sábado, 10 de novembro de 2012


Socos Verbais

Ofensas e humilhações constantes já foram consideradas aceitáveis nas relações conjugais. Não é mais o caso. Novos estudos sugerem que essas agressões ferem tanto como tapas.

Martha Mendonça

A expressão violência doméstica costuma ser entendida como sinônimo de agressão física. É o impulso de raiva que, numa escalada rápida, passa de empurrões a bofetadas, causa ferimentos e mata dez mulheres por dia no Brasil, segundo estatísticas oficiais. Agora, outro componente da violência que acontece dentro de casa, mas que, durante muito tempo, passou despercebido, está chamando a atenção de especialistas e autoridades: a violência psicológica. São insultos, ameaças e humilhações diárias, que não deixam marcas no corpo, mas, assim como as agressões físicas, provocam danos. Eles minam a confiança, diminuem a resistência da vítima a doenças e podem levar à depressão. No ano passado, a França foi o primeiro país do mundo a considerar crime a violência psicológica conjugal. Quem insultar, fizer comentários rudes sobre a aparência do companheiro e ameaçar com agressões físicas pode pegar até três anos de prisão. No Brasil, também há sinais de avanço. Segundo uma pesquisa divulgada no mês passado pelo Instituto Avon, 62% das pessoas já reconhecem que os insultos sistemáticos são, sim, violência.

“A brincadeira perversa, a chacota e até a indiferença também são uma forma de violência”, diz a psicóloga Adelma Pimentel. Ela dá pistas sobre como diferenciar as brigas normais entre os casais da violência no livro recém-lançado Violência psicológica nas relações conjugais. “Um parceiro sempre assume a postura de agressor e o outro de vítima”, afirma Adelma. “As ofensas não são esporádicas, mas repetitivas. E têm a clara motivação de ferir.” Ela pesquisa o assunto desde 2002. Em Belém, onde dá aulas na Universidade Federal do Pará, atende pacientes que reconhecem o problema, mas não conseguem romper o ciclo de violência.

“Passei sete anos com a autoestima no chão e uma sensação de vazio”, diz a servidora pública brasiliense Rosane Fernandes, de 47 anos, que só percebeu que sofria violências diárias depois de se divorciar, há oito anos. Desde que começou a namorar, Rosane notou que o parceiro tinha um comportamento explosivo. Mas acreditava que isso mudaria após o casamento. Só piorou. Menos de um ano depois, ela vivia com um homem irritado, impaciente, inflexível. Tudo era motivo para gritaria, palavrões, xingamentos. Quando nasceu a filha do casal, ele tornou-se ainda mais desequilibrado. Fazia críticas sobre a forma como ela cuidava da menina, falava mal de sua família e desqualificava seus amigos. Até em momentos de calmaria, parecia que algo estava errado: “Quando ele me via arrumada, me chamava de ‘dragão’ e ‘trubufu’. Seu eu reagia, ele ria, dizia que era brincadeira. Depois repetia”.

O movimento que transformou a percepção sobre as ofensas diárias e passou a tratá-las como uma forma real de violência é antigo. Surgiu com as mudanças sociais que deram visibilidade ao abuso psicológico no trabalho (o assédio moral) e na escola (o bullying). Para o sociólogo americano Murray Straus, professor da Universidade de New Hampshire, que começou a estudar o assunto há mais de 30 anos e foi um dos primeiros a levantar a discussão, três motivos causaram essa mudança de percepção.

Os direitos humanos passaram por uma valorização sem precedentes nas últimas décadas e, ao mesmo tempo, o nível de educação da população aumentou, tornando as pessoas cada vez mais capazes de identificar nuances sutis de violência. O terceiro motivo está relacionado à transformação da natureza do casamento. Com a popularização do divórcio, as pessoas parecem ter entendido que não precisam ficar presas a um casamento ruim e que o objetivo da união é trazer satisfação, não infelicidade. “Entre quatro paredes os casais sempre souberam que a violência psicológica é um problema”, diz Straus. “Mas só nos últimos anos as pessoas se deram conta de que ela pode e deve ser combatida.”

