As crianças acreditam que a internet traga bichos e presentes instantaneamente
ISABEL CLEMENTE
05/10/2014
Nossos filhos nasceram para dominar o planeta e a dominação começou pelo mundo virtual, todos sabemos isso. Eles conhecem atalhos e entendem regras sem ler manuais. Nasceram com um chip da Apple no cérebro e decifram sua linguagem interativa na base da intuição. Quando eu nascer de novo, também quero ser assim.
Com acesso a computadores, tablets e toda parafernália que eles irão conhecer na idade certa e errada, queira você ou não, eles absorverão conceitos complicadíssimos no automático. Enquanto a gente se perguntava na aula de Física o que era a força da gravidade observando a queda de um lápis da mesa - um experimento rebuscado demonstrado várias vezes em sala de aula -, eles estarão anos-luz à frente debatendo o tráfego de dados por fibras óticas e impressões 3D, cujos princípios jamais compreenderemos na totalidade. As crianças de hoje já nascem sabendo jogar Farm Heroes enquanto a gente se pergunta para que servem aqueles ícones em formato de cadeado, cachorro e pá na tela do celular.
Cedo demais, nossas crianças aprendem que comunicação não se restringe a telefone, que enciclopédias são "o quê mesmo?" e que é assim que as coisas funcionam. Pedem para a gente enviar uma mensagem para a mãe do amiguinho com quem querem brincar. Telefonam usando o Face Time e poderão jogar com crianças do outro lado do planeta falando inglês porque usam o Google Translator.
As crianças começam a compreender que a internet é essa entidade que tudo sabe e tudo vê e de onde tudo podemos sacar, de conhecimento a comida. As crianças pequenas sabem que podem fazer pesquisa da escola na internet, que fazemos compras pela internet, que checamos se vai fazer sol ou chover amanhã, e que a internet é esse lugar onde encontramos músicas novas e clipes divertidos. Frequentamos bancos virtuais e trazemos para casa, pela internet, o trabalho! Quando não temos tempo, resolvemos pela internet.
Mas nada substitui a inocência, que nem o progresso há de engolir. É nessas horas que a gente respira aliviada e pensa "não, as crianças de hoje não nascem sabendo tudo", só Farm Heroes. Há muito espaço para novos aprendizados. Ainda bem.
As crianças não sabem ainda que a internet não é confiável, que há perigos e riscos contra os quais várias medidas serão necessárias. Elas ignoram o fato de que, a depender da fonte da informação, é preciso checar várias vezes em lugares de mais credibilidade e procurar pelos produtos de melhor qualidade, como numa grande feira livre. Eu já disse que a internet é como a rua, tem gente de todo tipo e ninguém sai por aí fazendo amizade com qualquer um. A maior dificuldade de todas é explicar que até compra virtual depende desse mastodonte pré-histórico chamado correio. Dar uma aula sobre correio para uma criança de cinco anos desta geração é mais complicado, vai por mim.
"Mamãe, podemos pedir um cachorro à internet?"
"É melhor a gente conhecer o cachorro pessoalmente. Na internet, a gente só pode ver a foto do cachorro", digo.
"Mas se a gente pedir um cachorro pela internet, ele vai sair de dentro do computador?"
"Não, filha, o cachorrinho saiu da barriga da mamãe dele, como você, e a gente tem que ir lá buscar ou pede para o correio entregar", digo, brincando.
Ela ficou pensativa e eu pude ler seu pensamento: correio? Para que isso se tem internet?
Outro dia brincando com minha caçula, eu a chamei de pacotinho e perguntei enquanto a enrolava no lençol "onde fui arrumar um pacotinho tão bonitinho?" Resposta: você pediu pela internet. Me lembrou uma amiga cujo filho único, inconformado, sugeriu que ela pedisse um irmãozinho "pela internet".
"É mais rápido, mamãe".
A internet é tão misteriosa e capaz de quase tudo quanto Papai Noel, a diferença é que o verdadeiro só aparece no Natal.
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