terça-feira, 12 de novembro de 2019

Mulher tem de ser muitas. Tem mesmo?

Em sua nova coluna, a psicanalista Lidia Aratangy fala sobre as mil cobranças que rondam o cotidiano das mulheres: "É preciso abrir mão da busca da perfeição e assumir a fragilidade e as limitações que a condição humana nos impõe. Assim, quem sabe chegará um tempo em que nosso compromisso maior seja com a ternura"


11 NOV 2019 


Se você é capaz de falar ao telefone com a amiga enquanto escreve a lista de compras do supermercado e acompanha os barulhos dos pequenos que brincam no quarto, ao mesmo tempo em que controla o horário do mais velho (não vá ele perder a hora da perua!) e sente o cheiro do leite derramando no fogão, deve isso à anatomia do cérebro feminino: pesquisas recentes revelam que as mulheres têm mais conexões entre os dois hemisférios cerebrais do que os homens, o que lhes permite prestar atenção a vários eventos ao mesmo tempoE se, enquanto conversa ao telefone, você escolhe a roupa com que vai ao trabalho, percebe que está com uma unha lascada (precisa de manicura urgente!) e, num cantinho escondido do cérebro, repassa o relatório que vai apresentar à sua equipe, isso se deve à emancipação feminina: você é uma mulher do seu tempo, que já conquistou seu lugar no universo do trabalho.

Há poucas gerações, uma mulher casada só “trabalhava fora” quando o marido não tinha condições de sustentar a família. Era uma ajuda temporária ao orçamento doméstico, até que o chefe da família conseguisse “se estabelecer”. A ideia de que o trabalho da mulher servisse para algo mais do que ajudar a garantir o pão e, se possível, o circo, não fazia parte do imaginário das famílias: as mulheres almejavam o trono de “rainhas do lar”, e os homens sentiam-se realizados quando garantiam à família um cotidiano confortável e um futuro tranquilo. Nada indica que essas mulheres fossem mais felizes do que as de hoje, mas provavelmente eram menos angustiadas.
Temos de ter sucesso profissional, sem deixar de ser excelente dona de casa e mãe exemplar, além de exibir um corpo impecável e um rosto sem rugas
Quando os métodos anticoncepcionais não eram seguros, o casal não podia decidir quando teria filhos, nem quantos filhos teria: a procriação era um evento puramente biológico, controlado por forças alheias ao casal. Com o advento de métodos anticoncepcionais eficientes, a maternidade deixou de ser uma contingência natural, para entrar no universo do desejo. A partir daí, as mulheres que escolhem ser mães passam a arcar com as consequências de sua opção, e têm menos espaço para lamentações. A pílula trouxe, além da liberdade, a responsabilidade pela decisão, e a pressão por sentir prazer na maternidade se junta à culpa e ao sentimento de insuficiência – desde sempre ardilosos companheiros das mães – para ampliar a angústia e o desamparo das inexperientes.

Agora estamos presas nessa armadilha. Temos de ter sucesso profissional, sem deixar de ser excelente dona de casa e mãe exemplar, além de exibir um corpo impecável e um rosto sem rugas.  Não basta ser uma intelectual respeitada – é preciso ter belas pernas; e uma bem-sucedida mulher de negócios deve ser também a orgulhosa mãe de filhos modelos e a fogosa amante de seu marido.

Sob essa exigência de perfeição, todas as mães acham que cometeram graves erros na educação dos filhos; as esposas carregam o fardo de não serem suficientemente dedicadas, ou bonitas, ou inteligentes, ou sabe Deus o quê; as profissionais estão sempre se cobrando mais empenho e dedicação ao trabalho.

Foi para isso que lutamos?  É esse o prêmio pela conquista da liberdade? Saímos do jugo de pais e maridos, para nos submeter à tirania do relógio, do chefe, da balança?

Não tem de ser assim. Há mais de um século, Freud dizia que, para o humano, biologia não é destino; isso é, o fato de ter tantas conexões entre os hemisférios cerebrais não condena a mulher a controlar tudo o que cai na sua ampla rede de percepção. É preciso fazer escolhas, e aí vai um lembrete: liberdade é uma questão de foro íntimo, que se resolve nas instâncias profundas da vida mental; ninguém concede nem tira nossa liberdade, a não ser nosso superego. Portanto, é daí que deve emanar o grito que nos torna independentes de balanças, plateias e cronômetros.

Para isso, é preciso abrir mão da busca da perfeição e assumir a fragilidade e as limitações que a condição humana nos impõe. Assim, quem sabe chegará um tempo em que nosso compromisso maior seja com a ternura.
Foi para isso que lutamos?  É esse o prêmio pela conquista da liberdade? Saímos do jugo de pais e maridos, para nos submeter à tirania do relógio, do chefe, da balança?

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