Neste ano, o diretor de cinema João Jardim lançou o filme Amor?, com depoimentos sobre a violência entre casais. Ele diz que, em muitas entrevistas, precisou se esforçar para explicar que brigas de casal nem sempre são normais. Durante um ano, ele pesquisou em delegacias, ONGs e entre amigos situações de agressão psicológica doméstica – a maioria no casamento. “Nossa sociedade está apenas começando a falar de violência psicológica. Ainda não entende que isso não faz parte dos relacionamentos, que não é uma consequência natural da paixão”, afirma. Diretor de documentários premiados, como Janela da alma e Lixo extraordinário, Jardim usou atores para interpretar os depoimentos. Os protagonistas reais das histórias não se sentiam à vontade para aparecer no filme. “Meu objetivo é fazer com que as pessoas associem a própria vida a esses depoimentos e possam perceber se são vítimas ou agressores”, diz ele. “Às vezes, o agressor também não se reconhece como tal.”

ALÍVIO
A brasiliense Rosane Fernandes. 
Ela só se deu conta de que sofria 
abuso psicológico no casamento 
depois que se separou, há oito anos
Nesse tipo de ataque, que não envolve força física, é comum as mulheres assumirem o papel de torturadoras. Enquanto os maridos agridem as parceiras a respeito de sua aparência, elas fazem pouco sobre a realização profissional deles, o sucesso financeiro e, claro, a performance sexual. Uma pesquisa da psicóloga americana Ann Coker, da Universidade do Texas, mostrou que, dos mais de 7 mil homens entrevistados, 23% assumiram ser vítimas de alguma forma de violência no casamento. O número é próximo ao de mulheres agredidas, 29%. Muitos dos homens chegavam a desenvolver estresse pós-traumático por causa das agressões. Um estudo da psicóloga Denise Hines, da Clark University, nos Estados Unidos, sugere que as consequências para os homens podem ser mais graves. Eles têm mais dificuldade de deixar um relacionamento ruim. Muitos são provedores, sentem-se responsáveis pela família e temem ser afastados dos filhos em caso de separação, já que a Justiça americana – assim como a brasileira – costuma pender para o lado das mães.

As consequências da violência psicológica vão além dos traumas. Não acontece em todos os casos, mas não é incomum que ela seja a antessala da agressão física. “Se a pessoa não se impõe, a violência verbal ganha novas formas de expressão”, diz a socióloga Tânia Rocha Andrade. A advogada carioca Adriana Souza, de 41 anos, resolveu sair de casa ao perceber que os insultos estavam a um passo de virar pancadaria. “Antes que eu apanhasse, saí de casa”, afirma Adriana, separada há três anos. Nos dez anos em que ficou casada, teve suas atitudes, gostos culturais e modo de vestir ridicularizados pelo ex-marido, um executivo do mercado financeiro. “Era muito comum ele falar mal de mim na frente dos colegas de trabalho dele. Fazia ar de brincadeira, mas era real.” Adriana conta que ela e os filhos foram submetidos à tirania dos gostos e das preferências do homem da casa. “Aos poucos, fui descartando tudo o que adorava. Para não causar confusão, me anulei”, diz. Um dia, tiveram uma grave briga por ciúme – e ele a ameaçou fisicamente. Foi o fim.

"Os ataques psicológicos podem anteceder a agressão física" 
TÂNIA ROCHA ANDRADE, socióloga

Além do sofrimento da violência, há outro problema quando a agressão se instala na vida doméstica: o exemplo. Crianças e adolescentes que vivem em lares onde há violência psicológica ou física não serão, necessariamente, vítimas ou algozes no futuro. Mas estarão mais suscetíveis a esse tipo de desvio. “Certamente vão tender a considerar naturais tais relações”, diz Adelma Pimentel. Em sua pesquisa, o cineasta João Jardim descobriu várias vítimas de violência conjugal que também sofreram agressão doméstica na infância. “Parece que existe uma propensão a repetir o papel”, afirma ele. Jardim está certo. Na última década, o Centro de Pesquisas sobre Violência Doméstica, no Estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos, tem estudado os efeitos das agressões entre casais no comportamento das crianças. As avaliações sugerem que as crianças que testemunham violência entre os pais, seja física ou verbal, adquirem traumas semelhantes àquelas que sofrem, elas próprias, abusos físicos – ou sexuais. Por motivos como esses, hoje se sabe que a violência doméstica, em sua forma física ou psicológica, não é uma questão familiar, mas um problema social: “Em briga de marido e mulher, é preciso, sim, meter a colher”, diz Tânia.

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