domingo, 12 de outubro de 2014

O coração na garganta

Nunca fora tão feliz. Por isso temia o futuro nas manhãs de terça-feira

IVAN MARTINS
08/10/2014

Quando entrou no quarto, vindo do banheiro, ela já tinha adormecido. Respirava serena, com o rosto voltado para o abajur. Tinha nas mãos um livro aberto, que ele retirou com cuidado, para não acordá-la, e colocou no criado-mudo. Depois sentou-se na beirada da cama, ao lado dela. Acariciou seus cabelos com a ponta dos dedos. “Meu bicho bonito”, disse, baixinho. “Meu amor.” Ela esboçou uma expressão, quase um sorriso de olhos fechados, mas não respondeu. Dormia, enquanto os olhos dele percorriam detalhes do seu rosto. Sentia-se feliz e emocionado.

Outras vezes tinha medo. Como nas manhãs em que ela saia de casa primeiro, e ele ficava na porta do apartamento, esperando que entrasse no elevador. Olhava sua mulher de cabelos molhados no meio do hall e sentia uma saudade enorme. Dela, que ainda estava ali, à sua frente. Se ela perguntava, divertida, “o que foi?”, ele apenas sorria, em silêncio. Como explicar que o coração lhe subia à garganta, que separar-se dela o enchia de pressentimentos, que sofria de maneira besta e irremediável em meio à paz do casamento, numa manhã de terça-feira?

Nesses dias, sua piedade se estendia como um manto sobre todos os homens e mulheres apaixonados do planeta. Ele tinha certeza de que, naquele exato instante, em Pequim e Islamabad, certamente em Lima e Edimburgo, outros se debatiam no interior da mesma angústia. Estavam, como ele, assustados com a intensidade dos próprios sentimentos. Percebiam, repentinamente, o luxo da felicidade. Sofriam, como ele sofria, por perceber que o objeto do seu amor, afinal, não lhes pertencia. Era reconquistado a cada dia. Ou não.

Em momentos assim, entendia os tolos desesperados. Ele também tinha ímpetos de enchê-la de presentes. Daria a ela um carro, uma casa, uma joia. Faria dívidas. O que fosse necessário para prendê-la a ele, qualquer coisa que o fizesse sentir-se seguro. Casaria com ela na igreja, mesmo sendo ateu. Teriam muitos filhos, embora não quisesse crianças. Ele se tornaria rico, famoso, invejado. Faria esportes, faria plásticas, se vestiria com apuro e elegância. Agiria de forma determinada e intrépida, Assim, talvez, ela nunca deixasse de amá-lo. Assim, certamente, ela jamais o abandonaria. Seriam felizes para sempre.

Se ele tivesse de explicar, não poderia. Não havia nada errado fora dele. Do contrário. Ela parecia igualmente apaixonada, as vidas se misturavam como num rio, os dias transcorriam sem sobressaltos. Faziam planos. Por isso, inexplicavelmente, ele se inquietava. Jamais fora tão feliz. Dos seus amores, nenhum durara tanto. Nunca o desejo e a ternura haviam se fundido na mesma mulher, por tanto tempo. Pela primeira vez, de forma exaltada e consciente, temia. Quando ela o abraçava de manhã, cheia de sono, esparramada sobre seu peito, sentia-se completo. Então, uma voz dentro dele sussurrava: “Tudo acaba, isto não pode durar”.

Nem todos os dias eram assim, claro. Havia brigas, chateações, irritações profundas. Às vezes, o convívio era um inferno, e ele respirava aliviado. As personalidades colidiam, os gostos se estranhavam, mesmo os corpos – cansados ou tristes com a vida, talvez saudosos de novidades – se recusavam a gozar. Disso, eu não sentiria saudades, ele pensava. Não seria assim tão duro se acabasse. Mas, se dela viesse um olhar triste, um gesto de dor ressabiado, ele se enchia de culpa. Voltava a sentir-se parte de algo estremecido, responsável último e refém da felicidade daquela criatura de olhos escuros que o fitava com medo – tão linda como ele nunca a vira, tão amedrontada quanto ele.

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