sábado, 6 de junho de 2015

No metrô, no Brasil e na América Latina, violência contra a mulher é praxe

Por Natalie Garcia

// Redação
A primeira vista, o jargão “mulheres e crianças primeiro”, muito utilizado em filmes hollywoodianos, chega a ser cômico. Arraigado em nossa cultura, seu uso é comum e não gera curiosidade. Fui, então, à procura de seu significado e, não, não há nada de engraçado nisso – como tantos costumes e tradições perpetuadas em nossa cultura.
 
A expressão, segundo o coordenador de emergências da Unicef no Brasil, Halim Antônio Girade, se deve ao fato de as mulheres fazerem parte de um grupo de risco, “mais propenso a sofrer abusos e explorações”, o qual abarca também os idosos. Segundo Girade, “pessoas desse grupo são os primeiros a perder seus direitos em condições extremas”, tornando-as prioridades em situações emergenciais.
 
As informações do coordenador, baseadas na Declaração sobre a Proteção da Mulher e da Criança em Estados de Emergência e de Conflitos Armados, criada pela ONU em 1974, só revelam uma terrível condição a que estão condenadas as mulheres. Inseridas socialmente como física e emocionalmente frágeis, ficam à margem dos direitos a elas garantidos pela Constituição. Infelizmente, o subjugamento de mulheres é rotina.

Gozando de ódio

Com sua calça e dignidade violadas pelo abuso sexual de um homem no metrô paulistano, Carolina Apple, repórter do R7, expôs o seu caso no fim da semana passada. Minha primeira reação – e imagino que também foi a de tantas outras pessoas – foi de grande raiva e sentimento punitivo. Naquele momento, minha vontade era de exterminar aquele homem – e todos os outros que nos fazem passar por situações de incrível humilhação -, mas não pude fazê-lo.
 
Depois, compreendi. Não o porquê daquele ato, nem a mente do agressor, mas o porquê de tantas Carolinas passarem pelas mesmas situações diariamente. Os porquês sempre surgem depois de um momento inflamado.
 
Lembrei das histórias que ouvi das mulheres de minha vida, pessoas vitais. Dos pais que tentavam boliná-las quando pequenas, dos namorados obsessivos que as desumanizavam, das subordinações aos homens da família, das tentativas de estupro, dos abusos no transporte público, dos assédios, das torturas psicológicas, dos apelidos e xingamentos malvados, da bulimia, da anorexia, da depressão, das tentativas de suicídio. Todos denominadores comuns de uma mesma história, de uma mesma tradição repassada através das gerações.
 
Como exemplo disso, em 2012, o SUS (Sistema Único de Saúde) recebeu, em seus hospitais e clínicas, uma média de duas mulheres por hora com sinais de violência sexual. Muitas vezes, violência realizada por seus próprios parceiros. Dados alarmantes, que vão ao encontro do número de mulheres abusadas sexualmente no transporte público das maiores capitais da América Latina. Segundo levantamento da Thomson Reuters, seis em cada dez – sem considerar, ainda, as mulheres que não procuram o serviço público nem autoridade alguma sobre a agressão sofrida. O Brasil, no entanto, não fez parte das estatísticas da pesquisa.

Legalismo funciona?

Embora o país possua legislação aplicável aos casos como o de Carolina, explica Maíra Zapater, especialista em Direito Penal e colunista no Justificando, não há legislação específica. O que acontece, geralmente, é que se “um homem segura a mulher ou a ameaça com uma arma, ou mesmo com palavras, enquanto pratica o abuso dentro de um vagão, será configurado crime de estupro (a atual redação do art. 123 do Código Penal abrange toda e qualquer conduta libidinosa)”. Sem a violência física ou a ameaça, no entanto, “é possível enquadrar a conduta no art. 61 da Lei de Contravenções Penais (importunação ofensiva ao pudor).”
 
No caso da repórter, sua agressão passou despercebida aos olhos do operador do metrô a quem pediu ajuda. Sequer um boletim de ocorrência foi feito. O que isso revela? Que, definitivamente, não se coibirão condutas como a do agressor do transporte público, com a lei. A questão vai muito além do legalismo, muito, mas muito além, do recrudescimento penal.
 
Está internalizado, em nossa sociedade, o pensamento que hostiliza e desprotege a mulher. E quando uso da palavra “desprotege”, não me refiro, sequer minimamente, a proteger uma mulher como propõe a Declaração da ONU, que estabelece uma realidade como dada a partir de seu texto; refiro à proteção semelhante àquela que todo cidadão, como sujeito de Direito, deveria receber por parte do Estado e da população. O mínimo garantido àqueles que são “iguais” perante a Constituição.
 
A punição não funciona, e isso é muito claro quando se olha para a situação carcerária e para aqueles que conseguem sair das prisões. Não existe ressocialização, não existe o mínimo de proteção, não existe qualquer coisa que nos garanta que de uma penitenciária saiam pessoas íntegras, éticas ou qualquer coisa que o valha. “Fica só pelo apelo simbólico, e seus efeitos são muito duvidosos, para não dizer perigosos”, reafirma Maíra. Além disso, “não há nenhuma evidência em país algum de que o recrudescimento das penas tenha caráter preventivo”, finaliza.

Fatos à parte,

Dada a situação, como resolvê-la? Em 2014, os vagões rosas quase se tornaram uma realidade na capital paulista. Uma suposta solução paliativa, que dividiu os movimentos de mulheres. Para a penalista, “é o Estado assinando embaixo a ideia de que os homens são incontroláveis”. Para muitas outras mulheres, a medida significava o mesmo, de tal maneira que foi vetada pelo governador Geraldo Alckmin.
 
Cabe também pensar no papel das propagandas. “Sou fã de campanhas,” explica Maíra, “mas campanha pesada, como aconteceu com as campanhas de cigarro. De tão convincentes, foram tiradas do ar. O nazismo se sustentou em cima de campanha. Então se fizer pro lado ‘do bem’ – e nada contra o cigarro, acho uma caretice essa perseguição ao fumante, mas a questão da campanha é relevante -, com certeza surte efeito.”
 
A real solução parece simples, mas não é. Felizmente, hoje vejo estudiosas, professoras e grandes influenciadoras de opinião sempre prontas ao debate e ao diálogo. Quem sabe, com o tempo e com uma educação menos patriarcal, as tradições ruins passem a se tornar dispensáveis?
 
Natalie Garcia é redatora no Justificando.
 
Justificando

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