Quando mulheres denunciam a cultura do estupro, estão a afirmar que a violência contida no ato é a objetivação extrema do corpo feminino, submetido ao poder e à truculência do estuprador
Na edição de 7 de junho da Gazeta do Povo, o advogado e
blogueiro Fabio Blanco publicou artigo intitulado “Uma invenção
feminista”, no qual defende que a “cultura do estupro” é, como o título
já o diz, uma invenção do feminismo cujo propósito é levantar a
“bandeira sexista e manipular mulheres, criando um estado de paranoia”, e
em que “qualquer homem” se torna a representação de uma ameaça. Mas o
próprio artigo, em um ato falho típico, se contradiz ao afirmar o
“absurdo” e a “barbárie” de termos, anualmente, cerca de 50 mil mulheres
estupradas no país – e estamos a falar dos casos registrados, ou seja,
daquelas mulheres que têm a oportunidade e a coragem de comparecer em
uma delegacia de polícia para prestar queixa contra o seu (ou seus)
estuprador(es). E, convenhamos, o número é suficiente para explicar a
alegada paranoia e justificar o medo que mulheres experimentam
cotidianamente.
O argumento de Blanco contra a cultura do estupro é, antes, uma
tentativa de desqualificar o feminismo, apontando nele o que, para o
articulista, é uma sequência de contradições, fruto do alinhamento das
feministas com a “esquerda”: são contra o desarmamento, a solução para
evitar estupros; e contra a redução da maioridade penal, medida que
“atingiria muitos dos atuais estupradores”. De acordo com a lógica
sexista de Blanco, a prova cabal de que não existe uma “cultura do
estupro” é o “tratamento dado aos violadores sexuais nas prisões” – um
argumento que só prova que o advogado realmente não se dá conta da
quantidade de contradições e atos falhos ao longo do seu texto. E
arremata: o número de homicídios no país é ainda maior que o de
estupros, e nem por isso se pode dizer que todo brasileiro é “um
homicida em potencial”.
Gostaria de me concentrar em dois aspectos do artigo. O primeiro é a
confusão do articulista, não sei se proposital, ao se referir ao
estupro como um ato sexual quando, na verdade, o que está em jogo é a
demonstração, brutal e violenta, de poder. Digo mais claramente: quando
mulheres denunciam a cultura do estupro, estão a afirmar que a violência
contida no ato é a objetivação extrema do corpo feminino, submetido ao
poder e à truculência do estuprador. Estupro não é sexo, é poder, e o
próprio Blanco o reconhece, sem perceber, ao lembrar justamente o
“tratamento dado aos violadores sexuais nas prisões”.
Estupro não é sobre sexo, é sobre poder
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Por isso, armar as mulheres não é a solução para o estupro (aliás,
só um troglodita urbano não percebe que o porte irrestrito de armas não
freia, mas estimula e amplia as oportunidades de violência), assim como
medidas de caráter punitivista, tais como a redução da maioridade penal
ou – e me surpreendeu Blanco não tocar no tema – a castração química de
estupradores apresentada em projeto de lei do deputado Jair Bolsonaro.
Trata-se de medidas defendidas por quem entende o estupro como sexo,
ainda que com violência, bastando para isso restringir, punir ou
simplesmente eliminar o “desejo sexual”. Mas estupro, insisto, não é
sobre sexo; é sobre poder.
É sobre, por exemplo, o poder que tem um homem de usar o espaço de
um jornal para banalizar a violência cometida diariamente contra
mulheres, que ele considera um “absurdo” e uma “barbárie” para, logo em
seguida, classificar como “invenção feminista” a existência de uma
cultura do estupro em curso no país, que visa criar uma “paranoia” com
claros fins ideológicos. Será? O articulista parece desconhecer o
significado da palavra “cultura”, mas o dia a dia nos dá exemplos
claríssimos de que as mulheres têm motivos de sobra para a alegada
“paranoia”. O tema do estupro, afinal, é não apenas banalizado, mas
motivo de piada e tratado com arrogância e desdém, e não apenas por
Blanco.
Não faz muito tempo, o humorista Rafinha Bastos cunhou a piada
segundo a qual mulheres feias devem não acusar, mas agradecer seu
estuprador. Uma campanha da Nova Schin colocou no ar uma peça
publicitária em que um homem invisível ameaça e constrange mulheres,
invadindo seu vestiário e provocando visível horror e medo. O deputado
Jair Bolsonaro afirmou a uma colega que não a estuprava porque ela não
merecia, para explicar depois que ela não merecia ser estuprada porque é
feia. Alexandre Frota, o ator recebido no gabinete do ministro da
Educação, contou em rede nacional como estuprou uma mulher,
desqualificada ao longo da sua narrativa por ser “mãe de santo”.
Há poucas semanas, uma adolescente de 17 anos foi estuprada por 30
homens adultos e seu estupro foi justificado por outros tantos homens e
algumas mulheres, baseando-se na sua conduta e na vida pouco regrada.
Aliás, trata-se de um argumento recorrente sempre que se fala em
estupro: a culpa pela violência é da mulher, que não se comportou
corretamente, não se vestiu de forma adequada, que andou sozinha à noite
ou bebeu demais em uma festa – e, segundo outro humorista, Danilo
Gentili, um homem que espera uma mulher ficar bêbada para transar com
ela é um “gênio”.
Nada disso é novidade: o estupro, ao contrário do que se afirma
correntemente, e o artigo de Blanco reitera, não é uma aberração
anticivilizatória, fruto de algum comportamento monstruoso. Ele é,
antes, uma prática que ao longo da história serviu para afirmar e
consolidar diferentes experiências de dominação: os conquistadores
europeus estupraram mulheres indígenas na conquista do chamado “Novo
Mundo” nos séculos 16 e 17, e africanas nos séculos 19 e 20; nos
genocídios étnicos, mulheres são estupradas antes de serem assassinadas;
militares violentam mulheres quando vencem o inimigo, como foi o caso
das alemãs pelos soldados russos; francesas acusadas de colaborar com a
ocupação foram estupradas pelos seus concidadãos durante a chamada épuration legale; mulheres não muçulmanas são estupradas por fundamentalistas religiosos etc.
No Brasil não foi diferente: portugueses estupraram índias durante o
processo de ocupação da antiga colônia; senhores brancos estupravam
suas escravas negras nas senzalas; filhos das camadas médias e altas
estupravam suas empregadas domésticas como uma forma de iniciação à vida
sexual; no Código Penal de 1940 o estupro era considerado um crime
contra os costumes – ou seja, contra a sociedade e seus valores – e não
contra a mulher; e ainda hoje há decisões judiciais que, amparadas no
artigo 59 do Código Penal, levam em conta a vida pregressa da vítima de
estupro (seu comportamento sexual, por exemplo) para amenizar a
responsabilidade do estuprador.
É isso que mulheres denunciam como cultura do estupro e é contra isso
que elas lutam. E, ao contrário do que afirma Fabio Blanco em seu
artigo, nada disso é uma invenção do feminismo, mas práticas que
reverberam ao longo da história, mesmo e inclusive nos limites do que se
convencionou chamar “civilização ocidental”, de que é parte
instituinte. Se nem todo homem é um estuprador em potencial (não sei de
onde Blanco tirou tamanho disparate), negar a existência de uma cultura
do estupro, atribuindo-a a uma maquinação “ideológica” do feminismo, é
não apenas um atestado de ignorância histórica, mas de uma ausência
total de sensibilidade e empatia para com o sofrimento das vítimas.
Clóvis Gruner é historiador e professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná.
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