quarta-feira, 5 de março de 2014

A tristeza de um Japão esquecido

Yoji Yamada, diretor de "The Little House", retrata os personagens à sombra da sociedade. 

Por Orlando Margarido 
  
Yoji
Takako Matsu e Haru Kuroki, sem excesso sentimental
The Little House film partners 
Por três décadas, Yoji Yamada dirigiu 48 filmes com o mesmo personagem, na mais longeva série do cinema. Tora-san, como era popularmente conhecida no Japão e aqui exibida com o título Como É Triste Ser Homem, teve início em 1969 e só terminou em 1995 por causa da morte do ator protagonista, Kiyoshi Atsumi. Aos 82 anos, o veterano cineasta japonês ainda é um dos poucos a trabalhar no velho sistema do estúdio Shochiku, uma das casas mais tradicionais do país, onde começou, e também onde fizeram carreira Kenji Mizoguchi e Akira Kurosawa. Todo esse legado, incluída uma memória pessoal de Yamada, reflete-se no seu mais novo filme, The Little House, apresentado na competição do recente 64º Festival de Berlim e que rendeu o prêmio de melhor atriz a Haru Kuroki.

Se na antiga série Tora-san havia o mascate que não conseguia ser amado, neste drama baseado em livro homônimo de sucesso publicado em 2010 cabe à mulher o fardo da impossibilidade de amar. Não pelas circunstâncias triviais, cotidianas e até tragicômicas que impediam o primeiro, mas pela rigidez da moral de uma sociedade que ainda iria se transformar. Yamada traz o tema do adultério no Japão do período pré e durante a Segunda Guerra Mundial, momento histórico significativo pelos desdobramentos para toda uma nação empenhada em vencer e então desiludida e envergonhada.

É esse, em grande parte, o sentimento de Tokiko (Takako Matsu), casada e mãe de um garoto. Ela se apaixona por um funcionário do marido numa fábrica de brinquedos. O rapaz, tímido e romântico caricaturista, tem, contudo, ímpeto o ­bastante para fazer valer a paixão de ambos. Há uma atmosfera de idealização, de relação física não concretizada, e quem testemunha calada o romance é a empregada da pequena casa onde tudo se passa. Taki (Kuroki) é o eixo da história entre o passado e o presente. Quando velha, retoma os fatos em escritos e oralmente ao sobrinho. Tem papel preponderante por nunca haver entregue uma carta comprometedora, revelação que se dará depois de sua morte.

Yamada faz um filme sóbrio e elegante, como de costume. Acompanha a traição da esposa até o momento em que esta visita o amante, mas a câmera não os mostra na intimidade. Era o bastante, assegura o diretor. “Naquela época, havia uma legislação em vigor no Japão que proibia mulheres casadas de terem qualquer tipo de contato com outros homens”, disse na coletiva de imprensa, em Berlim. “Seria condenada apenas por visitar um homem desconhecido em sua casa.” 

Não se trata de uma pesquisa histórica para o filme. O cineasta viveu esse contexto que também infringia outra forma de perseguição. “Ninguém deveria pensar a não ser na guerra e no esforço de vencê-la. Um romance, ainda mais adúltero, era o fim.” Yamada encontrou no livro, salienta, suas próprias recordações de garoto e se sentiu compelido a trazer à nova geração um momento esquecido, senão ignorado. “Houve um Japão muito diferente deste moderno que conhecemos.” A confirmação vem da atriz, em exclusiva para CartaCapital. “Precisei me preparar nos gestos e no modo de como uma criada se comportava naquele tempo”, diz Haru Kuroki, de 23 anos. “Foi surpreendente e difícil lidar com um código superado, com uma condição da mulher que desconhecia ter sido tão punida.”

Pode ser triste um homem como Tora-san, mas no cinema de Yamada é também trágico ser mulher ou um samurai caído em desgraça, pobre e contratado a soldo, desonra máxima. São esses seus personagens preferidos, entre muitos outros desvalidos e marginais à grande sociedade nipônica, assim como os temas das relações familiares, em geral conflituosas, a memória e o envelhecimento. Diferem, porém, na forma e no tratamento, do cinema de Yasujiro Ozu, seu maior mestre. O CineSesc, em São Paulo, exibe o filme anterior de Yamada, Uma Família em Tóquio, sobre os pais idosos a visitar os filhos ocupados na capital e sofrem com sua rejeição. Trata-se de uma renovação, não exatamente um remake, de um clássico de Ozu, Era uma Vez em Tóquio, de 1953, disponível em DVD em lançamento da Versátil.

The Little House, embora pertença ao painel da era chamada Showa, entre 1926 e 1989, evoca uma peculiaridade além da vida burguesa idílica de um subúrbio de Tóquio. Parece tender ao cinema romântico e melodramático norte-americano, a exemplo daquele de um Douglas Sirk, que se apoia, inclusive, em citações explícitas. A maneira de vestir dos homens ou a leitura de ...E o Vento Levou pela ­adúltera ­remetem a um conceito ocidental de vida. CartaCapital perguntou a Yamada se a influência era consciente.

“Respondo o que me respondeu certa vez Kurosawa. Ele disse não ser um gênio, apenas ter boa memória. Claro que, com o que conheci e vi de cinema, isso deve estar de alguma maneira nos meus filmes, mas não de modo consciente, diferente do que dizia Ozu, um devedor assumido da comédia americana.” 

Yamada talvez não tenha o culto da crítica e dos cinéfilos obtido por Ozu. É por vezes acusado de excesso de sentimentalismo, que por ironia parece ter secado o quanto pôde neste novo filme. Também a dedicação a uma série mais popular do que exatamente autoral tornou-o um realizador mais bem afinado com as grandes plateias, e isso nem sempre garante caminho para outro reconhecimento. O Festival de Berlim, ao menos desde os anos 1980, acolhe seus filmes e em 2010 o homenageou com o Camera, prêmio de carreira, consolidando um prestígio internacional que o realizador tem de sobra no Japão como o maior vencedor do Oscar local. Quando a saúde permite, caso de agora, ele viaja e se dispõe a discutir com simplicidade e elegância o que sabe fazer com esmero: filmar e contar uma boa história.

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