “O crime de estupro de vulnerável configura-se com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante o eventual consentimento da vítima para a prática do ato, experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente” (STJ. 3ª Seção. Aprovada em 25/10/2017, DJe 06/11/201) 
Em outros dizeres, o consentimento da vítima antes mesmo de 2018 já era considerado como fator irrelevante para caracterização do estupro de vulnerável. Entendia-se e endente-se que todo e qualquer ato sexual praticado com menor de 14 anos é criminoso, independentemente de eventual consentimento e da comprovação de que não houve abuso da imaturidade do menor.
Ocorre que, em termos práticos, a vedação absoluta para a prática de atos sexuais, atingia e atinge apenas as meninas menores de 14 anos de idade, impondo-se, dessa forma, para as mesmas um dever velado de virgindade até os 14 anos de idade.
Especula-se, assim, que o dever de castidade até os 14 anos de idade não se aplica ou aplicava-se aos meninos menores de 14 anos de idade, pois a escassez de casos concretos em que meninos figurem como sujeito passivo do delito e a realidade sociocultural – mais presente, diga-se de passagem, na região nordeste – nos mostra justamente o oposto, ou seja, que este dever de virgindade para os meninos não existe, pelo contrário, a precocidade na iniciação sexual de meninos é ate estimulada.
Dito isto, resta tão somente saber se houve ou não prática de violência no caso objeto deste texto, pois caso não tenha sido utilizada violência ou grave ameaça para a obtenção do favorecimento sexual, este caso será uma mudança de paradigma em relação a pré-determinação de papéis de gênero na sociedade. Logo, resta apenas esperar o desenrolar processual para saber como se deu o ato sexual entre a “Rosa Cigana” e o menor de 14 anos.
Por fim e não menos importante, é correto afirmar ainda que os menores que contribuíram através de filmagem, na perpetração do suposto delito de estupro de vulnerável, responderão pelo ato infracional equiparado ao crime do art. 240 do ECA. 
Não havendo que se falar, portanto, em aplicação cumulativa do art. 240 do ECA com o art. 216-B do Código Penal, sob pena de haver dupla punição (o que é vedado em Direito Penal). Devendo-se, dessa forma, ser aplicado tão somente o ECA – por se tratar de lei especial.
ECA, Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente: (Redação dada pela Lei nº 11.829, de 2008). Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 11.829, de 2008)
REFERÊNCIAS
CERQUEIRA, Daniel.; COELHO, Danilo de Santa Cruz. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde. Brasília: Ipea, 2014. (Nota Técnica, n. 11).
ROSSI, Giovanna. Os estereótipos de gênero e o mito da imparcialidade jurídica: análise do discurso judicial no crime de estupro. Florianópolis: Pontifícia Universidade Federal de Santa Catarina, 2015, Monografia. Disponível aqui. Acesso em: 30 Jul. 2018.

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