quinta-feira, 22 de novembro de 2012


Bernice King: "O sonho do meu pai ainda não foi concretizado"

A filha caçula de Martin Luther King diz que o preconceito está voltado para os latinos que vivem nos EUA e que a crise econômica fez crescer a desigualdade racial no país

NATHALIA PRATES
Bernice Albertine King nasceu no mesmo ano em que seu pai fez um dos discursos mais lembrados da história. Quase 50 anos após Martin Luther King Jr. proferir o emocionante I have a dream (Eu tenho um sonho) na Marcha sobre Washington, a filha do ativista continua a repetir pelo mundo que é preciso perseguir o sonho de uma sociedade livre de preconceitos. Na terça-feira (20), Dia da Consciência Negra no Brasil, ela participou, em São Paulo, do 1º Seminário Internacional do Observatório da População Negra. O evento discutiu a desigualdade racial no Brasil e nos Estados Unidos. 
Bernice King (Foto: Altamiro Ferreira)
Seguidores dos ideais defendidos por Luther King e Zumbi – o último líder do Quilombo dos Palmares e um dos principais símbolos da luta pelo fim da escravidão no Brasil colonial, morto em 20 de novembro de 1695 – se apertaram no pátio da Faculdade Zumbi dos Palmares para ouvir a caçula de Luther King. Um painel com a imagem do ativista negro na Marcha sobre Washington decorava o fundo do palco improvisado. Bernice, de 49 anos, foi recebida como heroína pela plateia formada por alunos, representantes do governo, professores brasileiros, africanos e americanos de universidades historicamente negras, como Columbia e Indiana University.  Com a habilidade para a oratória herdada do pai, respondeu a todas as perguntas formuladas por alunos de forma clara e completa. Exceto a uma questão: quem são as personalidades negras do Brasil que são referência da luta pelos negros nos EUA. Bernice disse não conhecer nenhuma. Não mencionou o próprio homenageado da data, Zumbi dos Palmares. 
Na noite anterior, Bernice participou da 10ª edição do Troféu Raça Negra, em que recebeu o prêmio em homenagem póstuma ao pai. Apesar da voz grossa e da estatura grande, Bernice é tímida. Tem as unhas bem feitas, usa colares e brincos chamativos e anda impecavelmente maquiada. Assim como o pai, a mãe, Coretta Scott King, e os três irmãos, é uma ativista dos direitos dos negros. Hoje, além de palestras motivacionais, a advogada divide seu tempo entre atividades na igreja batista em Atlanta, sua cidade natal, e a direção do The King Center, instituto fundado em 1968 por Coretta para dar continuidade ao legado deixado por Luther King – baleado e morto em abril daquele ano na varanda de um hotel em Memphis, no Tennessee. À reportagem de ÉPOCA, ela falou sobre o preconceito contra os latinos que vivem nos EUA, os efeitos da ascensão do presidente americano Barack Obama para os negros e as consequências da crise econômica para o aumento da desigualdade racial no país.
ÉPOCA - No discurso I have a dream, seu pai disse que sonhava com o dia em que seus quatro filhos pudessem viver num país livre de preconceitos. A senhora acredita viver hoje em um país assim?
Bernice – Dizer que somos livres de preconceito não condiz inteiramente com a realidade dos EUA. Ao olhar para a discriminação sofrida pelos imigrantes e descendentes de latinos que vivem hoje no país, posso dizer que estamos longe daquele ideal de sociedade sonhado por meu pai. Seu sonho ainda não foi concretizado. O movimento que ele liderou, e pelo qual tanto lutou, serviu para mostrar aos negros e às minorias americanas que eles são, sim, capazes de conquistar melhores oportunidades de crescimento e de trilhar o caminho que chamo de seu “destino”. Um destino de igualdade e liberdade. Ainda existe muita desigualdade racial e econômica nos EUA. Muita injustiça, muitas crianças que nascem e crescem na pobreza. Ainda temos muito trabalho pela frente se quisermos tornar realidade a sociedade que meu pai descreveu nesse e em tantos outros discursos. Ele nos apontou o caminho (da luta constante e pacífica) pelo qual devemos seguir até vivermos em um mundo onde as decisões deixem de ser tomadas com base em fatores externos, como a cor da pele, o sexo ou o dinheiro na conta. Enquanto não atingirmos esse patamar, a luta não pode parar. Meu pai provou que sonhos podem se tornar realidade. Tinha apenas 26 anos quando começou a lutar. Sacrificou sua vida para defender um futuro melhor para todos nós. Os jovens precisam dar continuidade a esse movimento. O jogo não está ganho.
ÉPOCA - Foi aprovada no Brasil uma lei que prevê cotas sociais e raciais nas universidades públicas federais. Muitos brasileiros acreditam que essa medida vá desqualificar a educação universitária do país. A senhora avalia essa lei de forma positiva?
Bernice – Meu pai costumava dizer que se você fizer algo contra o povo, você tem o dever de promover o seu bem. Os negros foram tirados de suas casas, separados de suas famílias e trazidos ao continente americano à força, como escravos. Quando foram libertos, não receberam qualquer tipo de suprimento ou apoio para que pudessem se reerguer e viver de forma literalmente livre. Foram simplesmente soltos. A promessa de liberdade, feita com a abolição da escravidão, não foi completamente cumprida. O resultado foi a segregação e o racismo entre negros e brancos, dando início a uma nova dimensão da escravidão, em que pessoas iguais começam a vida a partir de níveis de oportunidades (de educação, saúde, trabalho) desiguais. Isso aconteceu tanto nos EUA como no Brasil. É como uma corrida de revezamento. Dois atletas de times opostos não têm como realizar a prova no mesmo intervalo de tempo se os corredores de um time já estão na última volta, enquanto os do outro ainda não completaram a primeira. É quase como queimar a largada. Não é justo. Para que as condições se tornem justas, é preciso nivelar, criar pontos de partida iguais para todos. A meu ver, esse é o intuito dessa política. Não acredito que os negros e pobres não tenham capacidade de competir com quem consegue, hoje, entrar em uma universidade pública. Também não acho que essa medida vá desqualificar o ensino universitário do país. Trata-se de uma forma de diminuir a defasagem sofrida por gerações e gerações de pessoas que ficaram para trás, que começaram a corrida em total desvantagem pela falta de oportunidades. Acredito que é preciso fazer algo para tornar mais justa essa corrida. Trazer para frente aquele atleta que ficou para trás. Quando isso acontecer, talvez medidas como essas não se façam mais necessárias.
ÉPOCA - Barack Obama é o primeiro presidente negro dos EUA. No Brasil, o juiz Joaquim Barbosa é o primeiro presidente negro do Superior Tribunal Federal. O que essas conquistas representam para os EUA e o Brasil?
Bernice – Acho que o principal é a esperança. Cada passo da primeira campanha eleitoral, e agora da segunda, do presidente Barack Obama nos encheu de esperança. A conquista de Obama tocou, principalmente, os homens negros – por tantos anos injustiçados e colocados pra baixo. Ainda hoje, os homens negros são maioria nos presídios americanos. Quando um povo sente que não tem voz, não percebe seu valor. Sem esperança, as pessoas recorrem a maus comportamentos, a atitudes negativas. Meu pai dizia que a violência é a língua dos incompreendidos. Por isso, a principal preocupação é com os nossos meninos negros. São as circunstâncias em que essas crianças crescem que acabam contribuindo para definir se, no futuro, elas vão para a penitenciária ou para a universidade. Nesse sentido, a ascensão de Obama e de outras lideranças negras pode inspirar essas crianças, fazendo com que escolham seguir por um caminho melhor. Obama provou que é possível chegar lá. E não digo só chegar à Presidência da República, o que já é uma conquista enorme, mas a possibilidade de ser bem sucedido na área em que se quiser atuar. Obama está mostrando para essa garotada que um negro pode ser reconhecido mundialmente por outras coisas que não só cantar e dançar. Nossos garotos passaram a se enxergar em Obama, a acreditar que um dia podem ser como ele. Viram que é possível, que pode ser de verdade. Acredito que um negro na maior instância do judiciário brasileiro vá trazer aos negros brasileiros a esperança de justiça ao alcance de todos. É claro que uma única pessoa não consegue fazer, sozinha, grandes mudanças, mas planta uma sementinha, que pode encorajar, estimular as pessoas, principalmente os jovens, a visualizar chances reais de crescimento. Eles passam a se imaginar como um Barack Obama e um Joaquim Barbosa do futuro. É fundamental ter alguém em quem se inspirar.
*A situação dos negros americanos está realmente melhor do que há 50 anos? 

Bernice – Sim e não. Existe hoje uma grande classe média negra nos EUA que não existia na época do meu pai. Hoje temos muito mais empresários negros, cujas atividades não ficam restritas às comunidades negras. Vimos negros e latinos ascenderem financeiramente, é verdade. No final da década de 1990 e início da década de 2000, muitos chegaram a um patamar econômico em que puderam adquirir um imóvel. Com a crise imobiliária (ocorrida em 2008), muitas dessas famílias perderam suas casas e o padrão financeiro adquirido. Não tinham como pagar as hipotecas. Não conseguiram manter suas conquistas. Foram expostas ao ridículo, discriminadas por isso. As crises imobiliária e financeira acabaram alimentando o preconceito, a desigualdade no nosso país. Foi como dar um grande passo para trás. Não há mais placas indicando lugares para negros ou para brancos. Mas o racismo ainda existe, só que não é tão explícito como antes. Por isso que eu digo aos negros brasileiros que, quando as oportunidades de crescimento financeiro chegarem, e elas já estão chegando, tenham muita sabedoria e disciplina na hora de lidar com esse dinheiro, porque haverá sempre forças para tirar suas conquistas. É preciso estar sempre forte e atento para poder lutar contra essas adversidades.
*Qual é a arma mais eficaz para acabar com o preconceito no mundo?

Bernice – Acredito que a união é, sem dúvidas, uma das mais importantes. O primeiro grande passo do movimento pelos direitos civis dos negros começou em 1955, quando a costureira Rosa Parks se recusou a ceder seu lugar no ônibus a um passageiro branco. Ela não estava cansada apenas fisicamente, mas também por dentro. Não aguentava mais a discriminação que vinha sofrendo. Rosa foi presa. A comunidade negra de Montgomery, no Alabama, já pensava em boicotar as empresas de ônibus da cidade, pois a população negra era constantemente maltratada por seus funcionários. Mas a atitude de Rosa encorajou a comunidade a agir. Na manhã seguinte ao boicote, quando perceberam que 99% dos negros haviam se sacrificado, deixado de ir trabalhar com o transporte público para aderir à causa, sentiram a força de sua união. O boicote, que iria durar apenas um dia, se prolongou por 381 dias. A união daquelas pessoas foi tão forte que a Suprema Corte considerou a segregação racial um crime no nosso país. Esse episódio impulsionou a criação de outras ações que se espalharam pelo país, resultando no movimento pelos direitos civis dos negros, que mudou, para melhor, a vida de milhares de negros, seus filhos e netos. Mas o preconceito não acabou. Ainda há muito a ser feito. Meu pai nos mostrou que existe um caminho possível. Basta agora termos coragem para seguir em frente e não desanimar.
*Perguntas formuladas por alunos da Faculdade Zumbi dos Palmares durante o evento.

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